Por Bianka Vieira (bianka.vieira2@gmail.com)
“Nunca vi coisa mais gostosa que beber água, é até melhor que Coca-Cola!”. Apesar de gerar polêmica, a afirmação de Elias Gomes dos Santos possui fundamento e é de grande significado para ele: após oito anos na fila por um transplante renal, há cerca de um mês Seu Elias (como é carinhosamente chamado) deu-se por liberto da hemodiálise e de seus inconvenientes.
O semblante no rosto deste senhor de 59 anos não deixa esconder sua satisfação. Quando surgiram as primeiras complicações, cogitou-se o procedimento cirúrgico através de um doador vivo próximo a ele. No entanto, como os testes mostraram apenas 50% de compatibilidade, o médico preferiu invalidar a ideia.
Com uma debilitação cada vez maior de seus rins, Elias não teve outra opção senão a diálise semanal e, não menos recorrente, a diálise peritoneal. Ambos os procedimentos retiram o excesso de água e toxinas do corpo, função que deveria ser desempenhada pelos rins.
Ao todo, foram seis anos sem urinar devido ao processo de filtragem artificial. “Eu sou muito medroso em relação a agulhas, só fiz hemodiálise porque não tinha opção”, afirma com um sorriso embaraçado.
Infelizmente, Elias não é o único que percorre essa jornada. De acordo com o último relatório divulgado pela Agência Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), atualmente o Brasil possui mais de 28 mil pessoas na fila de espera por órgãos e tecidos. Em números absolutos, esse dado nos coloca numa posição melhor do que potências como Reino Unido e França, perdendo apenas para os Estados Unidos. No entanto, é necessário dimensionar que, apesar de ser um ótimo resultado, não há uma proporção certeira com a demanda populacional.
A resposta para esse infortúnio é simples: o número de doadores é insuficiente. Para que haja a transplantação de um órgão, o doador pode estar vivo (e doar parte do fígado, pulmão, um dos rins e medula óssea) ou morto, caso seu óbito se dê por morte encefálica. Até dezembro do ano passado, o Sistema Nacional de Transplantes registrou 9.351 notificações de potenciais doadores mortos. Destes, somente 2.508 consolidaram-se como doadores efetivos.
Para explicar este fato, o Dr. Diogo Medeiros, nefrologista e coordenador do Serviço de Transplante Renal no Hospital de Transplantes Euryclides de Jesus Zerbini, situado em São Paulo, aponta um desfalque diretamente associado à falta de preparo de equipes médicas ao interagir com a família. “Uma dificuldade muito marcante está na relação dos profissionais de saúde em dizer para um familiar que, apesar do coração estar batendo, a pressão estar controlada e a temperatura estar normal, o paciente está morto”, afirma ele.
Aparentemente, mesmo que o diagnóstico de morte encefálica seja regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina e ratificado por diversos exames, há certa presunção envolvida nesse ponto. Por conta dessa falha de comunicação e de seus subsequentes prejuízos pela demora do procedimento, o número de notificações passa a ser bastante reduzido, fazendo com que apenas 1 em cada 3 potenciais doadores seja sinalizado.
No Brasil, a Lei 9.434/1997, regulamentadora da doação de órgãos, foi alterada pela Lei 10.211/2001. Essa modificação fez com que a permissão para o procedimento seja concedida única e exclusivamente por parentes próximos – pai, mãe, cônjugue, filhos – e não mais por uma observação no RG ou na Carteira Nacional de Habilitação, como o era anteriormente.
Dessa forma, surge um novo entrave, pois apesar das constantes campanhas publicitárias instigarem a prenunciação de seu desejo para os familiares, não cabe mais ao doador o poder da decisão.
Estudos indicam que, em 2014, de todas as famílias entrevistadas pelo serviço social em busca de aprovação para a doação dos órgãos, 46% negaram. Aqui, é importante lembrar que a decisão de recusa pouco se relaciona com a vontade do doador manifestada em vida, mas sim com o atendimento hospitalar oferecido ao familiar. Para Medeiros, o processo é como uma “bagagem”, onde questões desde o atendimento na recepção ao zelo médico com o paciente integram um conjunto de estímulos. Nesse caso, apesar das negativas serem justificadas em documentos oficiais por outras motivações, o parente não nega pelo ato de doar, mas sim pelo amparo recebido.
Ainda que o cenário nacional esteja intimamente ligado a problemas estruturais envolvendo falha educacional na formação de médicos e hospitais pouco acolhedores, é notória uma evolução progressiva quando se fala de transplantes no Brasil. À altura de 2008, somente 10% dos órgãos qualificados para ganhar um novo receptor eram aproveitados – o resto era descartado em função da incompetência dos sistemas de transportes na luta contra o tempo, em geral incompatíveis com o tempo de isquemia fria (período em que um órgão pode ser conservado na ausência de suprimento sanguíneo).
Para solucionar esse problema, em 2013 o governo federal firmou parceria com algumas companhias de transporte aéreo, que passaram a realizar a logística dos órgãos de forma gratuita e prioritária.
Conforme se observa nos gráficos, a distribuição da doação de órgãos acontece de forma pouco padronizada pelo território. Enquanto São Paulo é o Estado que mais transplanta, temos regiões do país onde os dados são nulos, a exemplo do Mato Grosso, Amapá, Roraima e Tocantins. Apurando a lista de espera por órgãos nesses mesmos estados, os números também são inexistentes. Ao que tudo indica, não há enfermos nessas localidades, certo? Muito pelo contrário.
A matemática dessa questão é a de que se não há equipe especializada, não há fila. Manter um hospital pode ser muito dispendioso em função de um contingente pequeno de pacientes e, em situações como essa, a opção é encaminhar o enfermo para o Estado mais próximo. “Aqui [no Hospital] já fiz transplante em pacientes do Acre, Goiás, Ceará e de vários outros lugares do Brasil. É uma forma de tentar equacionar uma dificuldade existente em outros Estados”, afirma o nefrologista.
Mesmo que seja vista com otimismo, essa solução não é a mais adequada, já que muitas pessoas morrem antes de chegar a um centro de transplante e passar por toda a burocracia imposta pela distância.
O elemento que aparta a consumação da morte e a esperança por uma nova vida é, de fato, muito tênue. Ainda que o Brasil esteja em uma disposição privilegiada no ranking mundial, a situação é preocupante quando 40% das pessoas que aguardam um coração morrem na fila em menos de um ano de espera. Essa conjuntura, portanto, não é mais animadora quando se trata dos transplantes pediátricos e seus números pouco expressivos ao longo dos anos.
A escolha por doar ou não ocorre, evidentemente, em um momento de dor e perda. Apesar do instante pouco propício a tomada de grandes decisões, deve-se levar em consideração que um único doador pode chegar a beneficiar até vinte pessoas. Romper com certos estigmas da temática do transplante de órgãos, dessa forma, é um gesto nobre necessário à promoção de vida e esperança.