Em mergulho no mundo dos workaholics, prazer e compulsão se confundem
Por Amanda Péchy Duarte (amandapechyduarte
Pâmela Carvalho acorda às sete, porque entra às oito, e mora perto do trabalho. De vez em quando, acorda às seis, ou às cinco, ou quem sabe, porque fica insone. Ela organiza e prepara material do seu TCC, ela vai para o trabalho como social media, ou estrategista de mídias digitais, da Uol, almoça em uma hora, ou não almoça. Faz inúmeras análises e agendamentos, e depois vai para o escritório da ONG onde é voluntária, a TETO. Reunião nº 1, reunião nº 2, reunião nº 3, reunião nº 4, vai para casa e faz uma lista do que tem que fazer no dia seguinte. Ela assiste a um episódio de série e toma um calmante para dormir. Está com a cabeça pilhada — coisas para resolver antes de acabar o trabalho na Uol, para resolver antes de dirigir uma obra em Campinas com a TETO, planos para se tornar mais independente na carreira. Sua motivação vem de uma questão de status, de querer ser autossuficiente. Se manter, mas se manter bem. Subir o máximo que puder. Pâmela é jornalista, e viciada em trabalho.
É irônico escrever sobre workaholics depois de passar quase dois dias sem fazer nada — ou nada relacionado a essa crônica, pelo menos. Gosto de trabalhar, principalmente depois do alívio que vem com o pontapé inicial, mas está longe de ser um vício. Uma parte do que me instiga vem daí: como é possível tirar um gozo tão grande de algo sem o qual me parece possível viver? O trabalho faz parte da vida. Deixei de tentar entender se é por ser uma obrigação, por uma necessidade inerente do ser humano de se imprimir no mundo, se o primeiro gera o segundo, ou vice-versa. Mas a lógica do workaholic, essa dependência, essa labuta fanática, não faz sentido enquanto estou me exercitando, assistindo um filme, lendo por prazer, abraçando, ou nada. Há o tédio, sim, sempre há. É concebível que, se o homem não possuísse sintomas do vício em trabalho, o tédio não existiria, e sim uma preguiça calma.
Isso me leva à outra parte da instigação. O meu gosto pelo trabalho deve ter alguma raíz na lógica workaholic. Além disso, tem uma parte de mim que deseja trabalhar muito, e gostar de trabalhar muito. Trocar o stress do procrastinador pelo stress do workaholic. Essa vontade é curiosa, devido à consciência de que estaria apenas substituindo. Parece haver mais prazer atrelado à dor do trabalho, parece que a dor do trabalho é melhor que a dor da preguiça. O psicanalista Paulo Cabral afirma que o trabalho é a melhor maneira de se inserir na sociedade. “Você é reconhecido, é um excelente meio para formar a identidade. Quando as pessoas se conhecem, normalmente perguntam o que fazem. Além disso, segundo alguns psicanalistas, é excelente ferramenta para reduzir um sentimento inconsciente de culpa.” Não é a única resposta possível, mas auxilia o caminhar do pensamento.
Carol Soares é, como eu, repórter da Jornalismo Júnior. Mesmo em dúvida se o termo workaholic a ela se aplica, concedeu uma conversa informal. Essa dúvida é muito comum, já que não há especificações quanto aos sintomas, ao perfil psicológico. Sua conceitualização habita apenas o distante reino da Academia, com a possibilidade de ser mais popularizada no futuro. Para Paulo, o workaholic é um sujeito que se orgulha de trabalhar muito, é alguém que tem que trabalhar muito porque acha que tem, ou se sente bem fazendo isso. “Começamos a falar em vício quando algo passa a atrapalhar a vida. Alguém sente que a situação está ruim porque não consegue fazer as próprias coisas, ou porque está afetando demais as pessoas ao seu redor. O marido, ou mulher, reclamam do trabalho em excesso, os filhos, que não veem o pai, a mãe. A deterioração das relações sociais é a melhor maneira de perceber um vício.” Eles também são aqueles que possuíram livre — com muitas aspas — escolha da profissão. Pâmela escolheu jornalismo. Escolheu mídias sociais. Escolheu trabalhar muito. Carol escolheu a USP, trabalhar na Jornalismo Júnior. Muitos não são felizes de escolher. Essa liberdade é um dos divisores de águas entre o vício e o puro trabalho em excesso.
Além disso, é um termo anglófono, sem tradução para o português. Tenho que admitir que essas palavras intraduzíveis me incomodam um pouco — principalmente agora, ao escrever, porque “workaholic” não está sublinhado de vermelho para indicar uma palavra não identificada no dicionário em português — mas deve ser apenas algum resquício de nacionalismo misturado a um ego ocasionalmente inflado. A língua está em constante mudança, e um dos atores são os estrangeirismos. É natural. Mas o fato de ser uma palavra em inglês carrega ideologia: faz referência ao mundo dos business, start-ups, brainstormings, coffee breaks, jobs, deadlines. É o modelo empresarial estadunidense em que o mundo quer se basear. “O workaholic está sustentado em parâmetros de organização empresarial, relacionados ao melhor modo operante para tocar investimentos. Só empresário fala em workaholic. Seja um multimilionário, seja um autônomo que faz freelance e tem que viver às margens da CLT”, afirma Paulo.
A pressão, a paixão e a culpa
Sabendo disso, ou não, Carol e Pâmela apresentaram semelhanças. Me afastarei de uma análise da mente humana focada em comparações entre as duas, já que é um espaço amostral exíguo e me sentiria arrogante fazendo algo que considero tão superior às minhas capacidades. Contudo, me darei o luxo de algumas comparações comportadas.
A motivação do trabalho em excesso foi um dos principais pontos que rumaram minha investigação. Há um impasse entre a pressão e a paixão como elementos motivadores. Talvez ambos sejam, e talvez ambos tenham, na realidade, o mesmo berço. Surgiu um padrão, porém: a pressão do workaholic é predominantemente interna. Tanto Carol, quanto Pâmela, afirmaram que se cobram mais que outros as cobram. “A pressão para trabalhar sempre é minha. Interpreto poucas coisas que escuto como pressão externa”, diz Pâmela.
A sorocabana vem de uma família originalmente muito pobre, mas seus pais conseguiram se estabilizar e pôde usufruir de uma infância confortável. Ela conquistou uma vaga na USP, algo impensável para a geração de seus avós. “Tenho que aproveitar todos os meus privilégios”, diz. “Sinto uma pressão muito bizarra por ter essa origem. Tenho que ser a melhor em tudo. Sei que não é necessariamente assim, mas é o que sinto.” Somado a isso, ambas têm transtorno de ansiedade generalizada, e encontram no stress do trabalho uma espécie de calmaria. Há aí um desafio à noção de que o trabalho causa a doença, que é substituída pela de que a doença leva ao trabalho. Agora, desvendar a origem dessa autocoerção são outros quinhentos. Como disse Paulo, e tenho certeza muitas outras pessoas, todos têm uma história, e existe um porquê para cada um fazer o que faz. Ele acrescenta, ainda, que cada um tem um ambiente que tem poder de rechear ou desnutrir de possibilidades e potencialidades a vida. Assim, só com uma análise próxima, cuidadosa e extensa seria possível descobrir porque Pâmela, Carol, Paulo, eu, você fazemos o que fazemos. Há uma comum pulsão de produção, que possui infinitas origens.
A paixão pelo trabalho existe, de alguma forma. Carol é menos positiva em relação a sua compulsão, mas admite ter uma vontade, um gosto pelo trabalho. Para ela, há uma felicidade na sensação da tarefa cumprida, o prazo respeitado. Pâmela é mais entusiasta. Sente prazer em trabalhar, tem gozo de atingir objetivos e de ver sua produção respeitada; gosta de usufruir da liberdade que tem para criar e exercer suas habilidades e pensamento lógico. Tem vontade de expansão, de ser mais, de ser dona de si: “Quero abrir meu próprio negócio, uma agência de conteúdo. Quero fazer nome como freela, para poder gerenciar meu próprio tempo e poder trabalhar para mim mesma.” Ambas gostam do que fazem.
Paulo ressalta que paixão não é o melhor nome para a percepção positiva do trabalho: “Paixão é momento. Ninguém consegue estar apaixonado o tempo inteiro.” Um casal de amigos recentemente me contou que já não sentem uma paixão, exatamente, que agora se amam. E é diferente. Não iria tão longe a ponto de dizer que, como namorados, trabalhadores viciados estão em um status mais amoroso que apaixonado em relação a seu posto, mas há algum gozo aí. Talvez mais próximo da luxúria. Pâmela se sente poderosa e potente trabalhando, o que denuncia um investimento libidinoso na atividade. Ela usou a palavra “tesão” referindo-se a trabalho. Sua exaustão pode ser resultado do uso desenfreado de sua energia vital em uma só área de sua vida. É uma vontade, uma necessidade, e esse ciclo do trabalho, o perder-se, pode ser comparado a muitos outros vícios. Na fala de Pâmela, ser workaholic torna-se semelhante a ser hedonista: “Sou uma pessoa extremamente dinâmica, não me vejo de outra maneira agora. Quando for mais velha, vou precisar de mais estabilidade, uma rotina regular. Não vou pegar tantos trabalhos paralelos, nem ter a mesma energia. O tempo que eu tenho para ser assim, desse jeito que me faz feliz, trabalhando para caralho, é agora.”
Há um sentimento terceiro, contudo, que se relaciona tanto à pressão quanto à paixão: a culpa. Carol não consegue ficar sem nada para fazer, e a improdutividade faz com que se sinta inexistente. Isso leva a invisibilidade social a outro nível. Não são apenas os corpos improdutivos externos que vemos como invisíveis — moradores de rua, inválidos, dependentes químicos —, mas os nossos próprios corpos. Desaparecemos na ociosidade. “Quando não estou trabalhando, sinto que preciso fazer alguma coisa. Quando estou descansando, tenho a sensação de que não devia estar descansando. Mesmo quando eu sei que o meu corpo precisa descansar”, afirma Pâmela. Há uma fusão entre o ser e o fazer. Se Pâmela não consegue algo, e é muito exigente com os colegas e consigo mesma, se sente derrotada: “Me acho um fracasso quando eu fracasso.” Novamente, há um sentimento de culpa generalizado, que possui intermináveis origens. Ele se relaciona fortemente à moral cristã, que predomina no Ocidente. A partir do momento que Jesus Cristo morre pelos pecados, todo ser humano pecaminoso — um belo pleonasmo — é culpado de seu sacrifício.
O cristianismo pinta o trabalho de modo um tanto quanto nefasto. É o preço que a humanidade deve pagar pela dádiva da vida: o homem, com o suor do rosto, a mulher, com a dor do parto. É, ao mesmo tempo, graça e obrigação. A reforma protestante muda a pintura e passa a olhar o trabalho de maneira mais favorável, já que a labuta como vocação passa a ser indicador da predestinação, da salvação. Trabalhar muito deixa de ser obrigação e torna-se lindo. A peste vira glória. Por isso o workaholic é um viciado socialmente aceito. Se alcoolismo fosse um sinal divino há quinhentos anos atrás, talvez o alcoólatra não fosse discriminado. Ou o maconheiro, o craqueiro. “Por enquanto, os benefícios de ser workaholic superam os malefícios. Dizer acordar às quatro horas da manhã para trabalhar tem um efeito muito diferente de dizer acordar às quatro da manhã para comprar uma pedra de craque, porque tinha que fazer isso. São vícios, ou ações incontroláveis, que têm impactos muito, muito diferentes na sociedade”, diz Paulo. Contudo, é possível que a repulsa social aos outros tipos de vício esteja relacionada à própria insatisfação com o trabalho. Alguém improdutivo gera revolta porque há um desejo generalizado de improdutividade. Os workaholics são aqueles, portanto, que trabalham sem o sentimento de indignação com a ociosidade alheia.
“Tem uma anedota, meio piada”, conta Paulo, “sobre um matemático e filósofo inglês, chamado Bertrand Russell, que dizia existirem duas formas de trabalho: aquela que é deslocar um corpo em relação à terra por intermédio da força, e outra que é mandar alguém fazer isso.” A liberdade do trabalho é uma promessa mística feita pela Modernidade. A tecnologia, as máquinas, seriam responsáveis por nos livrar de trabalhos manuais que precisam ser feitos, e permitiriam o ócio e a preguiça. Contudo, algo furou aí. Na anedota de Russell, a personagem mais importante é a primeira, porque sem ela, a segunda é supérflua. Para que exista dominador, é preciso existir dominado.
A brecha para sair do ciclo do trabalho oferecida pelas máquinas nunca esteve aberta, porque o progresso é secundário à dominação. “Segundo Marcuse, o progresso é consequência. A intenção é perpetuar a dominação de poucos sobre muitos. Então era uma falácia. Era super ideológico que as máquinas trariam liberdade, essa ideologia que esconde, cobre, escamoteia os objetivos de dominação. Porque hoje em dia, você pode ser feliz, pode cultivar prazeres e excessos, e você é dominado. Você de fato não tem a liberdade, mas uma consciência feliz, apaziguada”, diz Paulo. A preguiça mora nessa ferida, nesse lugar em que a dominação tenta se esconder e opera. Ela denuncia isso. Talvez por isso o workaholic seja tão socialmente aceito: é o membro perfeito da sociedade. Uma consequência social. Está viciado, apaziguado pelo vício, e, ao mesmo tempo, produtivo. A preguiça é um protesto. Mas se o preço do feijão não cabe no poema, do arroz, gás, luz, telefone, nem a sonegação do leite, da carne do açúcar, do pão, então a preguiça também não cabe no poema. Ela não é um direito, e sim um privilégio.
Duvido que haja um mundo sem trabalho, ou sem dominadores e dominados. Sou antiutopista. Também duvido que o workaholic seja um indivíduo que precisa de tratamento para vício, ou que o único motivo do trabalho em excesso seja o prazer da profissão e vontade pessoal de produzir. Duvido que Pâmela e Carol sejam apenas ferramentas apaziguados da Modernidade, e duvido que não haja algum pobre workaholic. Também sou antimoderação, mas talvez seja o caso de algum tipo de — suspiro — equilíbrio. Enquanto as práticas de um workaholic forem em prol da vida, está tudo certo. Enquanto as atividades de um preguiçoso forem em prol da vida, está tudo certo. E me parece que o direito à preguiça é um caminho para essa liberdade-corda-bamba. A corda é a vida, o vazio é a pressão (interna e externa), a luxúria e a culpa, e a rede de segurança, o sofrimento.