O Brasil, assim como vários outros países ao redor do globo, vem vivenciando há algum tempo um novo contexto político. Marcado pela fortificação de grupos de extrema direita e a intensificação da polarização política, esse momento torna as manifestações, comuns em qualquer democracia, ainda mais frequentes.
Em todas as democracias, o direito à manifestação política é garantido; é assim que o seu funcionamento é construído e garantido.. No Brasil, não é diferente. Com a combinação de três direitos elencados no artigo 5º da Constituição Federal, o direito à manifestação é assegurado:
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Liberdade de Expressão
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
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Liberdade de Reunião
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
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Liberdade de Associação
XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
Porém, quando se diz manifestação, não é só à clássica de rua a qual se está referindo. Existem diversas outras formas. Se manifestar politicamente é uma forma de utilizar a voz para expressar uma opinião pública em relação a aspectos políticos.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Adrian Gurza Lavalle, Professor Doutor do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP, explicou que as pessoas se manifestam, principalmente, de dois modos: no sentido propositivo e no sentido defensivo. O primeiro é para publicitar a atenção pública para questões que estão excluídas da agenda pública, ou seja, mobilizar a defesa de direitos que visam ampliar agendas específicas, propondo programas ou a mudança de regras de como a sociedade lida com determinados problemas. O segundo consiste em minimizar ou alterar decisões tomadas pelo poder público que produzem efeito negativo sobre uma parte da população.
Em relação ao sentido defensivo, quando o Estado implementa alguma política que afeta parte de população, segundo Albert Hirschman e sua teoria desenvolvida em 1970 (Exit, Voice and Loyalty), esta tem três opções: Saída, Voz ou Lealdade. A saída significa que ele aceita a mudança de determinada política no seu ambiente mas muda de ambiente para não sofrer as consequências, como mudar de estado ou país. Quando ele escolhe a Lealdade, ele aceita as consequências daquela política. A última opção é utilizar a Voz. O cidadão pode escolher usar a sua voz para reclamar, protestar e se manifestar.
A manifestação é só uma das opções, e são várias as formas de utilizar a voz na atualidade. Mas quando os cidadãos vão escolher usar a sua voz e se manifestar? Quando o Estado vai responder positivamente às demandas dos cidadãos? E quais são as principais formas de manifestação política utilizadas na atualidade?
As Ruas
Os protestos nas ruas são uma forma de manifestação consolidada no mundo inteiro. Ao longo da história, as ruas sempre foram espaço utilizado pelos cidadãos para se manifestar politicamente. Isso pode ser ilustrado com as manifestações pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos (a partir de 1955) e Maio de 68 na França, até as mais recentes em relação a questões ambientais, direitos das mulheres, as contra ou a favor do Brexit e as chilenas (2019) pelo colapso do sistema previdenciário e insatisfação, de forma geral, com o governo.
No Brasil, alguns exemplos que podem ser citados de quando as ruas foram tomadas são os protestos contra a vacinação obrigatória da varíola, em 1904; a Marcha da Família, em 1964; A marcha dos 100 mil, em 1968; As Diretas Já (1984), Os Caras Pintadas (1992); As Jornadas de Junho, em 2013; As manifestações pró-impeachment e contra a corrupção, em 2016, e as pela educação, em 2019.
Os muitos exemplos atestam que os protestos de rua são bem consolidados como forma de manifestação política. Mas por que ir às ruas?
Para Eugênio Bucci, jornalista e atuante nas ciências sociais, o objetivo clássico das manifestações de rua é mostrar a dimensão da força social agregada por uma ideia: “Uma multidão na rua é uma expressão inequívoca de uma inclinação da opinião pública. Mais ainda, significa que uma parcela da opinião pública está disposta a se mobilizar por aquela causa”, pontuou Bucci.
A efetividade desse tipo de manifestação fica evidente com os vários exemplos dados. Mas essa efetividade também depende de outras questões, como local, dia e número de pessoas nos protestos.
No Brasil, o dia da semana em que o protesto é realizado acabou sendo associado a determinados grupos políticos. As manifestações em finais de semana foram apropriadas por grupos de direita, os quais criticam as de esquerda que, em sua maioria, acontecem durante a semana e “atrapalham o trânsito e o deslocamento dos trabalhadores”.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Rogério Chequer, cofundador do movimento Vem Pra Rua (VPR) ― um dos principais mobilizadores das manifestações brasileiras contra a corrupção nos anos de 2015 e 2016 ― afirmou que protestos em finais de semana podem ser melhor planejados pelas pessoas que querem ir, pois em dias úteis, elas brigam com o trabalho e outros compromissos pessoais. Segundo ele, para aqueles que “têm dias de trabalhos lotados e só têm tempo no final de semana”, as manifestações de domingo acabam sendo mais justas por “permitirem que eles possam se manifestar também”.
O número de pessoas é importante. Ele transfere uma certa impressão de legitimidade à causa defendida. Então, é lógico que manifestantes visem mobilizar o maior número de pessoas para os protestos. Mas talvez considerar só isso pode acabar interferindo no objetivo de se manifestar, que é chamar a atenção. Adrian explicou que aqueles que se manifestam nas ruas visam chamar a atenção de outras pessoas, do poder público, de cidadãos, em relação à questão. Portanto, não é por um acaso que o façam em horários, dias e lugares que têm condição de fazer mais gente notar. Para ele, é uma decisão estratégica, e os custos a terceiros é uma consequência “indireta, indesejada, mas inevitável” do exercício da liberdade de expressão.
Já para Bucci, tanto os protestos de domingo, quanto os em qualquer dia da semana, fazem sentido. O problema, em sua opinião, é que os protestos dominicais, que seriam naturais em qualquer democracia, no Brasil estão sendo uma demonstração de “irresponsabilidade, condutas criminosas, antipolítica, anticiência e anti-civilização”. Exemplo disso são os protestos de domingo organizados durante a pandemia que, segundo ele, são “aglomerações atabalhoadas e espalhafatosas patrocinadas pelo presidente da República que sabotam as orientações de isolamento social emitidas pela OMS e por todas as autoridades sanitárias do Brasil”
As Redes
Muitos reconhecem as mídias sociais como instrumento de mobilização para a ação na rua. A Primavera Árabe é um grande exemplo disso. Em 2011, diversos países do Oriente Médio e do Norte da África, como Tunísia, Argélia, Líbano, entre outros, foram às ruas contra os autoritarismos e repressões em seus países. Sabe-se que as mídias foram um dos principais instrumentos utilizados para comover, informar e organizar a população.
Nas chamadas Jornadas de Junho, milhares de brasileiros foram às ruas. No início, com o objetivo específico da redução do preço das passagens do transporte público, que depois se expandiu para um expressão de, principalmente, uma classe média tradicional inconformada com diferentes aspectos da realidade nacional. Sobre esse evento, Oriana Fulaneti, em sua pesquisa “Entre a rua e a rede: uma análise semiótica das manifestações políticas contemporâneas”, afirma que ele teve o ciberespaço como fundamental para sua organização, difusão e manutenção.
Para a pesquisadora, a rede participa como um instrumento de manipulação que sensibiliza as pessoas para os problemas cotidianos, e como meio de divulgação de notícias. Na análise, ela conclui que a intensidade das manifestações recaíam sobre as práticas off-lines: protestos, atos (travar avenidas; acorrentar-se em prédios; interromper aulas etc.); debates; aulas públicas; seminários; saraus e shows de cultura popular; bingos e rifas para arrecadar dinheiro, etc.
Mas as mídias, por elas mesmas, conseguem ser meio de manifestação sem convocar para ação off-line?
Rogerio Chequer afirmou que o Vem Pra Rua, apesar de ter nascido na rua, praticamente migrou para as redes. Na visão dele, hoje elas são instrumentos tão ou mais importantes que as ruas. Ainda, afirmou que, às vezes, eles acham que “o vem pra rua é o vem pra rede”.
Uma das ações virtuais promovidas pelo Vem Pra Rua são os mapas. Eles contêm informações sobre a posição dos representantes (deputados, senadores) em relação a um assunto que vão ser votados, além de seus contatos. Segundo Chequer, os mapas servem para a população cobrar diretamente o seu representante e pressionar o voto em uma determinada direção, exercendo, assim, democracia direta.
Esse é apenas um exemplo que nos mostra que hoje as redes são instrumentos de mobilização. Há, embora em menor quantidade, manifestações e intervenções que se realizam totalmente pela rede, como tuitaços, petições virtuais, pressionar políticos via e-mail, e abaixo-assinados.
As mídias acabam facilitando a mobilização por ajudar a encontrar pessoas com ideias convergentes e criar comunidades. Ainda, por ter um relativo baixo custo de acesso (àqueles que possuem acesso à internet), por resistir ao controle (repressão e censura) e por facilitar o alcance global, quebrando a hegemonia do Estado em território e informação.
Mas é necessário discutir também aspectos negativos dessa intensificação do uso desse novo instrumento, a internet. Adrian pontua que as redes são instrumento de comunicação e podem ser utilizadas para o bem e para o mal: “O mesmo instrumento que permite alguém se conectar com pessoas iguais, com afinidades e problemas específicos compartilhados, permite também que o terrorismo recrute perfis muito específicos a nível global”.
O Facebook é um exemplo de mídia social que privilegia a homogeneidade de seus membros. Isso, na opinião de Adrian, faz com que pessoas tendam a se manifestar e conectar com pessoas que são parecidas; o que tem um reforço da percepção de mundo e preconceitos que ela já tinha. Isso não é positivo em termos de polarização política, por exemplo.
O Whatsapp é outro exemplo das duas faces de utilização das mídias sociais. Ele permite conversas individuais, diretas, criptografadas, o que amplia a comunicação e velocidade da comunicação entre as pessoas. Porém, simultaneamente, permite que fake news circulem sem qualquer mediação.
Ao falar de manifestações políticas nas redes, devemos falar dos aspectos negativos e positivos. É necessário considerar que a transformação política para o campo da emoção, junto ao instrumento da internet, fez nascer novas estratégias políticas, como a divulgação de informações falsas, o uso de perfis robôs, os disparos de mensagens e o microtargeting, que afetam a percepção e a manifestação política.
Ainda, as ofensas aos adversários também acabam se tornando parte da manifestação nas redes. Isso não é uma novidade. Bucci afirmou que o “embaralhamento entre a ofensa pessoal e a manifestação política é antiquíssimo”. Mas online, isso acaba se tornando mais frequente, até por ser mais fácil se esconder ou não falar diretamente, “na cara”.
Apesar de ter aspectos negativos, o uso das redes para a manifestação política vem se intensificando. Mas para Adrian, as ruas e as redes não estão separadas e sim, conectadas. “As redes podem sim permitir coordenação para ações fora das redes, como a ação fora das redes pode ter implicação dentro delas”, pontuou o pesquisador. As manifestações de rua, por exemplo, quando cumprem o objetivo de chamar a atenção das pessoas, acabam repercutindo em discussões nas mídias, gerando um debate público sobre a questão. Por isso, essas duas formas acabam se reforçando. Apesar disso, Adrian diz que ainda estamos muito longe de saber quais são realmente os padrões mais estáveis e comuns de relação entre ativismo on-line e off-line ou os efeito de cada um.
Os Panelaços
Os panelaços são uma forma de protesto que consiste em bater panelas. Ela surgiu em 1971, no Chile, com o nome original em espanhol de “cacerolazo”, em que donas de casa saíram em marcha às ruas de Santiago batendo panela contra a crise econômica no governo de Salvador Allende. Na época, as panelas foram utilizadas pelas chilenas como símbolo da dificuldade de comprar comida, mas em outros momentos, expandiu-se seu significado para expressar, de forma geral, irritação com o governo.
Diversos países usam os panelaços como forma de manifestação, mas eles se popularizaram, principalmente, na América Latina, e têm sido muito adotado na história recente do Brasil. Durante o segundo mandato da Presidenta Dilma Rousseff ele foi muito usado como uma das formas de manifestação do movimento que resultou em seu impeachment.
O compilado de vídeos divulgado pela IstoÉ mostra o primeiro grande panelaço organizado contra a DIlma que se deu durante seu pronunciamento no Dia Internacional da Mulher, em 2015. O bater de panelas foi registrado naquele dia em ao menos 12 capitais e acompanhado de buzinaços nas ruas e gritos de “Fora Dilma” e “Fora PT”. Os panelaços eram um sinal de basta da população em relação ao governo e aos escândalos de corrupção que vinham incomodando desde 2013.
Uma nova onda de panelaços, dessa vez contra o presidente Jair Bolsonaro, foi desencadeada durante a pandemia do novo coronavírus. O bater de panelas nesse outro momento foi uma forma de protesto em relação ao comportamento de Bolsonaro frente à crise, que muitas vezes minimizou a pandemia e a força do vírus.
Chequer afirma que o panelaço é “uma forma mais rápida de responder”, pelo fato de dar para marcar com poucas horas de antecedência, diferentemente de uma manifestação na rua de uma tarde inteira. Além disso, para ele, “é uma forma rápida e fácil de as pessoas serem ouvidas” e, ainda, de medir a temperatura ― é um termômetro que demonstra a aderência da população a uma determinada causa. O Vem Pra Rua esteve presente em organização de diversos panelaços tanto contra a Dilma, quanto contra o Bolsonaro.
Vídeo da DW mostra panelaço contra Bolsonaro em março deste ano, durante a pandemia de coronavírus.
Ainda durante a pandemia, panelaços à favor do presidente foram convocados. Foi-se muito discutido se eles tinham alguma lógica. Como Chequer vê os panelaços como demonstração da força de uma ideia, ele entende que sim.
Adrian explica que as formas de manifestações, independentemente de quais sejam, são repertórios, e não têm donos. Elas são construídas em algum momento por seus atores, se disseminam, passam a ser compreendidas socialmente e se tornam repertórios, ou seja, ficam à disposição da ação política. Os repertórios, segundo o pesquisador, podem ser utilizados para se manifestar a favor ou contra, por bandeiras de direita ou de esquerda. Eles são modo de ação e independem do conteúdo específico da demanda do protesto ou daquilo que quer ser manifestado.
O problema está na forma como esses repertórios estão sendo utilizados. Os panelaços a favor do presidente foram marcados para meia hora depois dos contrários a ele. Dessa forma, o panelaço a favor acaba perdendo o sentido, pois, como coloca Bucci, ele acaba sendo utilizado como uma “manobra diversionista para alegar que as pessoas que batem panela apoiam o presidente da República”. Ou seja, gera uma vinculação falsa.
Além disso, outra questão levantada por Adrian, não só sobre os panelaços mas sobre os reportórios no geral, é a associação que fazemos deles a certos grupos sociais – uma associação meramente subjetiva. Exemplo disso são os relatos na internet de que pessoas de esquerda estranharam bater panelas contra Bolsonaro, isso porque eles foram utilizados com muita força contra a Dilma. Essa é uma consequência da percepção subjetiva da população, que tem na memória a associação de uma determinada bandeira a um repertório. Mas, segundo Adrian, “o que é próprio do repertório não fica associado definitivamente a nenhuma bandeira”. As formas de manifestação podem ser “reutilizadas e ressignificadas para diferentes bandeiras”.
Para onde as manifestações podem nos levar?
Além das citadas, existem diversas outras formas de manifestação. As ruas, as redes e os panelaços são exemplos das formas mais utilizadas atualmente no Brasil.
A variedade das formas também está associada às suas diferentes naturezas. Determinadas manifestações podem estar vinculadas a determinada região de grupo social. Por exemplo, greves e operações de lentidão na produção estão vinculadas à região do trabalho. Já tuitaços e multiplicação de links, à internet.
Porém, é possível dizer que uma forma de manifestação é mais efetiva que outra? Que há uma forma capaz de produzir mudança de fato? Ou que elas, cada uma com seu objetivo, podem se complementar?
Adrian afirmou que, em abstrato, sem levar em consideração aspectos contextuais como momento político, os atores e a formação do Estado, nenhuma forma é superior em questão de efetividade. Esta depende desses aspectos. Além disso, é preciso pontuar que os atores da ação política não ativam somente uma única forma, mas se utilizam da combinação das formas. Isso fica evidente com as já citadas manifestações de ruas, e até os panelaços, que tiveram sua organização, mobilização e divulgação principalmente pelas mídias sociais.
Como já pontuado, as manifestações políticas são direito assegurado e fazem parte do exercício da democracia. Portanto, é importante que diferentes grupos sociais e políticos continuem exercendo seu direito. Continuem indo às ruas, utilizando as redes, fazendo panelaços, etc. Ou seja, utilizando sua voz, seja qual for a forma ou a combinação de repertórios.
Mostrar força, chamar a atenção, isso são coisas que as manifestações conseguem fazer. Entretanto, se elas geram mudança de fato, depende dos contextos. Para o cientista político Adrian, é ativando as diferentes formas alternada e concomitantemente, considerando as demandas, os contextos políticos, os alvos e os efeitos desejados, que os objetivos tendem a se concretizar.
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