Por Clara Hanek (clarahanek@usp.br)
O documentário Quiet On Set, lançado no último ano no Max, expõe situações de abuso e violência a que atores mirins foram submetidos nos bastidores da Nickelodeon entre o final dos anos 90 e o início dos 2000. As acusações concentram-se na figura do produtor Dan Schneider. Descrito pelos seus empregados da época como agressivo e abusivo, Schneider trabalhava diretamente com as crianças, criava cenas impróprias ao público infantil e deixava crimes acontecerem nos sets.
A relação entre crianças e adultos já é essencialmente marcada por um desbalanço de poder, mas, quando se adiciona vínculo empregatício, ele aumenta. Jason Handy, ex-assistente de produção do canal, guiava as crianças no set, muitas vezes quando elas estavam sozinhas ou sem a presença dos pais. Em 2003, a polícia encontrou um enorme compilado de pornografia infantil em sua casa. Acharam arquivos com nomes de diferentes meninas e objetos de lembrança delas — um deles, com o nome de uma criança de 7 anos e uma calcinha guardada.
Além disso, encontraram diários de Handy, em que explicava sua atração doentia por crianças e descrevia seus pensamentos sobre como encontraria uma vítima de estupro. O pedófilo foi sentenciado a apenas 6 anos de cadeia por possessão de pornografia infantil, envio de emails sexualmente explícitos a crianças e performance de atividades indecentes. Todas as alegações envolviam atores que participaram de The Amanda Show (1999-2002) e Cousin Skeeter (1998-2001). Ao cumprir sua pena em 2009, foi liberado. Em 2014, Handy foi preso novamente, com três queixas de envolvimento com crianças, e sua pena acabará em 2038.
A polêmica mais grave exposta no documentário envolve Drake Bell, astro da série infantil Drake & Josh (2004-2007), que prestou depoimentos à mídia pela primeira vez em meio às gravações de Quiet On Set. Até então, não se sabia qual criança da Nickelodeon havia sofrido nas mãos do pedófilo e estuprador Brian Peck.
Peck era treinador de diálogo e atuação na série infantil The Amanda Show e, confiado pelos pais, constantemente ficava sozinho com as crianças. Ele se aproveitou de uma situação sensível entre os pais de Drake, implantou ideias na cabeça do adolescente e conseguiu que sua guarda fosse transferida para a mãe. Depois disso, a mãe delegou a função de levar e buscar Drake de audições e outros eventos artísticos a Peck, que morava em Los Angeles. Como Drake e a mãe viviam em uma cidade vizinha, o menino foi convidado a dormir na casa de Peck várias vezes.

Foi em meio à aproximação entre Drake e Peck que o ator sofreu o primeiro abuso, aos 15 anos. O garoto afirma que não o denunciou, a princípio, porque o treinador de atuação o convenceu que aquilo era um acontecimento pontual e pediu desculpas. À medida que os abusos permaneceram e pioraram, Drake teve medo de denunciá-los por receio de que sua carreira fosse afetada, dado os contatos do abusador na mídia. O ator descreve a gravidade da situação no documentário ao dizer que sofreu os piores tipos de agressão sexual. Peck, que deveria ser uma figura de autoridade responsável e confiável, se tornou o maior pesadelo do artista mirim.
Os abusos só vieram à tona anos depois, quando, em um momento decisivo, Drake ligou para sua mãe e contou o que havia sofrido nos últimos anos. A mãe, horrorizada, contatou a polícia imediatamente. Peck admitiu seus crimes em uma ligação com o garoto feita junto à polícia. O homem foi preso em 2003 e condenado após não negar nenhuma das onze acusações de abuso contra menor de idade.
Consequências para toda a vida
Existe muita glamourização em torno do trabalho artístico infantil, o que pode atrair as crianças — e até os seus pais— a esse mundo. Mas, se a indústria do entretenimento e a exposição midiática é cruel até com adultos, o que protege as crianças?
Katrina Johnson foi atriz de All That (1994 – 2005) quando criança e deu depoimentos ao documentário. Apesar de dizer que teve, no geral, experiências positivas, ela conta que, certa vez, seus pais receberam uma ligação de aviso dos produtores: ela havia engordado e eles precisavam tomar cuidado com isso. Katrina completa ao dizer que, pouco depois, ela entrou na puberdade, o que enlouqueceu a produção, já que ela passou a parecer mais uma mulher que uma menina. Termina ao afirmar que foi substituída por uma versão mais nova (Amanda Bynes), mas que as palavras dolorosas dos produtores ficaram com ela para sempre.
A rápida ascensão à fama impacta o desenvolvimento das crianças, além de, muitas vezes, gerar responsabilidade pela sustentação das finanças da família. Assim, a atuação torna-se uma obrigação para manter os familiares, o que é diferente de trabalhar no entretenimento apenas por diversão.
Um exemplo disso é a família de Macaulay Culkin. O ator participou de grandes produções na infância, como o filme pelo qual é mais conhecido, Esqueceram de Mim (Home Alone, 1990). A família Culkin era simples antes da fama: os pais e seus oito filhos moravam em um apartamento de dois quartos. O pai, Kit Culkin, era, além de pastor, um ator teatral frustrado. Assim que seus filhos cresceram o suficiente, ele passou a levá-los a testes de elenco. Kit conseguiu seu objetivo de sair da miséria por meio do trabalho de Macaulay no entretenimento.
Depois do sucesso de Esqueceram de Mim, Kit passou a ser empresário integral do filho e, com o tempo, repudiado em Hollywood por suas extorsões e ameaças aos diretores. Em 1995, os pais, que viviam apenas do trabalho dos filhos, entraram em uma batalha de separação. Foi nessa época, aos 14 anos, que Macaulay decidiu parar de trabalhar como ator e conseguiu, na justiça, que seus pais fossem proibidos de acessar seu dinheiro. Mais tarde, ele sofreu com o abuso de drogas – principalmente tranquilizantes, maconha e álcool. Macauly contou à revista Time sobre sua infância conturbada e afirmou que seu pai era um homem mentalmente abusivo que não o deixava descansar.
A história da criança de Hollywood que cresceu como um jovem problemático se tornou comum e conta com milhares de exemplos. Existe uma relação significativa entre a exposição de crianças na televisão e o abuso de álcool e drogas quando crescem. Um estudo da Universidade de Queensland descobriu que adultos maltratados na infância apresentam três vezes mais chances de serem internados por uso de substâncias. Ao considerar que atores infantis crescem expostos a alto criticismo, em ambientes de competição com outras crianças, pressão do mundo exterior e com privacidade limitada, é nítida a correlação.
Drew Barrymore iniciou sua carreira no filme E.T (1982) e sua fama veio com um preço. A atriz começou a cheirar cocaína aos 13 anos e, logo depois, foi posta na reabilitação. Barrymore se tornou uma atriz bem sucedida, mas permanece um exemplo da razão pela qual as estrelas infantis precisam ser protegidas.
Amanda Bynes foi a pupila de Schneider e ele se dava os créditos por ter construído a carreira dela. Após sua participação em All That (1994-2020), a atriz ganhou o seu próprio programa, The Amanda Show (1999-2002). Na adolescência, Scheneider se tornou seu empresário e ela protagonizou alguns filmes, como She’s the Man (2006) e Sydney White (2007). Bynes começou a usar drogas na época em que os filmava, ainda aos 16 anos. A ex-atriz diz que, no começo, apenas fumava maconha, mas seus problemas reais começaram após tomar Adderall, um remédio estimulante utilizado para tratar Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Em entrevista à Paper Magazine, ela conta que mastigava comprimidos no trailer enquanto filmava Hall Pass (2011).
Nem todo ator infantil, mas sempre um ator infantil
Não são todas as histórias de atores infantis que terminam em desastre. A série de comédia Modern Family (2009 – 2020) é um exemplo de como as crianças podem ser incluídas de um modo saudável na televisão. Aubrey Anderson-Emmons aparece como Lily Tucker-Pritchett e os espectadores acompanham seu crescimento durante as temporadas.
A atriz mirim postou um vídeo no Tiktok em que fala sobre sua experiência na série. Ela relembra afetivamente sua professora de atuação, seu relacionamento com Jesse Tyler Ferguson – ator que interpretou Mitchell Pritchett, um dos pais da sua personagem – e outros bons momentos.
Além das vivências positivas compartilhadas por Aubrey, Sarah Hyland, atriz que deu vida a Haley Dunphy na série, dá créditos a Julie Bowen — sua mãe na ficção, Claire Dunphy — por ter a ajudado a sair de um relacionamento abusivo. Em um episódio do podcast The Skinny Confidential Him & Her, Julie disse, em tradução livre: “Eu era só uma adulta responsável que estava no lugar certo na hora certa”. A atriz, considerada pelas crianças da série como uma figura materna, completa com: “Eu olho para eles como se fossem minhas crianças. Eu os amo”.

Apesar de cultivar boas memórias, Aubrey pontua que, às vezes, o público esquece que a atuação fazia parte do seu trabalho. Em tradução livre, ela diz: “eu estava trabalhando, e se eu não estivesse no set, tinha que estudar por três horas na escola do estúdio, então não tinha tempo para descansar além do almoço”. Ela explica que, na época, sua mãe decidiu tirá-la da escola presencial dado o tempo que ela passava no estúdio, mas que, agora, estuda normalmente em uma escola pública e participa do clube de teatro.
Sexualização e exploração infantil
Jennette McCurdy, ex-atriz que interpretou a personagem Sam em ICarly (2007-2012) e em Sam & Cat (2013), escreveu o livro Estou feliz que minha mãe morreu (nVersos Editora, 2022). Na obra, Jennette diz que começou a atuar contra a sua vontade e descreve o narcisismo abusivo de sua mãe. A jovem tinha apenas 13 anos quando começou a gravar ICarly e revela que se sentia muito sexualizada. Ela conta que, aos 18, foi incentivada por Schneider a consumir bebidas alcoólicas – mesmo com o consumo de álcool legalizado apenas após os 21 anos nos Estados Unidos – e que ele alegava que os atores de Brilhante Victoria (2010 – 2013) costumavam ficar bêbados juntos.
Séries como Modern Family, ainda que não tenham o público infantil como alvo, apresentam humor saudável para crianças. Já produções da Nickelodeon, apesar de serem voltadas ao público infantojuvenil, são carregadas de “brincadeiras” com teor sexual.
Em ICarly, além dos pés das atrizes aparecerem com frequência em piadas e close-ups – como em tentativas de colocar todo o pé dentro da boca –, Sam também aparece em foco na câmera ao tentar enfiar um picles inteiro na boca. Em Brilhante Victoria, o pé dos jovens também foi posto em destaque inúmeras vezes. Várias situações escritas por Schneider fazem referência à pornografia — principalmente à ejaculação. São sugestivas aos olhos dos adultos, mas disfarçadas o suficiente para que o público infantil não perceba as nuances sexuais. Em Sam & Cat, Ariana Grande – na época, adolescente – aparece em uma cena deitada de costas na cama, com a cabeça para baixo e com a boca aberta quando diz “Estou com sede” e passa a esguichar uma garrafa de água em seu rosto.
Alexa Nikolas, atriz de Zoey 101 (2005 – 2008) protestou em 2022 em frente aos estúdios da Nickelodeon com a frase “o criador dos traumas de infância”, em referência a Schneider. Ela disse à Rolling Stone: “eu não me sentia protegida na Nickelodeon quando era criança. Eu não me sentia segura perto de Dan Schneider; toda vez que ele ia ao set meu corpo ficava extremamente tenso”. Nikolas contou ao podcast Real Pod que Schneider a acompanhava no provador do estúdio enquanto ela trocava de roupa e completa com: “eu tinha que usar saias muito curtas”.

Schneider colocava os atores em posições perturbadoras, de modo a pegar situações que já existiam no contexto adulto e adapta-las de forma inapropriada para crianças. Em All That, os atores eram obrigados a realizar desafios ao vivo, chamados de on air dares, descritos por participantes do documentário como traumáticos. Esses se estendiam de cobrir o corpo de uma criança com pasta de amendoim, fazê-la deitar no chão e soltar cachorros para a lamberem, até a entrada de uma criança em uma banheira lotada de minhocas.
