Por Gabriela Cecchin (gabrielacmr@usp.br)
“Reina a ignorância. Muitos deixarão de lucrar se ela for abolida. Muitos enriquecem utilizando as trevas de sua monarquia.”
Um mundo pós-apocalíptico, saído de uma guerra nuclear seguida de um massacre contra o conhecimento, teve quase todos os livros queimados e quase todos os intelectuais mortos ─ exceto aqueles que se refugiaram e se camuflaram em instituições religiosas.
Esse é o cenário proposto por Um Cântico para Leibowitz (Editora Aleph, 2020), de Walter M. Miller Jr., autor norte-americano do século 20. Ele participou ativamente da Segunda Guerra Mundial em 55 combates, incluindo o bombardeio da abadia dos beneditinos em Monte Cassino, na Itália ─ episódio que o deixou profundamente traumatizado. O livro foi publicado em 1959, em meio à Guerra Fria (1947-1991).
A edição da Aleph conta com um marca-página customizado, além de um glossário e uma lista de expressões latinas não traduzidas pelo autor. O glossário e a lista são indispensáveis para a compreensão total dos episódios narrados e dos seus significados.
A obra é dividida em três partes: Fiat Homo (Faça-se o Homem), Fiat Lux (Faça-se a Luz) e Fiat Voluntas Tua (Seja feita a Tua vontade). Com isso, já é possível perceber a influência católica na obra ─ se isso já não estava explícito na capa ─, o que pode ser explicado pela conversão do escritor ao catolicismo após sua participação na guerra, principalmente no bombardeio da abadia.
O noviço pioneiro
Fiat Homo se passa seiscentos anos após uma guerra nuclear que ocorreu no século 20 e que dizimou boa parte da humanidade. Após a catástrofe, houve uma “Era da Simplificação”, período em que os sobreviventes perderam a confiança nos estudiosos, passaram a assassiná-los e queimaram todos os livros que encontraram pela frente. Nessa época, um homem chamado Leibowitz ─ que participou dos estudos científicos por trás da radioatividade que causou todo esse problema ─ se esforçou para preservar o máximo possível do conhecimento. Os escritos que ele e seus seguidores conseguiram armazenar foram guardados em um edifício católico: a Abadia.
A narrativa acompanha a trajetória de Francis, um noviço que se prepara para tornar-se um monge na Abadia de Leibowitz, localizada no meio de um deserto em uma região pertencente ao antigo Estados Unidos. O narrador é onisciente, mas é centrado na perspectiva do garoto religioso, um fator muito bem enfatizado na escrita de Walter, visto que, em algumas descrições do cenário, são utilizados termos bíblicos.
Porém, mesmo católico, o autor não deixa de criticar certas partes da Igreja. O abade, chefe da Abadia, é um homem conservador e egocêntrico, que dificulta muito a vida de Francis e provoca um medo constante no garoto.
“Toda vez que o noviço tentava visualizar a Santíssima Trindade, a fisionomia de Deus Pai sempre se confundia com o rosto do abade, que normalmente ─ assim parecia a Francis ─ estava zangado.”
Como a narrativa é individualizada nos sentimentos do noviço, o leitor sente um afeto pelo protagonista e a leitura é facilitada, pois há um sentimento de curiosidade e preocupação quanto aos próximos sofrimentos de Francis nas mãos do abade e da própria sociedade corrompida.
O retorno da Ciência
Fiat Lux acontece seis séculos após os acontecimentos da primeira parte, o que causa um grande desconforto, porque toda a familiaridade construída ao longo das primeiras páginas é perdida e o leitor precisa fazer todo o esforço de novo para voltar a ter afeição pelo livro.
A narrativa se passa no contexto de uma guerra iminente entre alguns povos da região norte-americana e, para essa ambientação, é necessária toda uma construção de mundo, que não tinha sido feita antes devido à visão isolada e limitada de Francis perante os esquemas políticos. A construção do mundo é essencial em uma narrativa distópica de ficção científica, mas isso foi feito por meio de um despejo muito grande de informação, o que diminui o ritmo da leitura. Além disso, não houve tempo suficiente para construir uma empatia pelos novos personagens, e é difícil continuar lendo quando não há motivos para se importar com os acontecimentos. De qualquer forma, após algumas dezenas de páginas, a empatia é novamente construída e boa parte do universo fictício já foi explicada.
No século narrado, há uma retomada do estudo científico, que tinha ficado adormecido por séculos desde a Era da Simplificação. A Abadia de Leibowitz é um fator crucial para esse processo, visto que armazena grande parte do conhecimento humano. Porém, ela também começa a se tornar um obstáculo para alguns cientistas, devido às limitações e preconceitos de parte dos monges.
“Se o senhor tentar salvar o saber até que o mundo se torne sábio, padre, o mundo nunca o possuirá.”
A repetição da História
Fiat Voluntas Tua ocorre, mais uma vez, seiscentos anos após os acontecimentos da segunda parte. Mas, felizmente, não é necessário fazer todo o esforço novamente para voltar a gostar do livro, porque Fiat Lux já contou os acontecimentos de modo mais amplo, causando uma empatia generalizada por todo aquele universo. Assim, o leitor fica curioso com o que poderá acontecer com a Abadia e não depende apenas dos personagens para se interessar pela história.
Além disso, as primeiras páginas dessa última parte não são um despejo de informações, mas sim um cenário mais parecido com o mundo contemporâneo, o que traz familiaridade ao leitor. A ciência se desenvolveu novamente ─ em alguns aspectos, mais do que na época pré-apocalíptica ─ e há a possibilidade de uma nova guerra nuclear.
“Meus filhos, eles não podem fazer tudo aquilo de novo. Somente uma raça de desatinados poderia fazê-lo de novo.”
Observa-se a presença de personagens femininas, que praticamente não tinham aparecido até então. O formato de narração também se mostra diferente, visto que há alguns diálogos em forma de entrevistas da imprensa com políticos. Isso quebra o ritmo tradicional do resto do livro para se adequar à nova sociedade apresentada na terceira parte, o que a torna interessante de ler.
Considerações finais
Um Cântico para Leibowitz é imersivo, intrigante e recheado de pesquisa, além de trazer questionamentos importantes para a sociedade do século 20 ─ e para a nossa também.
Há uma explícita crítica à guerra, fato que remete ao histórico de vida do autor. Todas as batalhas retratadas na obra são claramente evitáveis e produzem apenas assassinatos de civis e destruição de conhecimentos milenares importantes para a sociedade. A temática da morte é ilustrada durante todo o livro, com a humanização e destaque para os abutres, aves que se alimentam de organismos mortos ─ e que fazem isso constantemente, dada a quantidade de cadáveres na obra.
“Há doze séculos, nem mesmo os sobreviventes se beneficiaram. Será que devemos seguir pelo mesmo caminho mais uma vez?”
*Imagem de capa: Reprodução/Aleph