Por Beatriz Sandoval (beatrizsandoval@usp.br)
Em pleno 2024, ano em que se celebram os 500 anos de Camões, quem roubou a cena nas comemorações e homenagens à literatura e à língua portuguesa foi um brasileiro — cuja peça faz da palavra um espetáculo. Com todas as sessões esgotadas de 16 a 25 de maio, Gregório Duvivier chega a São Paulo com um monólogo de uma hora e meia — mas tão envolvente que o tempo parece desaparecer e curvar-se diante dos olhos do espectador.
Apesar de ser um monólogo de longa duração, Gregório não brilha sozinho. No palco totalmente limpo, ele divide os holofotes com sua irmã, Theodora Duvivier, que assina as projeções que acontecem ao fundo do palco: imagens que ampliam a narrativa e ilustram, com delicadeza e precisão, elementos como acentos gráficos e palavras em destaque. Soma-se a esse diálogo visual a presença do músico Pedro Aune, que assina a trilha sonora ao vivo, essencial para a atmosfera poética e rítmica da peça.

[Imagens: Francisco Silva e Isabela Perez/Acervo Pessoal]
Com direção e dramaturgia da atriz Luciana Paes, uma das fundadoras da celebrada Cia. Hiato e estreante na direção teatral, a artista acredita que Gregório Duvivier tem ideias urgentes a compartilhar com o mundo — e é essa convicção que a move, independentemente de rótulos. Para ela, O Céu da Língua não é um recital tradicional, mas tampouco abandona a poesia: a dramaturgia de Gregório, segundo a atriz, tem um lirismo próprio, ainda que disfarçado. Na sua visão, o uso do stand-up comedy é, na verdade, uma espécie de armadilha criativa para falar de literatura. Já Gregório define a peça como um encontro entre o poema e a piada — um espetáculo que habita essa fronteira.
“O meu interesse está no cruzamento dos dois. Em um humor que sabe lidar com a profundidade. E em uma poesia que brinca também com a superfície. Então, nessa esquina do humor com a poesia, eu acho que tem um manancial de material artístico.”
Gregório Duvivier em conversa com a plateia após a sessão

[Imagens: Francisco Silva e Isabela Perez/Acervo Pessoal]
Ao explorar o idioma como quem caminha por um campo inusitado e busca pelas “metáforas mortas”, o comediante propõe uma escuta mais atenta às belezas escondidas do falar cotidiano e descomplica a poesia e o fazer poético. A língua portuguesa, com sua musicalidade tortuosa e suas ambiguidades férteis, é tratada aqui como personagem principal — viva, pulsante, às vezes cômica, outras vezes comovente.
“Você pode gostar da poesia. Ela está na sua vida. Ela vai te perseguir onde quer que você vá. Então você não vai conseguir fugir dela.”
Gregório Duvivier
Ao longo do espetáculo, o ator transita por diversos temas ligados à língua portuguesa — do acordo ortográfico às funções da linguagem, passando pelo processo de ressignificação das metáforas mortas. É justamente na fusão autêntica entre o humor e a declamação de textos que percorrem de Camões a Fernando Pessoa, e chegam a Caetano Veloso, que o lirismo escorre pelo cotidiano, revelando poesia onde menos se espera.
Além da homenagem clara à cultura linguística, Gregório não deixa de lado seu clássico tom crítico em sua peça. Ele utiliza das mesmas palavras poéticas e cheias de lirismo para criticar e reforçar uma de suas convicções mais profundas: a de que elas não são apenas ferramentas de comunicação, mas a própria matéria da vida em sociedade. Para ele, lembrar que “as palavras não são só palavras” é essencial num tempo em que o discurso público se vê constantemente ameaçado. A democracia, afirma, é feita de palavras — ela própria é uma palavra. Seu espetáculo, portanto, é também um manifesto em defesa do idioma como instrumento de pensamento, diálogo e liberdade.
“Você vai estar sempre cercado com as palavras. E as palavras nunca me deixaram sozinho. Eu sempre tive essas companheiras. Então, eu queria dividir essa paixão pelas palavras e, quem sabe… Contaminar as pessoas com essa paixão.”
Gregório Duvivier

[Imagem: Guilherme Bahiense/Acervo Pessoal]
Quem conhece Gregório Duvivier apenas como o humorista do Porta dos Fundos pode se surpreender com a faceta lírica que ele revela em O Céu da Língua. Ao longo do espetáculo, essa dimensão poética — que dialoga com sua formação em Letras — emerge com intensidade em diversas cenas, especialmente nas declamações dramáticas e comoventes de textos literários. Um dos momentos mais marcantes é a leitura do poema “Adeus”, de Eugénio de Andrade, em que ressoam versos melancólicos como “O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas.” Nessas passagens, o riso cede espaço ao silêncio atento da plateia, e o comediante dá lugar a um intérprete sensível, que enxerga na palavra não apenas humor, mas também dor, memória e finitude.
Mesmo nos trechos mais líricos, a peça não perde sua veia cômica — as risadas surgem espontâneas, quase impossíveis de conter. Para Gregório Duvivier, o riso tem um papel essencial: ele é fértil em relações, favorece os vínculos humanos e multiplica os encontros. Em sua visão, rir é também uma forma profunda de conexão.
“O riso, ele é fértil de relações, ele fomenta, mesmo, e facilita as relações humanas, assim, multiplica as relações.”
Gregório Duvivier
*[Imagem de capa: Beatriz Sandoval/Acervo pessoal]