Por Débora van Pütten (deboravp@usp.br)
O coletivo “Ilustradores São Autores” publicou, em 2023, sua primeira carta aberta. Nela, os mais de cem membros do movimento declaram que “o livro ilustrado é formado por duas narrativas: narrativa de texto (escrita pelos autores das palavras) e narrativa imagética (ilustrada pelos autores das imagens)”. Eles também afirmam que palavras e desenhos trabalham juntos para contar uma história.
Carol Fernandes, ou Carol Caracol Ilustra, ilustradora e escritora de livros infantis, pedagoga de formação e membro do coletivo, explica que há uma codependência entre palavras e imagens: “Se você retirar uma delas, o livro não fica de pé”. Isso se aplica inclusive para os que são constituídos de apenas um desses elementos: livros-imagem, que, por exemplo, são concebidos a partir de palavras, mesmo que elas não sejam apresentadas ao público no final. Segundo a autora, a palavra depende da imagem para contar a história e a imagem depende da palavra para a criação de sentido. Através desse jogo relacional, o leitor constrói sua interpretação da obra.
Diante dessas questões, surge a reivindicação em relação à nomeação de ilustradores enquanto autores nas capas de livros e em fichas catalográficas. O reconhecimento é importante em contextos de premiação, bem como para o próprio registro histórico de produção da arte visual no Brasil e para a preservação de direitos autorais, explica Carol.
Além disso, entender que palavras e imagens possuem a mesma relevância na composição de um livro ilustrado (infantil ou não) retira as ilustrações de uma posição de acessório. Para a ilustradora, em uma analogia, livros são sustentados por um tripé, cujos pés são: palavra, imagem e objeto (que seria o próprio livro material e sua diagramação, encadernação e formato). Tal tríade é pensada em função de uma narrativa: cada parte tem sua intencionalidade, sua função e todas têm igual importância.
O papel das ilustrações
“A função de uma ilustração varia de acordo com a obra, mas, no geral, ela pode fazer tudo que um texto verbal faz”, diz Aline Frederico, professora no curso de editoração da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de literatura infantil. Imagens dialogam com o texto e ampliam os significados dele, ajudam na ambientação da história, conversam com a materialidade do livro e ampliam possibilidades de imaginação, conta.
A pesquisadora ainda destaca mais duas funções: informativa e formadora de vínculos.
Quanto à primeira, imagens são capazes de resumir informações de maneira simplificada e mais clara do que por meio de palavras. Fora do contexto da literatura infantil, é possível perceber isso em outros formatos de textos: jornalistas e cientistas costumam expor dados numéricos e grandes conjuntos de informações de maneira esquemática, como por infográficos.
Em relação ao segundo ponto de destaque, Aline explica que os desenhos e as cores que os compõem permitem que o público leitor experiencie emoções diferentes, a partir das quais ela constrói vínculos com aquela narrativa.
Mônica Eugênia, pedagoga e linguista, apresenta outros aspectos na discussão sobre a função das imagens na literatura infantil. Em primeiro lugar, ela diz que as ilustrações ajudam uma criança a treinar “o poder de observação do mundo” e a ajudam a elaborar conceitos a partir desse exercício. Em segundo lugar, ressalta o papel de desenhos e outras formas de expressão visual como agentes de reforço da aprendizagem.
“Quando se está em um ambiente de alfabetização, você vê que as próprias letras são acompanhadas de figuras. Por exemplo, em um alfabeto colado na parede, a letra ‘J’ pode estar acompanhada de uma joaninha”, explica. Nesse cenário, a criança pode até não se lembrar do nome da letra, mas ela consegue se lembrar do som que a pronúncia da letra tem quando a relaciona com o desenho associado em sala de aula.
Imagens e formação de leitores
“Já dizia Paulo Freire: ‘a leitura do mundo precede a leitura da palavra’. Antes de ser alfabetizada, a criança já apreende o mundo, através, inclusive, de recursos visuais”, afirma Mônica.
Para a pedagoga, há uma gama de possibilidades imensa do que pode ser trabalhado através de imagens. As figuras não são e nem podem ser os únicos recursos pedagógicos disponíveis, até porque crianças com deficiências visuais também ocupam ambientes de aprendizagem, mas, ainda assim, elas são úteis. “Com as imagens a gente consegue abordar questões de sociabilidade, empatia e limites”, diz.
Para trabalhar com livros ilustrados em ambientes de ensino, as três entrevistadas deram respostas semelhantes: o profissional (seja uma professora ou uma bibliotecária, por exemplo) precisa garantir que a criança tenha contato tanto com as palavras quanto com as imagens, ao mesmo tempo, mas a forma que esse contato se dá pode mudar.

“A maneira como um leitor se relaciona com um livro é subjetiva. Às vezes a criança só quer folhear o livro ou só quer ver a capa, em outras ela vai pedir para você ler a história, o que importa é permitir que a fruição seja livre”, afirma Carol Fernandes.
Já em contextos de contação de histórias envolvendo públicos maiores, quem apresenta a história deve garantir que os presentes vejam as palavras e as ilustrações simultaneamente. Aline Frederico ressalta, ainda, que as crianças precisam ter tempo de ver e de ler a imagem.
De acordo com a pesquisadora, o papel de quem conta é de fazer uma mediação entre o leitor e o livro, acrescentando ao longo do processo perguntas que retomem figuras já vistas no livro. “A contação de histórias envolve diálogo, você tem que perguntar o que a criança está vendo e precisa ir e voltar nas páginas”, diz.
Nas escolas, por sua vez, Mônica comenta que a professora precisa atuar no sentido de construir uma cultura de leitura literária com base nos interesses e nas necessidades dos alunos. Antes de levar os livros para a sala, ela explica que os docentes os leem em casa e, a partir de então, estabelecem como será a abordagem com os alunos.
“Primeiro eu sondo o que o aluno conhece sobre o assunto e assim eu consigo situar a turma em relação ao que vamos falar dali para a frente”, afirma. Ou seja, se ela decidir trabalhar com livros sobre a Amazônia, por exemplo, vai perguntar às crianças o que já ouviram e já viram sobre a floresta. Passado esse momento, na leitura do livro, ela explica que a estratégia varia com o profissional, “tem quem decore o texto, tem quem coloque o livro à frente do corpo e se vira para ler”. Apresentada a obra, chega o momento de propor atividades a partir do que foi lido, visto e ouvido. “Pode ser uma atividade escrita, uma atividade em que algumas das crianças contem para as outras a história a partir das próprias palavras e por aí vai.”
A dinâmica com a obra está sujeita a inúmeras interferências, mas, independente de como seja, palavras e imagens são trabalhadas igualmente na medida em que a faixa etária dos alunos permite.
Criando uma ilustração
Em relação a interferências que podem fazer parte do processo criativo de uma obra, Carol comenta que as características individuais de um autor se fazem presentes no objeto cultural que ele produz. “A gente ilustra a partir de uma experiência de vida”, diz Carol Fernandes, em referência ao termo “escrevivência”, conceito criado pela escritora Conceição Evaristo.
Ao abrir o portfólio da ilustradora, é possível perceber que alguns elementos estão presentes, como negritude, animais e conflitos existenciais. “O que para algumas pessoas pode ser só uma temática, para mim é o todo”, afirma. Carol é uma mulher negra que gosta de bichos e de falar sobre o viver — tais elementos transbordam em sua produção artística.

A ilustração, contudo, também é um lugar de expressão do coletivo, especialmente quando o produto cultural do qual ela faz parte resulta de um trabalho em muitas mãos. Um mesmo livro pode ter um ou mais escritores, bem como um ou mais ilustradores. Nesse contexto, o diálogo entre as partes e a mediação do editor são fundamentais.“Quando se trabalha em conjunto, a escritora interfere nos desenhos e a ilustradora interfere nas palavras. É uma troca constante, assim que nasce uma obra”, a artista afirma
Os autores podem conversar diretamente entre si, mas a figura do editor é indispensável para se chegar em consensos que levem em consideração o projeto inicial da obra, a liberdade criativa do desenhista e os recursos financeiros disponíveis para a produção do livro.
Em outros cenários, é o próprio editor a ponte entre escritor e ilustrador ideal. “Tradicionalmente, o escritor manda o texto, o editor analisa e encontra o ilustrador que ele acha que dialoga bem com o conteúdo do livro”, diz Aline Frederico. A pesquisadora explica que esse caminho é comum porque os editores têm um repertório amplo de ilustradores e conhecem tendências e técnicas de ilustração.
Também há situações em que o escritor e o ilustrador são a mesma pessoa. Nesses casos, pode ser mais fácil (ou não) saber que direção seguir para conceber as ilustrações, explica Aline.
O projeto Picturebook Makers (“Criadores de livros ilustrados”, em tradução livre) é um acervo que conta com relatos de inúmeros autores. Há casos como o de Elina Braslina, da Letônia, que conta como foi ilustrar o primeiro livro do qual ela também era escritora: trata-se de uma obra no qual as ilustrações surgiram primeiro e as palavras eram poucas. Outro caso é o de Francesca Sanna, que elaborou o livro The Journey (Nobrow Press, 2016) com base em pesquisas prévias sobre migração. A autora conta processos que tenta manter sempre seguir quando faz um novo livro, como a definição inicial de cores e características específicas para seus personagens principais, que primeiro são desenhados à mão e depois digitalmente.

A centralidade da imagem
Aline Frederico afirma que há muitas formas de apresentar uma informação através de imagens. Pode se tratar de um desenho, mas livros também podem ser ilustrados por fotografias, por exemplo, — inclusive os infantis.
Nesse contexto, Mônica Eugênia lembra dos livros didáticos. “Apesar de possuírem objetivos diferente em relação a livros com ilustrações [aqueles que podem ser compreendidos ainda que as imagens sejam retiradas] e livros ilustrados [aqueles cuja presença das imagens é essencial para a total compreensão da narrativa], os livros didáticos ainda assim são carregadores de imagens de caráter formativo”, explica.
Saindo da esfera dos livros, alguns pesquisadores defendem o conceito de sociedade da imagem. Em outras palavras, trata-se do fato de que a imagem ganhou força nos processos comunicativos modernos, especialmente a partir da atuação das mídias de comunicação. Por exemplo, no livro A sociedade do espetáculo (Contraponto, 2007), Guy Debord centraliza as imagens enquanto mediadoras de relações sociais.
Hoje em dia, praticamente todas as redes sociais e atividades associadas a lazer e tecnologia envolvem imagens. O Instagram e o TikTok funcionam com base nelas, sejam fotografias, desenhos ou vídeos. Trends famosas envolvendo inteligências artificiais generativas giram em torno da produção de imagens com familiares falecidos e personalidades famosas.
Tal valorização da imagem se reflete na literatura. “Há uma concepção de que as ilustrações servem só como suporte para quem está aprendendo a ler e que, conforme se aprende, a imagem não é mais necessária”, Aline afirma. “Mas tem muitos exemplos de que uma ilustração pode ser complexa até mesmo para jovens e adultos”, continua. A professora traz como exemplos editoras que reconhecem a influência da cultura visual atual e investem em trabalhos ilustrados para vários públicos, como a Darkside e a Caixote com o selo “O Tal”.
A pesquisadora diz que imagens possuem poder persuasivo e camadas ideológicas e, logo, precisam ser tão lidas quanto palavras. Viver em uma sociedade de imagens exige que a pessoa tenha sido formada criticamente para a leitura desses objetos visuais, o que começa na infância, mas não acaba nela, Mônica acrescenta.






