Imagem: Companhia das Letras / Reprodução
Por Karina Merli | karina.merli@gmail.com
Os romances têm, muitas vezes, características clichês. Um amor que surge ao acaso e inúmeras dificuldades para se chegar ao final feliz, quando há, é claro. Antes da Tempestade (Editora Paralela, 2017), de Dinah Jefferies, segue esse mesmo script, mas os rumos de sua história ora são evidentes, ora surpreendentes, por isso, a ânsia por terminá-lo torna-se grande ao longo da leitura.
Uma história de amor e conflitos
Ao iniciar a leitura, somos apresentados a Eliza Fraser de forma bastante sutil. A autora tem cuidado em introduzi-la, ilustrando um marco traumático da vida da personagem: a perda do pai. Durante a infância, Eliza cresceu em Nova Delhi, na Índia, sob os cuidados da mãe (Anna Fraser) e do pai (David Fraser). Este trabalhava no alto escalão do governo britânico e, no fato ilustrado, estava em uma procissão que iria marcar a mudança da sede britânica no país, de Calcutá para Nova Delhi.
Porém, uma explosão muda totalmente a vida dos três. Após o dia fatídico, Eliza é mandada ao internato, onde lida com a solidão e a hostilidade das colegas. Aos 17 anos, pretendendo fugir da indiferença e do vício em álcool da mãe, ela resolve se casar com Oliver Cavendish, rapaz que conhece em uma livraria. Porém, a vivência entre ambos não é feliz e o amor não se faz presente. Como se o cenário todo já não fosse ruim o bastante, a paixão de Eliza pela fotografia e sua decisão em ser profissional provocam a ira de Oliver. Zangado e se recusando a aceitar isso, ele sai desnorteado e morre de forma trágica. Ela, então, passa conviver com a culpa, pois em sua mente, acredita ser responsável pela morte do pai e do marido.
Viúva e sem rumo, ela volta a viver com a mãe, que recorre a Clifford Salter (afilhado do falecido marido e influente representante da Coroa britânica) na esperança de conseguir um emprego para a filha e tirar de sua cabeça a ideia de ser fotógrafa. No entanto, para a sua surpresa, Salter convida Eliza para retratar a família real de Juraipore, em Rajputana (Índia) durante um ano. Suas fotografias seriam utilizadas no acervo da Coroa Britânica. Assim, diante de tamanha oportunidade, ela parte rumo ao local de sua infância, aos 29 anos, no ano de 1930.
No caminho para o castelo, a fotógrafa tem o seu primeiro contato com a miséria e a indiferença das pessoas, ficando indignada. A chegada à fortaleza é narrada de forma detalhada, como quase todo o livro, abordando cores, cheiros e formas. Por lá, os primeiros a conhecer são Jayant Singh Rathore (príncipe e irmão do meio do marajá Anish) e Laxmi, mãe dos dois e antiga rainha.
Logo no primeiro contato com Jay, Eliza comete a gafe de confudi-lo com um forasteiro. O jeito despojado e simples dele provoca, de fato, certa inquietação. Enquanto Laxmi encanta e desperta admiração, por ser uma mulher firme, generosa e bela. Em seu primeiro diálogo, ela recebe a inglesa de braços abertos, comentando um pouco sobre a sua missão e sobre o seu filho. O jeito aventureiro e rebelde de Jayant sempre o motivou a fugir de um casamento, mesmo com os seus 30 anos de idade.
Em meio à situação embaraçosa, a antiga rainha informa que o principal guia de sua primeira empreitada rumo à feira dos camelos seria justamente Jay, e que Eliza ficaria hospedada na fortaleza. Enquanto isso, o leitor toma conhecimento de duas personagens: Kiri, a camareira que cuidará da estadia da inglesa, e Indira, uma bela jovem mestiça, que vive em meio à realeza por uma questão de proteção.
O início do trabalho fotográfico permite à Eliza conhecer outras pessoas como Chatur (o dewan ou uma espécie de conselheiro do marajá) e Priya, a esposa do marajá. Do lado inglês, ela faz amizade com Dottie, mulher do médico Julian Hopkins da Coroa britânica.
Ademais, ela permite-se explorar mais a cultura e a religião do país. Fica estarrecida ao descobrir que viúvas ainda morriam queimadas, pois sobreviver à morte do marido era tido como um azar. Ao tempo em que se surpreende com as concubinas e a forma como cuidam umas das outras. Essas vivências vão dando à inglesa um novo ânimo, amadurecendo o seu trabalho, que desde o início não é restringido às paredes do castelo, mas anseia por revelar a dura e miserável realidade que cerca aquela sociedade.
Por outro lado, Eliza precisa lidar com algumas personagens que suspeitam de sua presença no castelo, por ser inglesa, e procuram prejudicá-la. Enquanto sua amizade com Jayant floresce naturalmente. Sempre presente nas viagens, o príncipe passa a despertar certa admiração na fotógrafa, que é correspondida.
Eliza nunca foi a favor do Império britânico no país oriental, porém, é a partir dessa amizade, que torna-se ainda mais crítica sobre o tema. Jay sempre foi ciente da extrema miséria de seu país, mas com a ajuda da inglesa, ele percebe que pode fazer algo sem depender tanto da iniciativa do seu irmão marajá.
E, quando menos se espera, o amor entre ambos torna-se uma realidade, a qual desagrada a realeza e Salter, que declarara suas intenções de se casar com Eliza. Apesar de todos esses entraves, o casal procura resistir e lidar com traumas passados. Porém, há um ponto em que é preciso decidir entre família, dever e amor, no qual o leitor fica se perguntando como esta história vai acabar.
Um romance como os demais, mas com outros ares
Como supracitado, os romances têm certas características padrões. O livro de Jefferies revela uma moça ainda insegura, que busca se ajustar e tem em um homem bonito, rico e generoso, a oportunidade de se descobrir e se aceitar. Porém, algumas coisas merecem ser destacadas, pois fogem do que vemos no geral: Jay respeita os posicionamentos de Eliza e sabe que a profissão é muito importante para ela. Em contrapartida, a fotógrafa acredita em direitos iguais entre homens e mulheres, é determinada e tem grande apreço pelo seu trabalho.
As vontades de ambos, nas cenas mais intensas de amor, são tratadas com equidade e o prazer feminino não é mistificado. Fica muito claro que o casal está à frente de seu tempo, em que o machismo ainda é uma regra. Além disso, a autora buscou dar às mulheres de grande personalidade, como Irina e Laxmi, a autonomia. Irina tem muito talento com a pintura e apesar de todas as dificuldades que recaem sobre a sua existência, ela sempre deu um jeito de viver como gostaria.
Já Laxmi mostra-se uma mulher independente e que não gosta de esperar a iniciativa de outros, revelando a razão de ter sido uma rainha tão respeitada. O mesmo, porém, não ocorre com Anna, Dottie e Priya, que ficam à mercê dos maridos. Os cuidados com questões culturais e políticas são fundamentais para compreender as relações entre ingleses e indianos. Na obra, verifica-se que eles são bem trabalhados e trazem uma perspectiva de novos tempos para a Índia.
“Antes da Tempestade” é um romance típico e atípico, que inicialmente parece improvável, mas quando o leitor se dá conta, está mais envolvido do que gostaria.