Meu primeiro contato com N. K. Jemisin foi por meio de A Quinta Estação, primeiro livro da trilogia da Terra Partida. Sucesso absoluto de vendas, o livro chamou minha atenção não só como uma ótima ficção científica, mas também pelos personagens, que não correspondiam à cisheteronormatividade e à branquitude típicas do gênero.
Em Nós Somos a Cidade, essa característica se mantém. Nessa nova obra que, ao contrário de seus outros livros, não se passa em nenhum lugar fictício, mas em Nova York, a autora demonstra uma sensibilidade ímpar em retratar seres humanos em sua complexidade, não apenas os mesmos arquétipos tão acostumados ao protagonismo.
A obra ganha contornos políticos — ao mesmo tempo históricos e atuais — nas ameaças que as personagens enfrentam. Racismo, violência policial, pressão financeira, risco de deportação, homofobia, machismo e preconceitos internalizados são alguns dos temas que conectam ficção e realidade.
Mas não é só na representatividade que a autora brilha. A narrativa é uma ficção científica de fantasia, mas situada na realidade, que em alguns aspectos lembra Deuses Americanos de Neil Gaiman, ao unir características pagãs e urbanas, ao mesmo tempo em que é completamente original na abordagem.
Jemisin também é capaz de se apropriar de elementos da ficção de H. P. Lovecraft, conhecido tanto por sua grande influência cultural quanto pelo racismo e xenofobia que permeiam suas cartas e sua ficção. As referências lovecraftianas mais explícitas são conectadas aos vilões da obra, o que demonstra aceitação da influência inegável do autor, mas adoção de uma postura crítica.
A autora sabe utilizar a fantasia para refletir sobre questões reais e a realidade para trazer identificação e relevância ao seu universo mágico. Assim, consegue manter o interesse do leitor pelos vários personagens que dividem o protagonismo e pela narrativa do começo ao fim. É uma carta de amor honesta a Nova York, que não ignora seus problemas. Esperamos ansiosos os próximos volumes desta história.
*Imagem de capa: Diogo Bachega Paiva/Jornalismo Júnior