Futurismo, ficção científica, distopias. Em meio à riqueza literária — entre romances, suspenses, dramas e tantos outros gêneros —- um tipo específico de enredo merece destaque pela criatividade que envolve sociedades futuras com características peculiares, ciência, autoritarismo e, como toda boa história, plot twists e personagens revolucionários. As distopias retratam a humanidade num tempo futuro sob um ponto de vista negativo, crítico, que questiona aspectos do modo de vida na contemporaneidade, trazendo reflexões sobre individualismo, pensamento político, tecnologia e perfeccionismo.
Esse gênero já existe há muito tempo, tanto que um dos primeiros livros – praticamente o pioneiro – a retratar esse tipo de história foi Nós (??), publicado em 1924. O livro, escrito pelo russo Yevgeny Zamyatin, foi classificado como uma sátira futurista distópica ao criticar o socialismo russo e retratar uma sociedade controlada a partir da matemática dos sistemas industriais de Taylor sob a visão de um cientista. No enredo, são levadas ao extremo as noções de conformismo e autoridade numa sociedade que considera o livre-arbítrio a causa de todos os problemas e decepções humanos. Apesar de não ser muito conhecido atualmente, o livro desenvolveu uma nova perspectiva literária e causou um boom de publicações do mesmo gênero que acontece até hoje.
O clássico Admirável Mundo Novo (Brave New World), escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932, mostra o que seria Londres no ano de 2540 (632 DF – Depois de Ford): um lugar rodeado de tecnologia, principalmente relacionada à genética e a métodos de controle psicológico e social, usados para prover a felicidade geral entre todas as castas. Com expressões como “Oh Ford” e “Nosso Freud”, essa sociedade interliga elementos da Linha de Montagem e da Segunda Teoria Tópica, que dizem respeito à mecanização, padronização, divisão de tarefas, satisfação sexual, censura, repressão e costumes aprendidos na infância. A partir dos avanços na reprodução, a mera menção dos termos “pai”, “mãe”, “parto” e “amamentação”, por exemplo, que remetem aos antepassados e a seu modo de vida, se tornaram obscenas e repugnantes, assim como aspectos ligados à religião e monogamia. Por mais que todos esses elementos fossem desprezáveis no “mundo novo”, ainda existiam áreas de preservação da cultura “selvagem”, onde a maternidade, o casamento e as crenças eram mantidas.
A história retrata Bernard Marx, um homem que se sente deslocado nessa sociedade futurística, principalmente por suas peculiaridades físicas, quando comparado a outros membros de sua casta. Ao visitar uma dessas reservas selvagens – “Malpais” -, vê uma oportunidade de integração entre seus semelhantes ao expor uma mulher, Linda, que veio originalmente da civilização e teve um filho, John, no mundo selvagem.
Aclamado pela crítica, que na época do lançamento o classificou como um enfrentamento à era das Utopias – que geralmente tratavam do positivismo, da esperança socialista e da indestrutibilidade das novas tecnologias -, Admirável Mundo Novo inspirou o universo musical, como Iron Maiden, com o álbum e canção de mesmo nome (Brave New World), Zé Ramalho, com a música lançada durante a Ditadura Militar (Admirável Gado Novo), e Pitty, com Admirável Chip Novo. O livro rendeu adaptações cinematográficas e, claro, inspirações para outras histórias distópicas.
Publicado em 1949, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (Nineteen Eighty-Four), escrito por George Orwell, também compõe a lista de clássicos de um futurismo assustador. O enredo envolve manipulação, vigilância invasiva, opressão e autoritarismo, trazendo a figura do Grande Irmão – com o bordão “Big Brother is watching you” – como regulador estatal onipresente de tudo e todos no que seria a Inglaterra num futuro não muito distante.
A história gira em torno de Winston Smith, um homem que trabalha no Ministério da Verdade e é responsável pela propaganda governamental e pela manipulação de documentos históricos – de modo que nada possa desmentir a ideologia do partido -, mas que secretamente odeia o governo e o Grande Irmão e espera constantemente por qualquer revolta que possa haver contra o autoritarismo. Além das distorções de artigos, fotos e documentos em geral, o Ministério da Verdade criou a Novilíngua, um idioma paralelo, ainda não terminado, que impediria qualquer tipo de expressão contrária aos ideais do governo, consolidando totalmente a censura. Haviam outros Ministérios, como o da Paz e o do Amor, que, assim como o da Verdade, eram ironicamente nomeados e tratavam, respectivamente, da Guerra e da Tortura.
Orwell se inspirou, principalmente, em Stalin, Hitler e Churchill para criar a figura de autoridade de seu livro, criticando as formas de governo presentes nas sociedades contemporâneas a ele. O sucesso levou a adaptações cinematográficas, além de outras influências culturais, como a música We Are The Dead, de David Bowie, a história em quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore, e o reality show – conhecido internacionalmente – Big Brother.
O estado-unidense Ray Bradbury, em 1953, deu continuidade ao gênero com Fahrenheit 451, livro que leva no nome a temperatura, em Fahrenheits, da queima do papel. A história retrata o bombeiro Guy Montag, cujo trabalho era, ironicamente, o de queimar os abomináveis livros, que eram ilegais e representavam um perigo e uma afronta à ordem social, já que ideias próprias e críticas eram desprezáveis. Quando Guy conhece sua vizinha, Clarisse, que tem pensamentos diferentes de quaisquer outros que tenha visto, o bombeiro começa a repensar seu trabalho e modo de vida, questionando se, realmente, a repugnância ao intelecto é o melhor a se cultivar em meio à sociedade.
Bradbury afirmou que, ao escrever a história, quis criticar todo e qualquer tipo de autoritarismo, de esquerda ou direita, em qualquer parte do mundo, com referências às queimas de livros na Alemanha nazista e à censura dos anos 50 nos EUA. Quanto à exaltação da ignorância no universo de Montag, o autor fez paralelos à televisão, que estava, de certa forma, “roubando” o interesse pelo que é enriquecedor ao intelecto, ou, mais especificamente, pelos livros, e assim teve sua maior inspiração e questionamento.
Contado em primeira pessoa por um anti-herói, Laranja Mecânica (A Clockwork Orange), de Anthony Burgess, conta a história de Alex, garoto que faz parte de uma gangue que rouba e estupra na Inglaterra de um futuro próximo e fantasia com suas agressões e orgias enquanto escuta Beethoven. Com sua própria linguagem de gírias, o que exige um glossário como acompanhamento de quase todas as edições do livro, os meninos cometem as mais diversas atrocidades enquanto as autoridades tentam reformá-los com extrema violência.
Publicado em 1974, o enredo envolve manipulação psicológica pelo chamado Método Ludovico, uma espécie de punição e adestramento por meio de vídeos e drogas injetáveis. Lida com assuntos como autoritarismo, hierarquia, livre-arbítrio e condicionamento numa história inspirada no estupro da esposa de Burgess por soldados dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, o autor havia percebido o crescimento da cultura adolescente e, também, do número de gangues de garotos delinquentes na Inglaterra e afirmou que sua maior crítica foi ao Behaviorismo no que se tratava de condicionamento comportamental e vontade própria.
O sucesso do livro inspirou o álbum A-Lex, da banda brasileira Sepultura – com o trocadilho com o nome do protagonista da história -, a cantora estado-unidense Lana del Rey, com o álbum Ultraviolence, e David Bowie, que usou gírias do livro na música Girl Loves Me, além das adaptações da história para o cinema.
A primeira distopia focada no público jovem e nas sagas literárias foi a história de Scott Westerfeld, com o primeiro livro, Feios (Uglies), publicado em 2005. Retratado em uma sociedade obcecada pela perfeição física, o enredo envolve Tally Youngblood, uma garota que, como todas as outras pessoas, ficou presa na Vila Feia até seu aniversário de 16 anos, quando ganhou do governo uma cirurgia plástica como nenhuma outra, que, entre outros procedimentos, trocava a pele, os ossos e os traços faciais para atingir o exponencial da beleza.
Apesar de se passar num tempo futuro, a série de quatro livros – Feios, Perfeitos, Especiais e Extras – faz reflexões sobre as mudanças ocorridas na adolescência, tanto físicas quanto psicológicas, na busca pela adaptação e sensação de pertencimento e, principalmente, critica a supervalorização da aparência no mundo atual, onde o individualismo, o consumismo e o culto ao corpo são assuntos frequentes que demandam análise e atenção.
Com a volta da temática distópica, agora voltada para o público jovem, em 2008 foi lançada a série de sucesso imensurável de Suzanne Collins. Jogos Vorazes (The Hunger Games) retrata o que seria a América do Norte num tempo em que o único país que ocupa essa área é Panem, dividida em 12 distritos e a Capital, onde fica a sede do governo e praticamente toda a riqueza da nação. A história é narrada em primeira pessoa por Katniss Everdeen, de 16 anos, que mora no mais pobre dos distritos, o 12, e se inicia no dia da Colheita, quando um menino e uma menina são sorteados entre os jovens de cada distrito para participarem dos Jogos Vorazes. Os Jogos são uma demonstração de poder da Capital, como um castigo devido à rebelião contra o governo, ocorrida 74 anos antes da história, onde 24 jovens se enfrentam em uma arena até que apenas um deles saia vivo. É televisionado em rede nacional e apresentado como entretenimento aos que assistem.
Na 74ª edição dos Jogos, o nome feminino sorteado foi Primrose Everdeen, irmã caçula de Katniss, que, em seguida, por impulso, se voluntaria para salvá-la; o masculino foi Peeta Mellark, filho do padeiro, que já teve interações não muito amistosas com Katniss no passado. Em busca de patrocínios e chances de chegarem longe no Jogo, os dois encarnam a dupla de amantes desafortunados e recebem atenção da mídia e do público logo no início.
Criticando a sociedade do espetáculo e referenciando a política do Pão e Circo, Collins criou um universo dentro de três livros – Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança – que propicia uma perspectiva fictícia de futuro assustadora que, ao mesmo tempo, lembra os horrores do passado real e histórico, como se fosse um aviso de que a história pode se repetir. A autora foi, também, inspirada pela transmissão televisiva da Guerra do Iraque e pelos reality shows, mistura que propiciou a criação desse universo incrível e amedrontador. A série recebeu atenção ainda maior ao ser adaptado cinematograficamente, com Jennifer Lawrence como protagonista, numa produção de 4 filmes elogiados pela crítica e adorados pelo público.
Seguindo a tendência de Collins, Veronica Roth lançou a série Divergente (Divergent), composta por três livros – Divergente, Insurgente e Convergente -, em 2011, que logo se tornou um best-seller do The New York Times. A história se passa em Chicago, no futuro, que foi dividida entre cinco facções, cada uma cultivando uma virtude específica: Abnegação, Amizade, Audácia, Franqueza e Erudição, e cada uma delas cuida de um setor da sociedade em prol da organização do município. Todos os jovens, ao atingirem os 16 anos, passam por um teste que indicará a qual facção cada um deve pertencer.
Beatrice Prior, a protagonista, surpreende a si mesma ao escolher abandonar sua facção de origem, onde está sua família – Abnegação -, para fazer parte da Audácia, e ainda mais ao descobrir que é, na verdade, uma Divergente, ou seja, possui aptidão para mais de uma facção. Tris mantém esse segredo guardado porque, por não se enquadrar em apenas um grupo de pessoas, é dificilmente persuadida e representa, portanto, uma ameaça ao sistema milimetricamente organizado.
A saga lida com temas relacionados à identidade – no que diz respeito às mudanças no período da adolescência e à necessidade de interação e pertencimento -, à violência – em partes específicas do enredo, como os testes de força, por exemplo -, autoritarismo e condicionamento psíquico. O sucesso da série rendeu o lançamento de filmes protagonizados por Shailene Woodley e Kate Winslet, baseados na história de Roth: os dois primeiros, Divergente e Insurgente, tiveram números expressivos nas bilheterias de cinema, mas o terceiro, adaptação da primeira metade do último livro, Convergente, fracassou em termos comerciais, o que reduziu o orçamento do último filme, baseado na segunda parte do último livro, Ascendente, e o impediu de ser apresentado no cinema.
Maze Runner é outra distopia adolescente que conquistou seus fãs, mas que também não foi muito prestigiado na adaptação cinematográfica, muito menos teve o sucesso literário de seus antecessores. A série de livros escrita por James Dashner traz uma espécie de labirinto aonde, a cada trinta dias, um jovem é colocado e desafiado a conviver com os outros que vieram antes e a sobreviver aos perigos que enfrentam.
Em 2013, Dave Eggers escreveu O Círculo (The Circle), que conta a história de Mae Holland e a empresa na qual vai trabalhar – que leva o nome do título do livro. A empresa é ligada à internet, câmeras e todo tipo de tecnologia e proporciona um bom salário, o que faz com que a protagonista, recém-graduada, fique extremamente animada logo no início. Contudo, com os instrumentos diversos de rastreamento e vigilância do Círculo que começam a interferir na privacidade de Mae e sua família, a ideia de emprego perfeito começa a se desmanchar.
O enredo foi, em determinados aspectos, comparado a Admirável Mundo Novo e a Mil Novecentos e Oitenta e Quatro devido à forte temática científica e tecnológica, além da crítica à invasão de privacidade e à ideia de autoritarismo onisciente. O livro não foi unanimemente aprovado pela crítica e também não teve muita atenção do público na época de seu lançamento, mas com a adaptação cinematográfica, lançada em abril de 2017 e estrelada por Emma Watson e Tom Hanks, a história ficou mais conhecida e obteve maior sucesso.
Por mais que enfatizem assuntos diferentes, todas as novas distopias, assim como quaisquer outros gêneros literários da atualidade, acabam por referenciar os clássicos que as antecederam. Em comum, essas histórias mantêm, com toda certeza, o tom crítico e a criatividade, abordando temas reflexivos sobre a sociedade contemporânea e a que poderia vir a existir, como um alerta aos conflitos que a humanidade carrega hoje em dia e, muitas vezes, carregou por toda a existência. Além do entretenimento proporcionado pela leitura, os livros distópicos têm a função de despertar o pensamento crítico, as ideias revolucionárias e a negação ao conformismo e a qualquer tipo de manipulação. Em Fahrenheit 451, diz-se que os livros mostram os poros do rosto da vida, e Bradbury não poderia ser mais verdadeiro.
Por Júlia Mancilha
juliabman@gmail.com
O artigo é muito bacana, mas talvez a primeira obra distópica na literatura seja o livro O Senhor do Mundo de Robert Hugh Benson, um padre católico e inglês que prevê inúmeros quadros políticos e mesmo invenções tecnólogicas. A obra foi escrita em 1907.