Por Ana Vitória Barbosa (anavita.nb@usp.br)
A série The Last of Us (2023 – presente), da HBO, teve a estreia de sua segunda temporada em abril com o lançamento semanal de episódios até o dia 25 de maio. A produção é uma adaptação do videogame de nome homônimo desenvolvido pela Naughty Dog e lançado para PlayStation em 2013.
O jogo foi aclamado por possuir uma narrativa emocionante e personagens complexos. A história se passa nos Estados Unidos, em um mundo distópico e destruído depois do fungo Cordyceps começar a infectar humanos e transformá-los em zumbis. Os acontecimentos principais da trama são desencadeados após o contrabandista Joel Miller (interpretado por Pedro Pascal no seriado) ser encarregado de levar a jovem de 15 anos, Ellie (interpretada por Bella Ramsey na adaptação), ao outro lado do país.
A produção televisiva desenvolvida por Craig Mazin, o mesmo criador da série Chernobyl, e por Neil Druckmann, criador do jogo, aproveitou aspectos importantes da narrativa original. Exemplos desse uso são as cenas inspiradas nas cutscenes (sequências nos videogames que não são interativas) e a reprodução da ambientação do jogo.
O seriado não é uma mera repetição: ele inseriu novos elementos nessa mídia, como os detalhes sobre o surgimento da infecção fúngica e um desenvolvimento maior de personagens secundários. Uma amostra da ampliação do universo é o episódio “Por Muito, Muito Tempo” da primeira temporada, inteiramente focado no casal homossexual Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett). Esse arco recebeu reações positivas do público, principalmente daqueles que entraram em contato com o universo pela primeira vez através da série. A repercussão aconteceu porque, ao aproveitar a narrativa do jogo para a criação desse mundo distópico, deram destaque para o relacionamento entre as personagens, um elemento importante no desenvolvimento do conteúdo.
Como tudo começa
O jogo The Last of Us (Naughty Dog, 2013) é dividido em duas partes: a primeira temporada da série é baseada na parte 1, enquanto a segunda temporada é baseada na parte 2, e foi lançada em 2020. Os eventos da segunda parte ocorrem 5 anos após o encerramento do primeiro arco narrativo em ambas as mídias.
O gênero de fungo Cordyceps, que infecta insetos por meio de esporos, realmente existe e foi a inspiração para a criação dos zumbis no jogo, mas a maneira como ele surgiu e se alastrou no universo de The Last of Us só foi revelada pela série. Em HBO’s The Last of Us Podcast, Craig Mazin diz que foi uma decisão dele introduzir o fungo por um programa de talk show que existe no universo da série, um dos traços da sua influência criativa na produção. Em outro episódio é mostrado que o surto inicial foi em uma plantação de trigo na Indonésia, na cronologia da história, esse evento aconteceu em 2003. Essas duas interpolações de eventos introduzem uma explicação científica para o surgimento e alastramento da pandemia fúngica, que não existe na narrativa original do jogo.
A história realmente começa no dia anterior ao surto, com uma breve apresentação do relacionamento de Joel com a sua filha, Sarah (Nico Parker), e seu irmão, Tommy (Gabriel Luna). Mas a dinâmica é interrompida rapidamente com o surgimento dos infectados, o que gera cenas de ação em que essas personagens lutam pela própria sobrevivência. Esse trecho se encerra com a morte de Sarah, um grande trauma na vida de Joel.
Ocorre um salto de 20 anos no futuro e são revelados elementos importantes para o entendimento de como funciona o mundo distópico do seriado. A primeira ambientação é em uma das Zonas de Quarentena, locais isolados de infectados, mas controlados pela FEDRA — Federal Disaster Relief Agency (Agência Federal de Auxílio a Desastres, em tradução livre) —, uma célula de resposta à pandemia criada pelo governo que se tornou extremamente autoritária e repressora.

O foco da história é o relacionamento de Joel e Ellie. Mas os dois passam por diversas situações até criarem um laço afetivo entre eles. Em 2023, Joel é contrabandista e trabalha com Tess (Anna Torv), amiga e parceira de profissão de longo prazo. O irmão dele, Tommy, não está comunicável há algum tempo e os dois parceiros decidem procurar uma bateria de automóvel para poderem usar um carro ao tentar encontrá-lo. Durante esse arco, que equivale à main quest (missão principal) do primeiro jogo, as personagens esbarram em Marlene (Merle Dandridge), líder dos Vagalumes, um grupo de resistência que surgiu em oposição à FEDRA. O encontro termina em um acordo entre as duas partes: Marlene, que estava ferida e sem aliados por perto, sugere que os contrabandistas levem Ellie até outra base dos Vagalumes e, em troca, a dupla conseguiria a bateria de que precisava. Apesar da relutância de Joel, Tess o convence a concordar com o plano e, assim, inicia-se o conflito da narrativa.
Mais do que um videogame, é uma interpretação de mundo
Thífani Postali, doutora em multimeios e coautora do livro The Last of Us – Olhares sobre a narrativa dos jogos (Provocare, 2021), comentou em entrevista para o Sala33 sobre as temáticas abordadas no videogame. Uma perspectiva é a possibilidade de fazer um paralelo entre o universo do jogo e o mundo histórico. Como a autora publicou o seu livro durante a pandemia da Covid-19, ela usa o termo “novo normal” no seu texto, expressão muito presente nos debates da época pandêmica.
Durante a entrevista, ela relacionou o “novo normal” do universo do jogo com os tipos de grupos formados nesse mundo distópico: a FEDRA, militar e autoritária, os Vagalumes, combatentes revolucionários, ou, ainda, grupos apresentados posteriormente no enredo, como os Serafitas, que têm um cunho religioso. Para ela, as histórias criadas em torno desses círculos se inspiram no mundo cotidiano e geram reflexões sobre as nossas sociedades. E, para elucidar melhor, ela citou uma frase do escritor e filósofo Umberto Eco: “toda ficção se apoia periodicamente no mundo histórico”. Apesar da grande quantidade de cutscenes inseridas no videogame, o enredo bem construído faz com que o jogador não se sinta consciente do seu volume e, sim, submerso naquele universo devido à rica narrativa, personagens profundos e variados. “O jogo não é sobre uma situação epidêmica. Ele é, sobretudo, sobre as relações humanas”, disse a autora.

Ao abordar as produções feitas além do videogame, Thífani falou como “é uma estratégia muito utilizada em marketing fazer com que uma narrativa dure muito tempo para que as pessoas continuem consumindo os elementos daquela história em outros meios midiáticos”. O que difere um conteúdo transmidiático de uma adaptação.
Elementos que não poderiam ser explorados no jogo porque não havia espaço foram abordados nos quadrinhos The Last Of Us: Sonhos Americanos (NewPOP, 2016) e também podem ser aproveitados na série. Até mesmo o podcast oficial da HBO que comenta cada episódio após o lançamento, estrelado pelo dublador de Joel no jogo, Troy Baker, e que conta com a participação dos cocriadores da série Neil Druckmann e Craig Mazin, é um exemplo dessa expansão do universo da produção televisiva.
A grande diferença entre as duas partes do jogo é como as narrativas foram construídas. A primeira segue um estilo de enredo clássico hollywoodiano e foca no relacionamento entre Joel e Ellie, além de manter a perspectiva constante desses dois personagens. Por outro lado, a segunda parte tem uma narrativa seriada: é construída em blocos. A ordem em que cada bloco de história é apresentado, seja o do Joel, o da Ellie ou o da nova personagem, Abby, não altera a trama em si, mas muda a percepção do público sobre a narrativa. Esse recurso foi muito utilizado para introduzir mais sobre a história da Abby e aprofundar as motivações dela.
O que os espectadores pensam da série
Existe uma diferença entre espectadores que já jogaram o jogo e os que conheceram o universo pela primeira vez através da série: a expectativa. Uma parcela dos jogadores comentou em plataformas de avaliação que sentiu falta da ação que existia enquanto aproveitavam o videogame porque a série se inclinou mais para o drama.
Para o jogador Ignácio Silva, servidor público e fã da franquia, o jogo e a série são incomparáveis. Ele disse que “o jogo te proporciona cerca de 40 horas de imersão contínua naquele universo ficcional e uma proximidade muito maior dos protagonistas por meio do gameplay, porque você está constantemente no controle de ambos”. Apesar de ter aproveitado a primeira temporada, considerou a segunda pior devido ao maior distanciamento do roteiro com o jogo, além de o que ele chama de “descaracterização dos personagens”. Mas, também disse que indica para todo apreciador de filmes e seriados jogar The Last of Us no modo fácil pelo menos uma vez, só para ter contato com a narrativa original.

O roteirista de ficção seriada Marcelo Lima acredita que qualquer obra pode ser adaptada. O que varia é como essas adequações se traduzem para a audiência — é importante ter uma pesquisa para o novo projeto dialogar com o espectador. Ele comentou ser normal fãs criarem vínculos com o projeto original e não conseguirem desfrutar de uma nova produção, então, manter uma certa distância do conteúdo original é o ideal para poder aproveitar uma história adaptada.
O escritor confirmou que existem experiências no jogo que realmente não vão poder ser traduzidas para a série, já que é um tipo de mídia diferente. Por exemplo, uma perda que ele mencionou foi o tempo que as personagens passam juntas no videogame, cuja duração é representada através de uma separação bem clara entre as estações do ano. Esse aspecto dá mais fôlego para a história porque, no jogo, o tempo é extremamente relevante. A série não traduz esse fator tão bem porque é mais rápida e não consegue dar conta de toda a extensão dos acontecimentos.