Por Gabriela Nangino (gabi.nangino@usp.br)
Menos de um ano após o lançamento de Pobres Criaturas (Poor Things, 2023), filme vencedor de diversas categorias do Oscar 2024, o diretor e roteirista grego Yorgos Lanthimos chega aos cinemas com Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness, 2024). Se distanciando do caráter hollywoodiano de sua última produção, o cineasta agora retorna às suas raízes ao investigar uma concepção animalística do ser humano, assim como em Dente Canino (Dogtooth, 2009) e em Sacrifício do Corvo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer, 2017).
O filme não é uma história linear, mas sim uma antologia — três histórias independentes de aproximadamente 50 minutos cada, interpretados pelos mesmos atores (Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley, Hong Chau, Joe Alwyn e Mamoudou Athie). Em cada história, seus personagens desenvolvem diferentes relações uns com os outros, se assemelhando apenas em uma premissa comum: o que acontece quando a realidade natural dos indivíduos é corrompida?
Partindo de situações problemáticas ou abusivas, os protagonistas precisam decidir até onde irão para recuperar o pertencimento e o amor – ou obsessão – que perderam: ainda que fossem infelizes, se adaptar a uma realidade desconhecida é um desafio ainda maior. Tecendo uma crítica social e moral, Lanthimos barbariza a maneira como as relações de poder podem ultrapassar os limites da racionalidade.
O título dos contos é determinado pelas ações de um único personagem secundário que existe durante toda a obra: RMF, interpretado por Yorgos Stefanakos.
No primeiro conto, denominado ‘A morte de RMF’, Robert (Jesse Plemons) é um homem completamente submisso às vontades de seu chefe, Raymond (Willem Dafoe). Este define todas as ações do personagem de Plemons: aonde ir, o que comer, quando ter relações sexuais… Em determinado momento, Robert se recusa a cumprir um pedido de Raymond e se liberta. Ele se vê obrigado a encarar uma vida fora do aprisionamento, mas não sabe se conseguirá vivê-la.
No segundo conto, ‘RMF voando’, Daniel (Jesse Plemons) é um policial cuja esposa, Liz (Emma Stone), está desaparecida. Quando ela é encontrada, ele começa a estranhar suas ações e pensar que a nova mulher é uma impostora. Daniel se torna cada vez mais perturbado e a força a provar seu amor de maneiras absurdas.
No terceiro e último conto, ‘RMF come um sanduíche’, Andrew (Jesse Plemons) e Emily (Emma Stone) são membros de uma seita cujos fiéis precisam se purificar do mundo pagão. O objetivo dos participantes é encontrar a mulher perfeita, que seria capaz de ressuscitar os mortos. Entretanto, Emily se envolve com questões de seu passado que a impedem de continuar sua jornada no culto, e precisa tomar decisões inesperadas para retornar à sua realidade de conforto.
O objetivo da obra não é promover uma experiência agradável ao público, mas expor as nuances da psique humana. Englobando violência, romance, horror e comédia, fica incerto, em determinados momentos, o que faz parte de uma metáfora maior e o que é apenas bruto e cruel, sem prestar nenhum serviço ao espectador.
As origens estilísticas de Lanthimos remetem a um modelo de cinema independente que surgiu durante a crise imobiliária de 2008, que ocorreu nos EUA e repercutiu em escala mundial. Após a instauração de uma depressão econômica profunda na Grécia, iniciou-se uma onda artística contracultural que propunha questionar os valores capitalistas dominantes. Aliando-se à filosofia queer, a chamada “Estranha Onda Grega” pretendia subverter o status quo, desconstruindo pautas normativas das narrativas cinematográficas e distorcendo as noções de bem e mal, certo e errado.
Cresce, assim, a produção de filmes de baixo orçamento, marcados por tensão e distúrbio psicológico e desprovidos de um sentido ou desfecho definido. Todas essas características são fortemente observáveis, principalmente nos filmes iniciais de Lanthimos. Porém, após fazer sucesso com O Lagosta (The Lobster, 2015), a proporção (e o orçamento) das obras do cineasta modificaram-se totalmente. Apesar de ter sempre se mantido fiel aos fatores de estranhamento e surrealismo, Tipos de Gentileza é uma clara regressão ao modelo mais primitivo e autêntico do diretor.
Por vezes, a frieza na direção do cineasta ofusca a mensagem que pretende ser transmitida: os sentimentos retratados, como desapontamento, rejeição e raiva, parecem artificiais e podem afastar o público da obra. A curta duração das histórias torna difícil para o espectador se conectar com as personagens, e o corte brusco entre os contos deixa alguns aspectos mal desenvolvidos. Por exemplo, alguns simbolismos repetem-se em todo o filme, mas não carregam um significado claro: carros em alta velocidade, sonhos, sexo, referências a peso e tamanho e hospitais são alguns deles.
A proposta, ainda que muito interessante, não é executada ao seu máximo. Buscando um discurso complexo e repleto de camadas, Lanthimos não possui todos os meios necessários para alcançá-lo — o cineasta começou a dirigir essa obra durante a pós-produção de Pobres Criaturas, e é perceptível que ela foi entregue às pressas. O humor ácido, apesar de entreter o espectador, pode se perder no aspecto confuso das histórias.
A cinematografia, marcada por planos-detalhe e enquadramentos centralizados, contribui para uma estética perfeccionista — provocando uma quebra ainda maior quando ocorrem momentos de horror. A construção do cenário angustiante é bem sucedida por meio da trilha sonora crescente e da paleta de cores fortes e inusitadas. Tipos de Gentileza reflete uma visão niilista do mundo, na qual todos são tão egoístas e centrados em suas próprias mentes que se desconectam totalmente da realidade ao seu redor.
Em parceria com o diretor de fotografia Robbie Ryan, o mesmo de Pobres Criaturas e A Favorita (The Favourite, 2018), Lanthimos volta a experimentar o uso do preto e branco em momentos de sonhos e flashbacks. Surpreendente, repugnante e aflitivo, Tipos de Gentileza não é um filme fácil de se digerir, mas o cineasta aborda o obscuro entrelaçado à condição humana com maestria. Para os apreciadores dessa arte sinistra, é uma visita ao cinema que definitivamente vale a pena.
O filme já está em cartaz no cinema. Confira o trailer:
*Imagem de Capa: Divulgação/Searchlight Pictures