Por Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)
Duas denúncias de estupro e uma tentativa de estupro no campus Butantã, da Universidade de São Paulo (USP), repercutiram na mídia nacional em setembro de 2024.
Em maio deste ano, uma moradora do Conjunto Residencial da USP (Crusp) denunciou o abuso por um estudante vizinho, que vivia a alguns metros de seu apartamento. No dia 21 de agosto, às 19h, uma estudante disse ter sofrido uma tentativa de estupro por um homem ainda não identificado com uma arma falsa. Outro caso de estupro no Crusp, denunciado em agosto de 2024, foi comunicado pela mídia após a vítima recorrer à polícia. O suspeito foi expulso da moradia estudantil, mas a vítima convive com ele diariamente nos prédios da universidade.
Esses casos não são pontuais e individuais. Eles levantam dúvidas do público sobre como as universidades podem combater a violência sexual e por que elas não fazem medidas para proteger suas estudantes, funcionárias e docentes.
A pesquisa e a falta dela
Um levantamento feito pela CNN Brasil em agosto de 2023 procurou 64 universidades federais brasileiras para conseguir dados sobre denúncias de assédio sexual. Nove instituições não responderam e parte das ouvidorias não apresentaram informações.
A jornalista, ativista e roteirista do documentário #EuVocêTodasNós (2017), Ellen Paes, ressalta que os dados sobre a violência sexual são subnotificados nos dados de assédio em universidades.
De acordo com a jornalista e diretora do Instituto Patrícia Galvão, Marisa Sanematsu, “a sociedade não enxerga a violência, não têm o reconhecimento de suas várias formas, e às vezes culpa as mulheres pelo que sofreram”.
O instituto reúne dados sobre a violência contra a mulher no Brasil, comprometidas à comunicação como mecanismo crucial para a garantia dos direitos do gênero feminino. A sua especialidade é realizar pesquisas de opinião, isto é, o levantamento estatístico de uma amostra particular da opinião pública.
Na pesquisa “Violência contra a mulher no ambiente universitário”, as comunicadoras ressaltam que o assédio sexual não é reconhecido pelos homens: cerca de 2% dos que participaram do estudo admitiram espontaneamente que cometeram violências. Depois que as pesquisadoras listaram tópicos de abuso, 38% reconheceram que violentaram.
Ainda de acordo com o estudo, 67% das mulheres universitárias relataram ter sofrido algum assédio sexual, após serem apresentadas a uma lista com ações do gênero. 63% admitem não ter reagido quando sofreram a violência.
Ellen Paes acrescenta que enfrentar o assédio sexual “é nadar contra uma corrente, desgastante emocional, física e financeiramente, então muitas desistem pelo caminho ou simplesmente nem tentam”.
Em 2019, o Intercept Brasil publicou os resultados de uma coleta de dados que reuniu 209 ocorrências de violência sexual nas universidades desde 2008. A reportagem sugere que mais de 556 mulheres foram vítimas em 122 instituições.
O veículo listou 85 episódios de assédios sexuais, 102 violências sexuais e 22 violências psicológicas. Agrupou-se a apologia ao estupro, o discurso misógino, o trote violento e divulgação lde imagens íntimas à violência psicológica.
Um flerte, um assédio
Marisa Sanematsu ressalta que o assédio é normalizado nos momentos de convivência dos alunos e a adesão aos grupos. Segundo ela, em um aspecto social, ele “não tem a ver com desejo, com afeto, compaixão e nem amor. A violência manifesta uma opressão, diretamente ligada à desigualdade de gênero”.
Os trotes universitários eram os principais palcos para as calouras sofrerem assédios. A prática foi banida em muitas universidades após pressão das reitorias e apresentação de projetos como a PL 445/2023, no Senado Federal, que prevê a proibição de atividades de recepção que “envolvam coação, agressão, humilhação ou qualquer outra forma de constrangimento” dos alunos.
Na Universidade de Brasília (UnB), um trote de 2011 fez com que as calouras fossem submetidas a lamber linguiças com leite condensado. As punições foram leves aos envolvidos e, no ano seguinte, o trote se manteve, mas desta vez as carnes foram penduradas em seus pescoços.
Um levantamento que analisou 24 textos de autores brasileiros desde 2012 concluiu que 87,5% das publicações consideram a violência sexual como uma violência de gênero, um aspecto sociocultural. O artigo foi escrito pelas estudantes da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Mariana Silva Basso, Jordana Fontana e Carolina Laurenti.
De acordo com o estudo, a violência sexual também está correlacionada à hierarquia no campo do ensino. Metade dos artigos falam sobre a configuração hierárquica entre aluno e professor, e o efeito danoso criado entre a violência e retribuição de “favores”.
Ellen Paes ressalta: “Não conheço uma mulher que não tenha passado por algum tipo de assédio pela vida. Infelizmente, vivemos em uma estrutura que naturaliza esse comportamento, coloca ele no mesmo patamar de um flerte, uma paquera”.
Além das consequências diretas ao abuso, as estudantes abordam sobre a saúde mental dos universitários. Segundo a OMS, as sobreviventes são mais suscetíveis à depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, comportamentos suicidas e transtorno de pânico.
As estudantes
Giovana Oliveira, estudante do Instituto de Química da USP, revela que a segurança contra assédios no campus deve ser proporcionada por meio de infraestrutura. A partir de um ambiente universitário mais acolhedor, as sobreviventes teriam maior confortabilidade para denunciar, junto às rodas de conversa e movimentos paralelos feministas.
A J.Press também entrevistou Carolina Bezerra, pesquisadora de pós-doutorado no departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH) da USP. O seu trabalho é desenvolvido a partir da perspectiva das sobreviventes como um problema de saúde coletiva e do âmbito educacional.
Carolina afirma que, como estudante de graduação entre 1997 e 2004 e ex-diretora da AmorCrusp, associação de moradores do condomínio residencial da USP, recebia muitas denúncias de estupros dentro da moradia. Ela ressalta que os estudantes já sabiam que a violência sexual estava presente no campus, antes das revelações na grande mídia.
Carolina e Giovana destacam que as alunas de baixa renda, moradoras do Crusp, são as mais suscetíveis a sofrer violência sexual. Relataram também a condição precária das moradias da USP e a falta de efetividade nas punições aos estudantes que abusam de mulheres nos blocos. As duas afirmam que a falta de apoio por parte da universidade às denúncias influencia também as estudantes a silenciar-se.
Giovana explica que, no processo de denunciar um caso de abuso, a sobrevivente necessita falar com uma assistente social. “Vai haver um julgamento dela”, pontua. A profissional realiza um encaminhamento, o que quer dizer que ela chamará o abusador para ouvir a história de seu ponto de vista.
“Nós [mulheres] somos intimidadas constantemente para não falarmos sobre as violências que a gente vive”
Giovana Oliveira, estudante da USP
Além disso, a estudante comenta que, em reuniões com a PRIP (Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP), “eles sempre falam que estão abertos para escutar os casos, só que a gente sabe que na prática isso não acontece”.
A PRIP declarou em e-mail à Jornalismo Júnior que o Conselho de Inclusão e Pertencimento está em processo de instalação do SUA (Sistema USP de Acolhimento, Registro e Responsabilização para Situações de Assédio, Violência, Discriminações e Outras Violações de Direitos Humanos). No entanto, a resolução das discussões acerca deste novo sistema está prevista para dezembro de 2024.
A assessoria da PRIP também indicou o protocolo de sua responsabilidade como estratégia para o atendimento de mulheres vítimas de violência de gênero na universidade. O manual sugere números de telefone para denúncia em cada campus relacionados a cada uma das violências sofridas: a LGBTfobia, o racismo e a violência sexual.
No entanto, as estudantes não são as únicas em perigo. Em maio de 2024, uma funcionária sofreu uma tentativa de estupro na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no campus de Uvaranas, Paraná. A trabalhadora voltava para casa, por volta das 18h30, e foi ameaçada por um canivete e estrangulada com golpes de “mata-leão”. O suspeito não foi encontrado.
Termos
“Somos chamadas de loucas, histéricas, mentirosas. Somos estigmatizadas como vítimas”.
Ellen Paes, ativista
Existem maneiras distintas de se referir às vítimas de violência sexual. “No Chile, as pesquisadoras usam denunciantes e também pessoas afetadas, porque elas entendem a perspectiva como um problema de saúde coletiva. Essa ideia de ‘pessoas afetadas’ demonstra que a comunidade toda é afetada”, afirma Carolina Bezerra.
A pesquisadora analisa a utilização de ‘vítima’ no português como uma pessoa submissa, passiva, maculada, manchada e estigmatizada socialmente. O termo ‘sobrevivente’ ressalta que a pessoa sofreu uma situação traumática, mas que pode reconstruir a sua vida.
Protocolos
O assédio, como violência velada e o problema à saúde pública, não se restringe ao Brasil. A pesquisa #PasóEnLaU, realizada pela equipe Distintas Latitudes com apoio de membros da Re LATAM em 2019, estudou os diversos protocolos contra os assédios em 100 universidades da América Latina.
Das quatro instituições brasileiras analisadas, apenas a Universidade de São Paulo possui oficialmente um protocolo contra o assédio, criado pela Pró-Reitoria de Cultura e Reitoria Universitária (PRCEU) em 2017.
Cerca de 70% das universidades federais do país não tomam medidas de combate ao assédio e não desenvolvem qualquer prevenção. A pesquisa, feita em 2020 pela doutora em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bianca Spode Beltrame, examinou 44 instituições federais de ensino superior.
Iniciativas
A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) possui o Serviço de Atenção à Violência Sexual, órgão de assistência vinculado à Comissão Assessora de Gênero e Sexualidade, que integra a Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DEDH). A ouvidoria especializada tem o intuito de acolher os membros da comunidade universitária que sofreram violência sexual.
Na USP, a falta de medidas institucionais gerou mobilização de docentes, estudantes e funcionários para combater os episódios de violência sexual. Giovana Oliveira descreve o Movimento de Mulheres Olga Benário como um grande alicerce nessa luta.
O grupo realiza ocupações urbanas para mulheres que sofreram violência, oferecendo acolhimento jurídico e psicológico, ao redor de todo Brasil. Já atuante em diversas universidades ao redor do país, no ano passado o movimento começou a se expandir na USP e recebeu mais de 90 denúncias por parte de estudantes.
A Rede Não Cala! foi formada por docentes da Rede de Professoras e Pesquisadoras pelo Fim da Violência Sexual e de Gênero na USP em 2016. As profissionais atuam de forma independente e autônoma para atender “pessoas que se sentiram agredidas, criar ideias para a reformulação de processos administrativos da instituição e desenvolver ações educativas de conscientização” na universidade, segundo o site do projeto..
“Todos nós, de quaisquer movimentos sociais ou de qualquer lugar da sociedade, temos que tomar pra nós a responsabilidade de lutar contra a cultura do estupro.”
Ellen Paes
*Foto de capa: Manifestação com cartazes – [George Campos/USP Imagens]