Hollywood demorou muito para aprender como retratar mulheres latinas com respeito. Na frente e por trás das câmeras, situações constrangedoras eram comuns. O estigma que se construiu em torno da mulher latina, com corpo sensual e atrás de um marido rico, foi propagado ao longo de diversas produções. Antes tarde do que nunca, pode-se dizer que na última década as produções com mulheres latinas na TV estão em processo de renovação.
Das mais viejas séries
A Gloria (Sofía Vergara) de Modern Family (2009) e a Gaby (Eva Longoria) de Desperate Housewives (2004), no início de suas respectivas séries, representavam duas mulheres latinas, sendo essa a sua única característica principal. Apesar da diferença de altura, ambas as personagens se casaram com homens ricos, construindo uma suposta dependência em relação a seus maridos.
Segundo Debra Merskin, professora de estudos de mídia na Universidade do Oregon, a representação das mulheres latinas costuma ter pelo menos um desses três tipos de estereótipos: Cantina Girl, Suffering Senorita e Vamp. A Cantina Girl seria uma mulher sensual e fácil. A Suffering Senorita, uma mulher que começa bem, como uma senhorita esforçada, mas que piora ao longo do programa e faz de tudo pelo seu homem – em sua maioria anglo-saxão ou caucasiano. Por último, a Vamp é a mulher que usa toda a sua inteligência e sensualidade para conseguir o que quer. Ao longo das oito temporadas de Desperate Housewives, fica claro quando a Gaby passa por cada uma dessas fases.
Por meio de piadas estereotipadas, latinos são encaixados em um grupo homogêneo. A ação é resultado de uma cultura xenófoba e acaba por propagar ainda mais preconceitos. Como consequência, a dificuldade em se identificar com as personagens faz com que o público não se sinta representado.
A propagação desses clichês vai muito além do corpo. Por exemplo, o estigma de que latinos falam alto, quase gritando, foi muito utilizado como comédia. Além disso, são incontáveis as vezes em que expressões em espanhol ou em inglês dito com sotaque forte vêm seguidas das claques – as risadas de fundo da plateia – mesmo que a frase não tenha graça alguma.
Não é só no âmbito do entretenimento que essas construções são perigosas. Merskin afirma que é típico da mídia estereotipar mulheres para justificar a diferença de tratamento em hospitais, na política, justiça, economia e em várias esferas da vida. Assim, piadas por vezes até inocentes intensificam e naturalizam desigualdades.
Um poquito de história
Entre 1933 e 1945, o governo Roosevelt estabeleceu a Política da Boa Vizinhança como forma de conseguir financiamento latino para a Segunda Guerra. Como estratégia, os Estados Unidos tentaram melhorar o seu relacionamento com os países da América Latina, o que atingiu o panorama cinematográfico. Isso aconteceu durante a chamada Era de Ouro de Hollywood e afetou produções que reproduziam uma imagem negativa de latinos.
“Nessa intenção de ‘agradar’ a América Latina, o cinema acabou por criar vários estereótipos dos latinos como ‘boa gente’, calorosos, festivos, alegres independentemente de sua condição social e trabalhadores. Foi nessa época que se popularizou, por exemplo, a figura da Carmen Miranda e do Zé Carioca”, conta Luana Pagung, mestra em Estudos Literários pela UFRO.
Dessa forma, a Política da Boa Vizinhança não destruiu representações negativas, mas construiu novas. Apesar de parecerem inocentes, Pagung afirma que “os novos estereótipos passaram a servir mais como alívio cômico nos filmes”.
Esses clichês maléficos vão para além do feminino. A estrutura familiar latina tradicional constituía uma avó (abuela) muito sábia, um pai que manda em todos (que pode até ser um chefe de máfia), um número incontável de irmãos valentões que protegem a irmã inocente e sexy, e um marido romântico, mas muitas vezes traidor. A grande problemática na reprodução dessa estrutura é que ela invisibiliza outras formações de família.
Um cambio de perspectiva
Um dia de cada vez, após a Jane ser artificialmente inseminada, a situação foi melhorando. Pulando as piadas, One Day at a Time (2017) e Jane The Virgin (2014) quebraram as barreiras preconceituosas. Ambas as séries, com suas famílias latinas protagonistas, construíram narrativas de profundidade, com personagens consistentes e de verdadeira personalidade.
One Day at a Time é uma série produzida atualmente pela Pop TV, mas iniciada pela Netflix e lançada em janeiro de 2017. A história é de uma família cubana que mora em Los Angeles. A mãe Penélope Alvarez (Justina Machado) trabalha como enfermeira, enquanto faz faculdade e cuida de sua família. Ela enfrenta desafios diários, com seus filhos Helena (Isabella Gomez) e Alex (Marcel Ruiz) e seu corpo não é igual ao de Glória ou Gaby.
Ao longo das temporadas, Helena passa pelo processo de se assumir homossexual e lidar com preconceitos familiares, enquanto Alex está sempre tentando se encaixar na escola, apesar de ser visto como diferente em função de sua descendência. De fato, o bullying nas escolas americanas contra latinos é marcante. No mesmo ano de lançamento da série, uma pesquisa do National Center for Education Statistics (NCES), apontou que 16% dos alunos hispânicos ou latinos de 12 a 18 anos acusam terem sofrido com pelo menos uma forma de bullying.
Quem chega mais perto dos estereótipos citados seria a avó Lydia (Rita Moreno) que, apesar da idade, ainda tem muita energia e memórias afetuosas calientes com seu falecido marido. Entretanto, nada se aproxima de uma sensualidade vulgar.
O programa ainda abre espaço para críticas ao governo. Penélope cita diversas vezes como “o novo presidente abre brechas para o preconceito contra latinos”. A família tem medo de processos de imigração, principalmente porque Lydia chegou aos Estados Unidos com seu green card e nunca foi atrás da documentação para morar legalmente por tantos anos.
Em um formato diferente, Jane The Virgin surge como uma série próxima de uma novela. Produzida pela The CW e estreada em outubro de 2014, a história é, de fato, um novelão, com uma trama emaranhada de desenrolares (im)previsíveis.
Jane Villanueva (Gina Rodriguez) é uma mulher virgem que foi inseminada artificialmente por engano. Enquanto tenta resolver seus problemas familiares e amorosos, ainda tem que cuidar de sua mãe Xiomara (Andrea Navedo), que tem múltiplas relações amorosas, e de sua avó Alba (Ivonne Coll), que é extremamente religiosa.
Alba é uma senhora venezuelana que chegou aos Estados Unidos fugida com seu marido. Assim como Lydia, Alba tem medo de ser deportada e fica aflita com qualquer situação que envolva a polícia, o que é recorrente visto que Jane mantém relações com um detetive. A desconstrução dos estereótipos ocorre ao longo da série, no desenvolver dos personagens. Com sua protagonista virgem, tem-se um choque com a mulher hiper-sensualizada anteriormente mencionada. A própria Gina Rodriguez falou em entrevistas sobre como a série é uma “representação mais autêntica e genuína” da família latina real. Em seu desenrolar, a série retrata os personagens sem focar em sua latinidade, mas no fato de que são pessoas comuns.
Além de tudo isso, um ponto de convergência interessante nas duas séries é que One Day at a Time se passa em Los Angeles e Jane The Virgin, em Miami. As duas cidades são conhecidas pelo seu verão muito quente, e o guarda-roupa das personagens é muito semelhante ao latino-americano cotidiano.
Em ambos os programas, vemos personagens passando por dificuldades com famílias compostas por pessoas reais, não comediantes. Apesar de as séries terem um teor de comédia, o riso não está focado nas suas características latinas e é isso que faz com que sejam reconhecidas pela sua qualidade e representatividade.