Por Júlia Helena (juliahelenaf@usp.br)
No dia 8 de maio, Rita Lee Jones faleceu em sua residência, na cidade de São Paulo. Nas redes sociais, houve grande comoção por parte de sua família e fãs. Artistas prestaram suas homenagens e relembraram sua vasta contribuição à cultura brasileira.
Em sua primeira autobiografia Rita Lee: uma autobiografia (Globo Livros, 2016), a cantora deixou uma profecia sobre sua morte:
“Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão ‘Ovelha Negra’, as TVS já devem ter na manga um resumo da minha trajetória para exibir no telejornal do dia e uma notinha no obituário de algumas revistas há de sair. Nas redes sociais, alguns dirão: ‘Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk’. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los. Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp e cantando para Deus: ‘Thank you Lord, finally sedated’. Epitáfio: Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”.
Resumir o fenômeno Rita Lee segue sendo uma tarefa difícil. A Rainha do Rock Brasileiro entrou pra história muito antes de partir. “A gente tem uma ideia mais da Rita ali [no topo]. A gente nasceu e a Rita Lee já era ícone. Ela sempre fez sucesso, mas não assim, ela se estabeleceu mais na década de 80”, conta a entrevistada Jéssica Cunha, formada em Ciências Sociais pela UFPEL e que dedicou sua pesquisa acadêmica à importância musical das produções da Ovelha Negra. Quando questionada sobre o motivo de ter escolhido Rita, a entrevistada respondeu: “A minha perspectiva de pesquisa é buscar por mulheres que se submeteram a uma lógica. Ela se meteu num espaço que era majoritariamente masculino e hoje é a maior artista mulher do rock brasileiro, pensando no rock como cultura, como expressão e como arte. Ela é uma expressão artística muito forte”.
Coroada pelo povo, a Rainha do Rock disse em entrevista à Rolling Stone Brasil que gostava mais de ser chamada de Padroeira da Liberdade e achava o título de majestade um tanto cafona. Mesmo com sua ressalva, Rita não foi e nem poderia ser destronada. Seu sonho de “ser imortal” era realidade há muito tempo.
Mulheres de Lee
Em 2017, ao ser entrevistada pelo portal Hysteria, Rita disse nunca ter se considerado feminista. A Rainha, única mulher em um cenário dominado pelos homens, fez todos de plateia enquanto chegava “com seu útero e seus ovários” no palco, onde antes só subia “quem tinha culhão”: “Vivi intensamente a minha época sem pensar que futuramente seria considerada revolucionária. Acho que abri, sim, estradas, ruas e avenidas. E vejo que hoje as garotas desfilam por elas, o que me faz sentir um certo orgulho. Ser pioneira teve um preço, mas também fez escola. Naquele tempo eu não tinha distanciamento histórico para me perceber como feminista, libertária, quebradora de tabus. Eu simplesmente subia no palco, matava o pau e mostrava a xana”, declarou ao portal.
Desde o início de sua carreira, a cantora mostrou estar à frente de seu tempo. A padroeira desbravou o desconhecido para que outras mulheres pudessem seguir seus passos e escreverem suas próprias histórias. Não se declarava feminista, mas fez muito pelo movimento com suas obras. Em grande parte de sua discografia, é possível encontrar o nome de figuras femininas que tiveram grande peso no debate de igualdade e liberdade. “Teve mais de uma [mulher] que eu não sabia quem era, eu conheci ali a Elvira pagã, que era uma dançarina exótica dançava com uma cobra, e a Luz del Fuego, tida como a primeira feminista do Brasil, e que é uma das minhas músicas preferidas”, observa Jéssica. Em sua faixa Todas as mulheres do Mundo (1993) a intenção de nomear essas mulheres é ainda mais explícita.
[Censurado]
Rita levava uma vida nada sossegada. Dona dos palcos, sempre se mostrou disposta a “colocar a boca no trombone”, afinal, se abster nunca combinou com seu estilo. Jéssica pontua que, mesmo nos últimos anos, a cantora nunca deixou de dar suas opiniões: “Ela não se escondia. Acho que essa atitude dela é o que seria a atitude ‘Rock n Roll’, ela sempre manteve seus posicionamentos independentemente da fase dela.” Essa disposição de sempre falar o que queria acabou dando à Erva Venenosa o recorde mais inusitado da carreira: foi a compositora mais censurada durante o período da ditadura militar.
As músicas de Rita Lee não só provocaram a insatisfação dos militares que comandavam o país. Em 1976, sua casa foi invadida por agentes da repressão. Em sua autobiografia, a cantora expõe sua versão, e acreditava ter sofrido uma represália por parte da polícia. Alguns dias antes, ela havia ido ao fórum contribuir com sua versão na investigação do caso de Itaquera, onde um policial matou um jovem em um de seus shows. “Recebi o troco três dias depois, quando quatro deles chegaram de madrugada na rua Pelotas com uma ordem de busca sem apresentar nenhum documento. […] Enquanto me vestia no banheiro, os meganhas cresceram e se multiplicaram na casa tipo gremlins. Balú, que a tudo assistia, fez a velhinha pentelha, perguntando o que era aquilo que estavam ‘plantando’ em vasos, caixinhas e gavetas. Trancaram Balú e Danny no banheiro. Finos”.
Ser “sincerona” teve seus custos, e os militares estavam dispostos a cobrar. Lee foi presa e levada ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), onde contou ao delegado o que os agentes fizeram. Seu relato nada adiantou. A Ditadura, disposta a forjar uma imagem negativa da artista, enviou a cantora para o presídio feminino do Hipódromo. Esperavam que a ovelha fosse devorada pelas leoas, mas Rita fez delas suas gatinhas. Ali não era “hospício”, então Lee acabou fazendo “comício” na penitenciária.
Como se não bastasse a teimosia de resistir à tentativa militar de lhe tornar uma criminosa, a artista fez sucesso na cadeia. Em seus relatos, ela conta que as detentas imploravam por um show. A padroeira, querendo agradar os fiéis, conseguiu um violão e, ao invés de “arrombar”, fez sua própria festa. “À noite, todos em suas celas, silêncio bem-vindo, uma boa hora para uma serenata. Então eu, possuída pelo espírito de Elvis Presley em ‘Jailhouse Rock’, empunhei o violão e mandei ‘Ovelha Negra’, com direito ao bis do bis”, escreveu em seu livro. Foi durante o um mês e meio que passou no presídio que Rita escreveu a letra de X21, inspirada na história de cada uma das suas colegas de cela, que a acolheram com carinho. Porém, assim como muitas outras composições, a letra acabou indo para a pilha dos papéis com o carimbo “desacato aos valores da família”.
Épica dentro e fora dos palcos
O tiro dos meganhas saiu pela culatra. Em 1976, após ser solta, Rita lançou a faixa Arrombou a Festa (1977), em parceria com Paulo Coelho, que escandalizou os “bons costumes” da Música Popular Brasileira e exibiu nomes de peso da cena musical, a fim de chamar atenção dos músicos que sempre se abstiveram de tudo: “Tirando Elis, não poupamos ninguém”, escreve em sua autobiografia. Com suas opiniões fortes e seu humor irônico, a Erva Venenosa subiu no palco pela primeira vez após sua prisão, em uma fantasia de presidiária, e, como sempre, fez o maior sucesso.
Seu espírito irrequieto sempre se manifestou nos palcos. No ano de 2012, em Aracaju, quando fazia o último show de sua carreira, a Rainha do Rock não se sentiu nem um pouco acuada pela atuação violenta da polícia na plateia. Muito pelo contrário, fez questão de, novamente, intervir em nome dos inocentes e enfrentar os oficiais. Mesmo não estando mais no passado retrógrado dos tempos de chumbo, a ousadia de Lee recebeu inúmeras críticas e a cantora teve, mais uma vez, sua vida narrada pela perspectiva da imprensa. Em entrevista à Jornalismo Júnior, a pesquisadora Jéssica Feijó, graduada em jornalismo pela UFPB e que dedicou um de seus trabalhos à análise da autobiografia de Rita, conta sobre essa deturpação: “É uma figura que teve sua visibilidade, diferente de muitas outras cantoras, mas também teve sua distorção. Começou a ser caricaturizada pela mídia a partir do momento em que ela se tornou emblemática”.
O legado eterno
Anos mais tarde, mesmo estando afastada dos holofotes há um tempo, a Ovelha Negra não parou de abrir novos caminhos para as mulheres. Em 2016, Rita Lee lançou sua primeira autobiografia e decidiu mostrar que se aposentar dos palcos não significava aposentar seus posicionamentos. Em seu trabalho, Feijó faz uma análise sobre a importância desse livro: “Maureen Murdock, que escreveu sobre a Jornada da Heroína, fala que quando a gente tem acesso a produções femininas acabamos sendo inspiradas por essas mulheres e portas e possibilidades acabam se abrindo”. A entrevistada complementa com uma análise da forma de escrita do relato: “Ela trouxe uma riqueza muito legal com humor e com ironias, mas também abrindo espaço para críticas, para reclamações, para louvores a quem ela quis louvar, para despedidas à quem ela precisou se despedir da sua história. Eu acho que é uma experiência muito rica, quando a gente se depara com uma autobiografia dela”.
Mesmo não estando mais presente, Rita Lee está eternizada em suas músicas, seus livros e em todos os grandes feitos de sua carreira. Seu nome virou adjetivo, verbo, conceito, estilo de vida, legado. Quando questionada sobre o dilema de resumir todo o fenômeno que foi a Ovelha Negra, Cunha declarou: “Pensando nisso tudo que ela carrega, acho que as duas palavras que podem defini-la são: Rita Lee, não é preciso falar mais nada. Ela é um ícone, se eu falar Rita Lee todo mundo vai saber quem é. Eu falo que tem gente que nasce com nome artístico e Rita Lee é o maior deles.” Erva Venenosa, Ovelha Negra, Padroeira. Ela foi música, falou de amor e libertação, transpareceu ousadia e aceitou desafios. Resumi-la a qualquer outra coisa é apagar e diminuir sua trajetória, que ficará marcada na história.
Parabéns Julia! Vc foi a fundo na abordagem!! Amei!
Parabéns Julia. muito top.