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Minoria modelo e racismo: para além do coronavírus

O racismo contra os amarelos que o coronavírus trouxe à tona

Em dezembro de 2019, os olhos de todo o mundo se voltaram para a China: havia começado o surto do novo coronavírus. A Covid-19, porém, não foi a única coisa que o vírus SARS-CoV-2 trouxe. Nos jornais, nas conversas e até nos memes os chineses eram alvo de comentários maldosos conforme a pandemia se alastrava.

 

#VirusChines

Exemplo de meme preconceituoso sobre o coronavírus. [Imagem: Reprodução/Redes Sociais]
A associação do vírus com o país asiático tomou proporções tão grandes que pessoas de importância política, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro, culparam a China pelo vírus. A hashtag #VirusChines chegou nos trending topics do Twitter após um tweet do deputado comparando a epidemia com o acidente nuclear de Chernobyl.

Tweet de Eduardo Bolsonaro

Uma das fake news mais populares é a de que o Partido Comunista Chinês criou o novo coronavírus em laboratório. A Fundação Oswaldo Cruz declarou, citando um estudo publicado na renomada revista científica Lancet, a existência de inúmeras provas científicas de que isso é altamente improvável, dado a complexidade do genoma viral e de sua semelhança com o vírus SARS-CoV-1. Segundo ele, o vírus surgiu através de mutações naturais, tendo como hospedeiro original o morcego. Humanos teriam entrado em contato com o vírus através de animais selvagens comercializados no polêmico mercado de Wuhan.

Não demorou para que os costumes alimentares dos chineses fossem culpados pela eclosão da doença. Nas redes sociais, vídeos de pessoas supostamente se alimentando de sopa de morcego em Wuhan contribuíram para essa ideia, instigando o medo da população. 

Um dos vídeos mais famosos mostra uma mulher chinesa comendo morcego cozido e dizendo para a câmera que o gosto é parecido com o de frango. O vídeo foi filmado em 2016, no arquipélago de Palau (Oceania), para um show online sobre viagens internacionais apresentado por Wang Mengyun. 

Apesar de a jovem não ter nenhum envolvimento com a atual pandemia, o número de comentários e acusações foram suficientes para justificar um vídeo de desculpas de Mengyun, que disse não saber que o animal é um portador de doenças e que seu objetivo era apenas mostrar a cultura local aos seus telespectadores. Isso não acalmou o público, o qual respondeu que os animais em questão são portadores certificados desde 2003, e que portanto essa é uma informação da qual ela deveria saber de antemão. O vídeo foi retirado do ar, mas reuploads ainda podem ser encontrados pela Internet.

Show apresentado por Wang Mengyun

O boato da “sopa de morcego” que causara o novo coronavírus se espalhou rapidamente. Isabela Ayumi Nakashima, estudante na Universidade Estadual de Maringá de 21 anos, estava curtindo com os amigos quando, aparentemente sem motivo, um deles inquiriu ao namorado de Ayumi se ele não tinha receio de se sentar próximo a ela: “certeza que ela come sopa de morcego”.

Ayumi disse ter se sentido extremamente desconfortável. Por sorte, seus outros amigos ficaram do seu lado quando o acusador se recusou a pedir desculpas. Mas esse não é o primeiro – e provavelmente nem o último – comentário maldoso que a jovem teve de escutar. Sopa de morcego, pastel de “flango”, até a fetichização do seu fenótipo: ela já ouviu de tudo. “Com o tempo a gente aprende a lidar com esses tipos de comentários, mas vir de um amigo machuca muito mais do que ouvir de um estranho”.

Isabela Ayumi Nakashima. [Imagem: Reprodução/Redes Sociais]
Ela não foi a única a receber esse tipo de atitude. A atriz Ana Hikari, conhecida por interpretar a personagem Tina na novela Malhação – Viva a Diferença, estava em uma festa pré-carnaval com os amigos quando foi pega de surpresa com a fala “sai com esse coronavírus daqui!”. Na época, ainda não haviam casos confirmados no Brasil e, apesar de já ter ouvido relatos de outras pessoas que sofreram esse tipo de ataque, a jovem não esperava passar por essa situação, especialmente em um momento de descontração com os amigos: “quando você não pertence à parte hegemônica das opressões, estamos suscetíveis a violências mesmo nos nossos momentos de maior felicidade”.

A atriz Ana Hikari. [Imagem: Reprodução/Redes Sociais]
Alguns ataques foram ainda mais agressivos. Fernanda Yumi Tagashira, estudante de 19 anos, trabalha em uma empresa de portaria visual. Quando a Covid-19 começou a ameaçar o Brasil, a empresa disponibilizou álcool em frascos borrifadores por serem mais baratos do que o álcool em gel. Ninguém poderia ter imaginado que uma das colegas de trabalho de Yumi utilizaria os frascos para borrifar álcool em seu rosto gritando “coronavírus”.

No momento do ocorrido, Fernanda se preocupou em cuidar de seu rosto (ela tem dermatite atópica, uma doença crônica que pode gerar erupções e fissuras na pele) e olho. Apenas ao chegar em casa e conversar com sua mãe que Yumi se deu conta da gravidade do que acontecera. Seu desabafo nas redes sociais gerou grande repercussão, o que ela diz não ter esperado. Apesar de tudo, preferiu não tomar ações legais contra a empresa ou a funcionária, pois a mesma se mostrou arrependida e disposta a rever sua postura.

Fernanda Yumi Tagashira. [Imagem: Reprodução/Redes sociais]
Esse comportamento não se restringiu ao Brasil. Após o jornal francês Le Courier Picard publicar a imagem de uma mulher asiática com a legenda “Coronavírus Chinês: Alerta Amarelo” – referenciando a expressão racista “perigo amarelo”, utilizada para definir pessoas asiáticas como uma ameaça aos países do Ocidente –, franceses de etnia asiática responderam com a hashtag #JeNeSuisPasUnVirus (#EuNãoSouUmVírus, em tradução literal). Eles compartilharam relatos de racismo que haviam sofrido nas últimas semanas, apontando que sino-franceses não eram os únicos sendo atacados, mas sim qualquer pessoa com fenótipo asiático. Isso, segundo eles, prova que esses comentários são racistas – não xenofóbicos –, pois são baseados na etnia das pessoas, não em seu país de origem.

Le Courrier Picard
Jornal francês Le Courrier Picard

Minoria Modelo

Segundo Renato Takashi Igarashi, advogado de 39 anos, legalmente, racismo e xenofobia são tratados da mesma forma. O que muda, explica ele, é a etimologia. Enquanto a população negra sofre com um racismo estrutural, institucionalizado e histórico, os asiáticos são rotulados como a “minoria modelo”. Isso está tão integrado na sociedade que muitas vezes esse mito é incorporado por eles, reproduzindo ofensas contra negros pautados na “falácia da meritocracia”: “não percebem que são instrumentalizados pelo racismo estrutural”.

Esse comportamento é uma faca de dois gumes contra os asiáticos: para poder desfrutar dos benefícios de sua passabilidade branca, devem aceitar, e até mesmo reproduzir, todos os estereótipos e estigmatizações de sua etnia; “é um mal muito grande, porque uma minoria que oprime a outra jamais vai ser escutada por quem quer que seja”, aponta Renato. Por esse motivo, o Coletivo Brasilidades Asiáticas considera a solidariedade antirracista como um dos principais pontos do movimento asiático: “entender que ocupamos, hoje, um lugar de privilégio em relação a negros e indígenas é fundamental”.

Renato Takashi Igarashi [Imagem: Reprodução/ Mídias Sociais]
Essa passabilidade, porém, é superficial. Quase um quinto dos asiáticos no Brasil já foi excluído de alguma situação social por conta de sua etnia. O Coletivo explica que o racismo com que asiáticos (amarelos e marrons) lidam se dá de maneira sutil e naturalizada, até mesmo por aqueles que sofrem com essas atitudes.

Para Ayumi, essa realização foi um processo longo, mas necessário. Quando ela percebeu que sua identidade como brasileira e sua identidade como asiática não são mutuamente exclusivas – que é possível ser uma brasileira asiática –, ela pôde refletir sobre os estereótipos mascarados de elogio com os quais ela cresceu e ainda convive e chegar à conclusão de que eles lhes fizeram mais mal do que bem: “quando você é sempre rotulado de algo, você acaba se sentindo super limitado e apagando a identidade do outro”.

Fernanda Yumi chegou ao mesmo entendimento. A família de seu pai é japonesa e, segundo a própria, a minoria modelo em carne e osso. Por ser mestiça, Yumi sempre se sentiu diferente: não amarela o suficiente entre sua família, não branca o bastante em seus círculos sociais. Assim como Ayumi, apenas recentemente ela compreendeu o porquê dela, e todos os descendentes de asiáticos no Brasil, sentirem essa pressão para se encaixar.

O que a impulsionou para esse momento de realização foi ler o quadrinho Criança Amarela, do Monge Han. Em suas quatorze páginas, Han ilustra suas memórias e comenta sobre o racismo amarelo: uma caixa na qual você nasce e vive, que aparenta ser tão confortável que nem se dá conta de que está nela em primeiro lugar. Mas, como vimos, essa caixa está se mostrando cada vez mais difícil de ignorar. 

quadrinho Criança Amarela
Fragmento do quadrinho “Criança Amarela”. [Imagem: Reprodução/Facebook]

História

Comentários de teor racista contra pessoas asiáticas não são um fenômeno recente causado pelo vírus. Ana Hikari comenta que os asiáticos no Brasil sofrem com essas micro agressões desde o primeiro contato. Nunca se deve comparar o racismo com o qual a população negra lida diariamente com aquele que a população asiática sofre, mas eles nunca foram vistos como parte da hegemonia branca.

Após a abolição da escravatura, necessitava-se de uma nova mão de obra para substituir a escravizada. A primeira alternativa foram os imigrantes europeus, que também contribuiriam para o plano de embranquecimento do Brasil. As condições de trabalho eram tão desumanas, porém, que países como a França e a Itália chegaram a proibir a emigração para o Brasil durante alguns anos.

Assim sendo, os olhos dos grandes fazendeiros se voltaram à Ásia. Para o Japão – que sofria com seu alto índice demográfico –, a aliança era vantajosa, apesar do forte preconceito encontrado no território brasileiro. Em 1892, o Correio Paulistano chegou a publicar artigos dizendo que “se a escória da Europa não nos convém, menos nos convirá a da China e do Japão”.

Os argumentos a favor dos asiáticos também eram abundantes em preconceitos e estereótipos, como vemos em outro trecho do Correio Paulistano: “o chim é bom, obediente, ganha muito pouco, trabalha muito, apanha quando é necessário, e quando tem saudades da pátria enforca-se ou vai embora”.

Todas as negociações culminaram na chegada do navio Kasato Maru ao porto de Santos em 18 de junho de 1908. Os 781 japoneses que estavam a bordo da embarcação foram recebidos por uma realidade assustadoramente divergente da qual foram prometidos. Eles esperavam permanecer no Brasil apenas por cinco anos, quando então poderiam voltar para seu país natal com ganhos consideráveis.

Kasato Maru
O navio Kasato Maru

Apesar de todas as dificuldades, a comunidade nikkei no Brasil continuava a crescer. Sua devida integração na sociedade só começou de forma efetiva a partir dos anos 1960, com participações na imprensa e política. Ainda hoje, porém, são vistos como estrangeiros em seu próprio país; “esquecem que sou brasileiro”, diz Renato Igarashi.

Impulsionados pela crise financeira pela qual o Brasil passava na década de 80, o fenômeno dos dekasseguis chegou ao Brasil quando descendentes de japoneses e suas famílias (nikkeis ou não) foram tentar a vida no Japão. O país facilitou a entrada desses imigrantes uma vez que a crescente economia japonesa necessitava da mão de obra. Os dekasseguis brasileiros no Japão são tantos que a comunidade já superou as ex-colônias portuguesas de Macau e Goa em número de falantes da língua portuguesa na Ásia. Muitos retornaram para o Brasil após a crise econômica mundial de 2008 e o tsunami que atingiu o país em 2011, mas ainda assim 178 mil brasileiros vivem na terra do Sol Nascente.

 

Mídia e Estereótipos

A imagem do asiático quieto e educado, que é um gênio da matemática e da tecnologia está integrada no imaginário popular. Se trata da “minoria modelo”, um estereótipo racista com roupagem de elogio. “Tudo bem a gente querer entrar nos padrões”, comenta Tagashira. “Ao mesmo tempo isso é uma coisa meio tóxica, porque a gente tenta se encaixar nesse modelo ao qual não fazemos parte.”

Para o Coletivo Brasilidades Asiáticas, esse é um dos grandes problemas da minoria modelo. Nas mídias, essa é a única imagem possível da pessoa asiática. Quando a identificação falha, essa falsa representação pode levá-la a questionar sua própria identidade, o que pode ser extremamente nocivo: se não é branca, mas também não é amarela, é o quê?

Ana Hikari foi a primeira atriz de descendência asiática a protagonizar uma novela da Rede Globo. Segundo ela, o cenário internacional tem mudado em relação à representatividade, mas essa mudança é extremamente lenta no Brasil. Começa-se a ver a diferença positiva trazida pelo diálogo sobre negritude, mas os asiáticos ainda são escassos e, na maioria das vezes, estereotipados.

“Acho que vou me sentir de fato representada quando começar a surgir personagens que vão para além do estereótipo de raça, que sejam apenas personagens complexas com muitas histórias para contar e que, olha só, por acaso, não são brancas!”, comenta Hikari.

Para Isabela Ayumi Nakashima, a mídia deveria ser utilizada para explicar e lutar contra o preconceito asiático, não ser um instrumento dele. Fernanda Yumi sente o mesmo. Quando questionada, disse se sentir “nem um pouco” representada pela mídia em geral. Nas raras vezes que isso ocorre, é devido a um fator psicológico, relações entre família e amigos, ou coisas superficiais como gosto musical. 

Em 2018 o filme Para Todos Os Garotos Que Já Amei (To All the Boys I’ve Loved Before), baseado em romance homônimo, foi lançado mundialmente pela Netflix. Na trama, uma garota tem sua vida virada de cabeça para baixo quando as cartas secretas que ela escreveu para seus antigos amores são enviadas. E, por acaso, essa garota também é descendente de coreanos. 

A personagem Lara Jean, do filme Para Todos Os Garotos Que Já Amei [Imagem: Reprodução / Instagram]
Yumi conta que chorou ao ver o longa pela primeira vez, pois Lara Jean – a protagonista do filme – “podia ser qualquer garota, inclusive eu”. Ela é uma menina normal, com estilo e identidade próprios, e que acontece de ser asiática. Assim como Fernanda, Ayumi, e Ana. Ela não é fetichizada por sua raça, o que infelizmente é comum entre mulheres amarelas. Ela não é uma vilã. E, acima de tudo, ela não é um estereótipo.

3 comentários em “Minoria modelo e racismo: para além do coronavírus”

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