Há várias formas de se medir o legado de um atleta. Pode-se levar em conta a sua dominância dentro da modalidade, os títulos que conquistou, as marcas e recordes quebrados ou até mesmo a revolução provocada na forma como seu esporte é praticado. Sem dúvidas, a carreira de Katie Ledecky já continha todos estes elementos.
Os Jogos Olímpicos de Tóquio, no entanto, entregaram um capítulo inesperado para a carreira de uma das maiores nadadoras de todos os tempos. Sob todos os obstáculos e dificuldades possíveis — a pressão midiática, as performances abaixo de sua capacidade e o surgimento de uma rival à altura — Ledecky provou mais uma vez que seu nome merece estar entre os grandes do esporte, mesmo que a sua reputação tenha sido questionada durante a competição.
400m livre: Derrota inédita e choque midiático
A primeira prova de Ledecky na Olimpíada não era exatamente a sua especialidade. Nadadora de provas de fundo, a norte-americana sempre se sentiu mais confortável em provas mais longas, onde suas habilidades únicas, como a força das braçadas e a resistência, serviam-lhe melhor.
Por outro lado, não tinha como Ledecky fugir do favoritismo. Ela havia vencido a prova em três dos últimos quatro mundiais e na Rio-2016. Neste último torneio, também registrou o recorde mundial, com a marca de 3:56.46. Apostar contra a norte-americana parecia insano.
Mas para quem testemunhou o seu único revés nos 400m deste ciclo olímpico, é justamente por este episódio que se inicia a compreender o que ocorreria em Tóquio. No Mundial de Gwangju, em 2019, uma jovem australiana de apenas 18 anos desbancou a campeã olímpica e levou o ouro da prova. Dois anos depois, a figura de Ariarne Titmus seria conhecida pelo resto do mundo como a algoz da superestrela das piscinas.
Nas qualificatórias dos 400m, Ledecky chamou a atenção pela perda de seu domínio diante das rivais. Ao nadar acima da marca de quatro minutos, o que não havia acontecido no Rio de Janeiro, o bicampeonato olímpico não estava mais garantido. Era preciso saber se havia uma oponente capaz de desbancá-la.
Na final, Ledecky voltou a sua melhor forma e nadou apenas nove décimos mais lenta do que na quebra do recorde mundial cinco anos antes. E foi justamente por causa disto que sua derrota foi tão surpreendente. Titmus mostrou como sua performance no título mundial não havia sido um acidente e superou a norte-americana ao registrar uma marca apenas dois décimos acima do recorde da própria Ledecky. Ouro para a Austrália, dúvidas no corner dos EUA.
200m livre: Performance irreconhecível e alerta vermelho
Os dois dias que separaram a derrota de Ledecky e o próximo confronto entre as novas rivais talvez tenham sido os mais tensos da carreira da norte-americana. Uma vez imbatível, a nadadora passou a ser questionada, enquanto todos os olhares se voltavam à revelação australiana e seu efusivo treinador digno de memes.
Se os 400m provaram ser um desafio, os 200m prometiam dificuldades ainda maiores. Diante de velocistas, Ledecky venceu a prova na Rio-2016 de forma apertada, longe da dominância que possui em provas longas. O favoritismo e a necessidade de uma vitória para acalmar os críticos apareciam como uma perigosa distração. E de fato foram letais.
Na final da prova, Ledecky nadou mal e registrou um tempo bem acima de sua performance na Olimpíada anterior. O medo de perder a prova nos últimos metros, como havia ocorrido nos 400m, tirou a norte-americana de seu planejamento, o que a levou a nadar de uma forma irreconhecível.
O ouro ficou com Titmus, que já tinha mostrado capacidade em vencer Ledecky. A surpresa foi que a atual campeã da prova nem conseguiu terminar no pódio, finalizando a corrida apenas com um doloroso 5º lugar. Não era mais uma questão de ser dominante e sim de proteger o seu legado.
1500m livre: Retorno da confiança e domínio
A prova mais longa da natação estreou em Jogos Olímpicos apenas nesta edição. Ledecky, no entanto, já era tricampeã mundial e recordista. Para entrar em detalhes, a norte-americana quebrou o recorde da prova em seis oportunidades ao longo da carreira. Um domínio absoluto.
Afinal, existe oportunidade melhor de recuperar a confiança do que em uma disputa cujo domínio é absolutamente algo de outro planeta? Se o ouro nos 1500m era questão de tempo para Ledecky, a conquista serviu para lhe dar tranquilidade e alívio. No mundial de 2017, a norte-americana havia vencido a prova com quase vinte segundos de vantagem. Desta vez, foram apenas quatro segundos que separaram Ledecky da medalhista de prata, a compatriota Erica Sullivan. Pouco importava.
O fundamental era recuperar o psicológico, pois Ledecky teria apenas mais uma oportunidade de vencer sua rival australiana e provar que ainda deveria ser considerada a maior de todas.
800m livre: Tricampeonato olímpico e consolidação do legado
Mais uma prova longa. A única em que Ledecky já era bicampeã olímpica. Se Titmus desejasse de fato ser melhor que a norte-americana, era preciso vencer a rival em seu próprio território. Para Ledecky, uma vitória significaria o tricampeonato e a consolidação de seu enorme legado.
Após duas derrotas para a australiana, muitos esperavam uma estratégia diferente por parte da norte-americana. Talvez não forçar tanto o ritmo, preservar energia e atacar no fim. Uma atleta abalada e mais imatura preferiria este caminho. Mas para Ledecky, era fundamental não apenas vencer, mas derrotar as adversárias da única forma que sabe: dominando, deixando poeira para as rivais.
E como estava em seu plano de jogo, Ledecky foi dominante do início ao fim. Titmus e as rivais não ameaçaram a norte-americana em nenhum momento. O ouro nos 800m poderia ter sido o mais clichê, afinal se tratava da terceira vitória na prova em Jogos Olímpicos, mas acabou sendo a mais importante, pois espantou todos aqueles que tentaram deslegitimar o legado da maior nadadora da história.
Após uma difícil trajetória em Tóquio, Katie Ledecky encerrou a competição com duas medalhas de ouro e duas de prata — também fez parte da equipe americana no revezamento 4x200m livre — e tornou-se a única nadadora da história com seis ouros em provas individuais. E a pergunta que fica é: o que mais Ledecky precisa provar? Provavelmente nada, mas vale aguardar o que a norte-americana aprontará daqui há três anos, quando os Jogos irem para Paris.
*Imagem de capa: Ledecky comemora o ouro nos 800m livre [Imagem: Twitter/FINA]