Por Pedro Smith
Shelly-Ann Fraser-Pryce e Jemima Sumgong são atuais campeãs olímpicas de corrida da prova de 100m rasos e da maratona, respectivamente. Com 1,53 metros de altura, 52 quilos e um IMC (“índice de massa corpórea” – utilizado para medir a proporção entre massa e altura de uma pessoa) igual a 23, a velocista porta um tipo físico completamente diferente da fundista, de 1,60, 45 quilos e IMC 17.
Por que atletas da mesma modalidade têm biotipos tão distintos? Como essas diferenças interferem no rendimento dos atletas? Certamente, as respostas para essas e outras perguntas vêm sendo feitas e estudadas pelos grandes centros de excelência do esporte e expandidas a outras muito mais ousadas. Podemos definir corredores potenciais desde o nascimento? Confira, nesta matéria do Arquibancada, um dos exemplos desse impressionante – e crescente – universo, no qual ciência e esporte se misturam em busca do mais alto rendimento.
Por que fundistas são esguios e velocistas mais forte?
O fisiologista norte americano William Sheldon definiu, em 1940, as características físicas geneticamente herdadas, como biotipo, e classificou os seres humanos em três grandes grupos: ectomorfos, mesomorfos e endomorfos.
No caso da corrida, apenas as duas primeiras classificações se aplicam. Atletas de provas de explosão apresentam, geralmente, estrutura física mesomórfica, como a campeã olímpica Fraser-Pryce. Essas pessoas têm corpo de formato mais triangular e percentual mais alto de massa muscular, o que facilita trabalhos de potência. Já maratonistas, como Sumgong, ou competidores de outras provas de resistência, são, majoritariamente, ectomorfos, ou seja, de corpo mais retangular e menos massa muscular, o que facilita a prática de modalidades aeróbicas – que exigem fôlego.
Mas não é o biotipo que mais interfere o desempenho dos corredores, e sim, sua estrutura muscular. Temos cerca de 650 músculos, que atuam de forma fundamental para qualquer prática esportiva. Dessa forma, o tipo de tecido muscular que os constituem irá determinar a aptidão e o desempenho do atleta.
Em linhas gerais, há dois tipos de fibras musculares: as de contração lenta (chamadas Tipo 1) e as de contração rápida (Tipo 2). As primeiras utilizam o oxigênio como principal fonte – , portanto, têm coloração vermelha devido ao grande número de mitocôndria e mioglobina necessárias para convertê-lo em energia – são altamente resistentes à fadiga e apropriados para exercícios de aeróbicos de longa duração, sendo, assim, essenciais para fundistas.
As fibras rápidas têm alta capacidade para contrair em um curto espaço de tempo (contraem de 3 a 5 vezes mais rápido do que as lentas), utilizam-se principalmente de glicose como fonte de energia, são brancas e fadigam rapidamente. Sua capacidade de gerar movimentos rápidos e poderosos é crucial para os velocistas.
Apesar dos dois tipos estarem presentes em todos os grupos musculares, a proporção de cada um será a responsável por formar o tipo físico do atleta e irá interferir drasticamente em sua atuação. As fibras tipo 2 são maiores porque produzem mais energia em menos tempo, o que confere aos velocistas a aparência de serem mais fortes do que os fundistas. Não necessariamente são mais musculosos, apenas as fibras que os compõem são maiores (uma vez que necessitam ter maior quantidade actina e miosina, proteínas que formam os filamentos das fibras). Em exercícios de musculação, por exemplo, estimula-se o desenvolvimento de fibras rápidas, que proporcionam a forma física característica de seus praticantes.
Entretanto, é importante ressaltar que todos músculos são constituídos pelos dois tipos de fibra muscular e, para todas as atividades, o corpo humano utiliza a unidade motora como um todo, ou seja, todas as fibras. Cabe ao sistema nervoso, por sua vez, acionar aquela que tem maior quantidade do tipo mais adequado.
A ciência, a genética e o esporte
A predominância do tipo de fibra ideal para cada modalidade torna-se, assim, um enorme diferencial para os atletas, principalmente, de elite. Nesse momento, a ciência toma papel central na tentativa de identificar formas de desenvolver nos competidores a musculatura mais adequada para sua modalidade.
Apesar de anos de pesquisa, o que se sabe atualmente é que pouco se pode fazer na tentativa de estimular determinadas fibras ou até mesmo na conversão entre os tipos. Ser um corredor de 100m rasos ou um maratonista envolve, primeiramente, a genética – a pessoa nasce para o esporte, literalmente.
Mesmo sendo uma descoberta consideravelmente recente, de uma década atrás, tal conhecimento já residia no senso comum. Muitos treinadores de corrida repetiam a máxima de que velocistas devem ser “fortes e troncudos”, e que para ser fundista é importante ser “magro e ágil”.
As grandes marcas da modalidade olímpica mais tradicional tem como um dos principais responsáveis um gene: ACTN-3, popularmente conhecido como o “gene do esporte”. Ele é responsável por instruir o corpo a produzir fibras musculares rápidas. Quem recebe dos pais cópias idênticas desses genes têm a musculatura ideal para para trabalhos de potência e velocidade – como um chute, uma acrobacia ou um tiro de corrida.
Mas, em certas pessoas, esse gene sofre uma mutação que anula seu efeito no organismo. Os portadores dessa mutação desenvolvem fibras musculares lentas, essenciais para provas de esforço prolongados, como provas de 1500m na natação, ciclismo ou uma maratona. Há também quem herda dos pais um gene mutante e/ou outro normal, tendo assim, fibras mistas – úteis para esportes de habilidades mistas (força e resistência, como o tênis).
Com base nessas informações, a ciência deu um passo ainda mais ousado: passou a mapear o genoma de atletas em busca do gene ACTN-3. Muitos laboratórios, com apenas uma amostra de saliva, conseguem apontar o grupo muscular da pessoa e, consequentemente, o esporte mais adequado para ela.
A fim de comprovar a eficácia desse tipo de exame, o programa Esporte Espetacular, exibido pela Rede Globo, selecionou alguns olímpicos brasileiros e submeteu-os a esse exames resultados foram surpreendentes. Apesar da maioria dos atletas apresentarem o “gene do esporte” compatível à modalidade que praticam, a exceção coube ao maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima: era de esperar que ele recebesse dos pais uma cópia da mutação desse gene, já que necessita de fibras lentas; porém, pelo teste, sua musculatura não é a ideal para esforços prolongados. Em entrevista ao mesmo programa, ele justifica seus bons desempenhos ao fato de ter trabalhado longas horas na roça quando criança, e retornar para sua casa, que ficava a uma distância considerável de local onde trabalhava, a pé.
Além de possíveis falhas, os testes de mapeamento genético suscitaram ações controversas por parte de algumas organizações esportivas. Clubes da milionária liga de beisebol dos Estados Unidos realizam, desde de 2008, esses testes em suas categorias de base, o que gerou grande polêmica na imprensa estadunidense. Há também casos extremos de pais que compram esses testes em laboratórios especializados para seus filhos – como um caso reportado pelo The New York Times de um pai que fez esse exame em seu filho de dois anos e meio.
Opinião de especialista: um outro ponto de vista
Em entrevista ao Arquibancada, o Dr. Adriano Leonardi, médico do esporte pela Universidade Federal de São Paulo e membro titular da Sociedade Brasileira de medicina esportiva, há outros fatores, além dos tipos de fibra muscular e heranças genéticas, que diferenciam e interferem no desempenho de fundistas e velocistas. Além das diferenças musculares, ele também destaca algumas características que diferem tais tipos de atleta.
“A principal diferença fisiológica é, realmente, a parte metabólica: os fundistas tendem a ter mais mitocôndrias dentro das células, mais volume celular de fibras vermelhas [de contração lenta], além de maior quantidade de enzimas em tais fibras, agilizando e facilitando metabolismo aeróbico, ou seja, transformar o substrato energético – com auxílio do oxigênio – em potência, força e desempenho muscular”. Diferentemente, os velocistas têm um processo metabólico anaeróbio – sem a utilização de oxigênio e, dessa maneira, dispensando quantidade tão abundante de mitocôndrias.
“O outro fator importantíssimo, do ponto de vista fisiológico, reside no fato de que quanto mais aerobicamente condicionado o indivíduo for, mais ele tem uma enzima dentro da hemácia [células do sangue responsáveis pelo transporte de oxigênio], o que facilita muito a saída do oxigênio de dentro da células e utilização do músculo [para produzir energia]”, completou o presidente da Associação Brasileira de Medicina de áreas remotas e esportes de aventura.
Adriano reconheceu a importância de musculatura específica e apropriada, ao citar um exemplo do mais alto rendimento: o recordista mundial Usain Bolt. “Sem dúvida, se a gente considerar que todo o desempenho dele [Bolt] tenha sido lícito (não tenha havido nenhum dopping), realmente, ele tem uma vantagem genética muito grande frente a outros atletas. Não só o volume de fibras musculares [de contração rápida] dele deve ser maior, deve ter maior filamento de actina e miosina”.
Mas Leonardi, novamente, salientou outro fator igualmente importante para a conquista de grandes resultados: “Com toda certeza um dos diferenciais maiores dele deve ser o tempo de disparo neuromuscular [tempo de reação, de “enviar” aos músculos impulsos elétricos]. Ele deve ter uma quantidade muito maior de fibras neuromotoras que inervam a fibra muscular, e o tempo de resposta neuromuscular [ou seja, período entre “pensar” a ação e executá-la] deve ser absurdamente mais alto que no restante dos atletas. Hoje, a gente sabe que força e potência muscular estão muito ligadas a parte neurológica e não somente às fibras musculares”.
Dessa maneira, o mestre em ortopedia e traumatologia pela Santa casa de São Paulo apontou outras maneiras de alcançar o alto rendimento, mesmo não portando herança genética das mais favoráveis à prática esportiva desejada. E a solução é mais simples do que possa parecer: “Na minha opinião, com relação ao rendimento dos atletas hoje em dia, o que a gente tem de melhor, o que mais cresceu foi, na verdade, o treinamento. O surgimento de conceitos como o treinamento neuromuscular e o próprio aperfeiçoamento do treinamento direcionado especificamente a cada modalidade, faz com que, hoje, possa-se cercar ao extremo atleta e tentar elevar seu rendimento ao máximo”.
Em meio a tantas novidades tecnológicas e inovações científicas, o médico do esporte preferiu manter cautela. Com relação aos testes genéticos citados anteriormente, por exemplo, ele considera-os “controversos” e justificou: “É complicado vc tentar ‘empurrar’ uma pessoa, principalmente crianças, para determinada prática esportiva, porque ela pode não gostar. Uma pessoa que tenha um número maior de fibras vermelhas, pode gostar de fazer musculação, e ele podia ser uma grande atleta de modalidades de limite aeróbico”.
Dr. Adriano Leonardi encerrou ressaltando as incertezas que presente e futuro tanto do esporte quanto da ciência da ciência ainda guardam: “Tudo isso é um pouco controverso. Ainda não há muitas evidências científicas de atletas que tenham sido formados a partir de seus exames genéticos. Faltam muitos anos e ainda falta muito estudo para que esses testes tornem-se menos nebulosos”.
Saudações e parabéns! A legenda da foto com a Fraser-Pryce e Sumgong está citando-os invertidas. Na imagem, a Sumgong é a da direita. Apenas um aviso, pois pode confundir o leitor.
Olá boa noite !
Gostaria de saber informar que sou maratonista acho muito interessante característica ectomorfo, endormofo e fundistas. Muito obg!!