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60 anos de Jean-Luc Godard e a Nouvelle Vague

Há uma dinâmica elementar em tudo: por razão da passagem do tempo, o novo sempre desbanca o velho, até que se torne ele próprio obsoleto, completando e alimentando um ciclo sem fim. Essa é uma descrição, manchada com algum lirismo barato, válida à compreensão do ciclo biológico da vida, ou mesmo das estações do ano, …

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Há uma dinâmica elementar em tudo: por razão da passagem do tempo, o novo sempre desbanca o velho, até que se torne ele próprio obsoleto, completando e alimentando um ciclo sem fim. Essa é uma descrição, manchada com algum lirismo barato, válida à compreensão do ciclo biológico da vida, ou mesmo das estações do ano, mas que sem prejuízo de significado, adequa-se à história das artes. Afinal, também nela o novo e o velho se colocam face à face em um processo que, bem se diga, é mais conflituoso do que pacífico. Por um lado, o novo espanta e ameaça por sua estranheza ― vinda da essência de sua alteridade ― e, por outro, o velho, ameaçado, busca o refúgio confortável e caracteristicamente rabugento das muralhas do conhecido. 

Os românticos portugueses diziam faltar a Antero de Quental e seus colegas de Coimbra, que viriam a fundar o Realismo no país, bom senso e bom gosto; os acadêmicos da École des Beaux Arts francesa desvalorizaram por muito tempo a escultura vanguardista de Rodin; Anita Malfatti teve de ouvir de Lobato que a única diferença de suas telas daquelas feitas nos manicômios, como terapia, é que a dos loucos é arte sincera. O velho aposta na permanência, mas o novo chega em ondas

Quando Acossado (À Bout De Souffle, 1960), o primeiro filme de Jean-Luc Godard, estreou na primavera europeia de 1960,  o mitológico choque do velho contra o novo foi novamente produzido. Desta vez, colocavam-se de frente o convencionalismo endinheirado do cinema norte-americano que fincara raízes em território francês e um novo cinema fragmentário, marginal, feito por jovens não iniciados nos moldes acadêmicos da sétima arte, mas não menos instruídos por isso; muito pelo contrário: todos precisaram estudar muito o cinema para recriá-lo. Esse cinema “rebelde” ficou conhecido como Nouvelle Vague (Nova Onda em português) e Acossado virou sua porta de entrada.

 

Cena de Acossado, filme representativo da Nouvelle Vague Fracesa. [Imagem: Rialto Pictures/StudioCanal]
Cena de Acossado.  [Imagem: Rialto Pictures/StudioCanal]

“Eu assisti Acossado. É baixaria gratuita”, dizia um homem de meia idade na saída do cinema. “É horrível, uma farsa”, concordava pasmada uma senhora. Ambas as falas estão no documentário de Emmanuel Laurent, Deux de La Vague (2010), que trata das carreiras, amizade e impacto de Godard e Truffaut no cinema mundial. 

Os comentários intercalam-se com visões favoráveis ao filme e depoimentos dos diretores mencionados sobre as dificuldades de aceitação do movimento pela indústria cinematográfica dos anos 1950, compondo o retrato de uma opinião pública alvoroçada e ainda resistente à nova experiência.  De todo modo, ainda que desfavorável, a repercussão introduziu as primeiras rachaduras no establishment do cinema e, só por isso, a missão de Godard e a sua criação parecia ter se completado.


Quem eram os jovens rebeldes? 

Em 1951, a revista Cahiers du Cinéma tinha sido criada por Jacques Doniol-Valcroze, André Bazin e Lo Duca. A revista nasceu com o propósito de cobrir criticamente o cinema francês comercial daquela época e logo chamou a atenção de jovens interessados na sétima arte. Entre eles estavam os futuros diretores que dariam início à Nouvelle Vague anos depois. 

Eric Rohmer, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Claude Chabrol se somaram ao corpo de redação da revista e se notabilizaram pela crítica ferrenha com relação ao estado da sétima arte francesa na década de 1950, ganhando o título de “jovens rebeldes”. O maior incômodo deles era a falta de originalidade com a qual sofria o cinema francês. Era como se o mesmo estivesse anestesiado. A inércia criativa do circuito comercial nacional tem elos com o grande fluxo das produções culturais estadunidenses que chegou aos países da Europa Ocidental no contexto do Plano Marshall.

Ao final da década de 1940 e por quase toda década de 1950, as produções de Hollywood pipocavam nas salas de cinema da França e tinham recordes de bilheteria. Almejando o mesmo sucesso financeiro, a indústria cinematográfica francesa acabou replicando os temas e estruturas do cinema hollywoodiano, sem apresentar uma preocupação maior com a qualidade da mensagem e/ou da arte exprimida na tela, o que gerou crítica enérgica dos rebeldes e os motivou a agir. Nas palavras de Giovanna Palanga Mastena, estudante de Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP, em entrevista à Jornalismo Júnior: “[A Nouvelle Vague] é a primeira tentativa formal que vemos de desilusão completa com o cinema americano”.

O circuito de Cannes de 1959 premiou François Truffaut como melhor diretor com o longa Les Quatre Cents Coups (1959), marcando o momento de inauguração da Nouvelle Vague. No mesmo ano, saía o aclamado filme franco-japonês Hiroshima, mon amour (1959) de Alain Resnais. Um ano depois, era a vez de À Bout De Souffle de Godard, o mais ambicioso até então. Ainda que causassem estranhamento à opinião geral, esses três filmes fertilizaram o caminho para um movimento que iria dominar a paisagem cultural francesa por quase 15 anos. A  linha da Nouvelle Vague se confunde com a da carreira  desses diretores. 

 

Linha do tempo da Nouvelle Vague. Comunicação Visual Jornalismo Júnior.

 

Entre os diretores dessa época, Godard detinha uma das filmografias mais extensas. Só na década de 1960, ele produzira 8 longas-metragem, aplicando em todos eles aspectos de sua nova visão. Para o diretor, quebrar as regras do convencionalismo era tão primordial para seu processo criativo, que nem mesmo sua filmografia estava a salvo de autocríticas. Assim que o movimento começou a dar os primeiros sinais de esgotamento, Godard se aventurou em novas reinvenções nas décadas de 1970 e 1980, desmistificando o western, jogando luz em questões políticas (Jusqu’à la victoire, 1970), religiosas (com direito a dois filmes sendo proibidos no Brasil sob o jugo da Ditadura Militar) e mergulhando no mundo da pintura (Passion, 1982).  

Alguns dos detalhes biográficos relacionados à juventude de Jean-Luc foram dados por Anna Karina, um dos ícones do movimento francês, em entrevista ao The Guardian em 2016. A estrela esteve casada com o diretor de 1961 a 1968 e relatou uma vivência conturbada, caracterizada por um traumático aborto espontâneo e pelo comportamento errático e abusivo de seu marido; não raramente, Godard sumia sem deixar explicações, apenas para voltar três ou quatro semanas depois. Anna Karina faleceu em dezembro de 2019, com 79 anos.


Luz (Break), Câmera (The), Ação (Rules)

Num exercício subversivo, Godard e os outros diretores apresentaram ao mundo técnicas cinematográficas inovadoras. Partindo do pressuposto que a câmera é para o diretor o que a caneta é para o escritor, os “jovens rebeldes” entendiam que o cinema deveria ser um caminho de expressão pessoal para as formas de pensamento e experiências dos diretores, defendendo, portanto, filmes porosos ao mundo real em tumulto. Nascia assim a ideia da caméra-stylo (câmera-caneta), uma forma de direção que primava pelo instinto e pela espontaneidade dele produzida. Apenas assim seria possível realizar um cinema pessoal, sincero, que fosse capaz de capturar o espírito agitado da época.

O contraponto a essa forma mais “espontânea” de fazer cinema se chocava com o planejamento milimétrico encontrado na linguagem cinematográfica dos filmes noir (subgênero derivado do romance de suspense, influenciado pelo expressionismo alemão) produzidos em Hollywood na década de 1950. Em filmes modelos desse subgênero, como No Silêncio da Noite (1950) e Vertigo (1959), vê-se como bastante clareza as tomadas de plano formularizadas, ritmos cadenciados e uma edição continuísta cujo objetivo é mostrar mais e sugerir menos. Essa abordagem tinha por intenção blindar os elementos do filme de qualquer instabilidade alheia aquela história contada naquele tempo e lugar, constituindo um universo fechado e protegido das descontinuidades do real ― essas próprias, musas adoradas dos franceses.

Quando colocada em prática, a ideia da caméra-stylo era melhor representada pelas inéditas técnicas de edição que a Nouvelle Vague apresentou ao mundo. O chamado jump cut, que remove parte de uma tomada gerando dois planos e uma transição brusca entre eles, hoje é usado à exaustão até mesmo por youtubers. 

Os cortes eram realizados não só ao nível individual dos personagens dentro de uma mesma cena para efeitos estéticos, mas serviam também ao propósito de transicionar localizações e indicar deslocamentos descontinuamente. Assim, procurava-se propor que nem tudo precisa estar posto na tela para a compreensão da audiência, reacendendo a célebre máxima show, don’t tell (mostre, não diga).

Complementar às novas técnicas de edição, o movimento de câmera livre na captação de uma cena colocava-se como elemento chave para os diretores. Na verdade, nem entre eles havia uma convenção sobre o que isso deveria significar; Truffaut girava drasticamente a câmera, Godard optava por ângulos baixos; Agnes Varda ― considerada a precursora do movimento ― fazia o movimento da câmera parte do point of view (ponto de vista) do personagem. O que se extraía como sistemático era a vontade de surpreender, brincar com o convencional e escolher sempre o contrário: se a direção convencional pedia um enquadramento próximo do personagem, a Vague escolhia o enquadramento longo; se a direção convencional recorria à edição, a Vague fazia um movimento de câmera.

 

Agnes Varda em set de filmagem (1960). [Imagem: Edouard Boubat/Gamma-Rapho]
Agnes Varda em set de filmagem (1960). [Imagem: Edouard Boubat/Gamma-Rapho]

As regras afirmadas estavam lá para serem quebradas. A Nouvelle Vague imprimiu uma nova expressão cinematográfica mais dinâmica, próxima ao real, repensando a estrutura da edição, do movimento de câmeras, da sonoplastia e dos roteiros. Essa robusta releitura visava transmistir a ideia de que o filme precisa ser encarado como um filme, isto é, uma representação pela qual se captura a realidade, nunca ela própria.

 

“A fotografia é a verdade. O cinema é a verdade 24 vezes por segundo”

O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat,1963)

 

A análise debruçada nos parágrafos anteriores encontra mais didatismo, claro, no ambiente de Acossado. Afinal, foi através dele que o público teve o contato mais intenso com esta nova linguagem cinematográfica tirada do envelope pelos diretores do movimento. Mas a inventividade pretendida não se conteve apenas ao audiovisual. O roteiro, assinado também por François Truffaut, e a construção dos personagens também chamaram muito a atenção.


Qu’est-ce que c’est dégueulasse?” (O que é ser canalha?) 

O Acossado conta a história do gângster Michel (Jean-Paul Belmondo) que, após assassinar um policial, precisa viver foragido e resolve se esconder em Paris. Na cidade-luz, ele encontra uma jovem nova-iorquina, Patricia (Jean Seberg), que aspira a carreira de jornalista no renomado The New York Times.

Em entrevista à Jornalismo Júnior, Lucas Behrmann Mineo, estudante de audiovisual e integrante do coletivo cinematográfico Los Ensebados, diz que “a partir do encontro de Michel e Patricia, estabelece-se um jogo psicológico entre os personagens, o qual é disputado em um território cinzento: não há papéis definidos. Qualidades como mocinho e vilão não se aplicam.” 

A intemperança de Michel e a imprevisibilidade de Patricia levam a audiência pelas aventuras do anti-casal ― ele atuando à força da emoção e ela, da razão. No meio do caminho, abre-se espaço para vários momentos de depuração do relacionamento faz de conta, que trazem uma exposição crua dos sentimentos desenvolvidos sem reciprocidade. O grito sincero de uma história banal e imperfeita.

Nesse sentido, o estrangeirismo da personagem de Jean Seberg cabe perfeitamente ao propósito de choque do filme. Sem pleno conhecimento da língua, ou da forma como os franceses são, Patrícia se desgarra daquela realidade que lhe é estranha e, então, se habitua a um exercício de questionamento constante, o qual é criticado recorrentemente por Michel. Não vendo reflexo em seu par, Patricia decide fabricar sua própria realidade, seu amor livre, analisando possibilidades e perseguindo novos objetivos que são desvencilhados do caminho de Michel. Era a despretensiosa reinvenção da mulher fatal.

 

Cena de Acossado. Filme representativo da Nouvelle Vague Francesa. Na imagem, as perguntas: "What's that mean "puke"? e " What's a scumbag?". [Imagem: Rialto Pictures/StudioCanal]
Cena de Acossado. [Imagem: Rialto Pictures/StudioCanal]
Quando Michel morre baleado ao limite de seu último fôlego, Patricia é avisada por outro pedestre sobre as últimas palavras do seu ex-afeto: ela era uma canalha. A jovem, atônita, se questiona, então, sobre o que aquilo se significava. Se por ingenuidade ou cinismo, nunca será sabido. É por conta da dúvida não resolvida que está a beleza de Acossado. Por outro lado, a certeza apresentada é irônica e brutal: Michel, aquele que estava certo de si, morrera sem fôlego, estirado na rua. Era o fim do cinema antigo.


“É proibido proibir”:  Com a nova onda, os novos ventos de maio de 1968

Em muitos aspectos, a Nouvelle Vague no cinema francês foi um balão de ensaio para a eclosão do que viria oito anos depois. O desejo por ruptura com os moldes vigentes estava latente entre os mais jovens de todo o Ocidente e, portanto, não se tratava de um sentimento exclusivo àquele pequeno grupo de jovens diretores; mas foi justamente a condição de jovens que lhes conferiu a habilidade de captar o espírito da época tão  precisamente, ainda que este aparentasse invisível aos olhos de tantos. 

É na Nova Onda que se dão os primeiros contornos da figura da mulher emancipada, demanda central daquele tempo. Nos filmes desse período, havia uma preocupação concreta em afirmar que o papel da mulher era aquele que ela desejasse desempenhar. Endossavam tal visão a recorrência de temas do amor livre, da sexualidade feminina e do ataque ao moralismo que existia na proibição da linguagem vulgar para mulheres. Entre outros motivos, foi a ousadia de se criar um novo arquétipo feminino que levou à enérgica reação do conservadorismo francês contra o movimento.

Além do que ocorria na tela, os episódios que deram início à maio de 1968 perpassam a vida dos diretores do novo cinema francês. Godard, Truffaut e outros expoentes do movimento se educaram autonomamente na cinemateca francesa, um espaço criado em 1936 por Henri Langlois. Como retratado no filme The Dreamers (2003), reuniam-se lá os jovens cinéfilos franceses para consumir todos os tipos de cinema disponível na época. 

Em fevereiro de 1968, o governo do Gal. De Gaulle decidiu afastar Henri do comando da organização, impulsionando uma gigantesca onda de protestos no local da qual participaram ativamente os diretores mencionados. A ampla resistência fez com que o governo recuasse em sua decisão, porém o espírito de revolta havia se alastrado para além da cena do cinema. Já era tarde demais.

 

A imagem mostra um confronto em maio de 1968 em Paris [Imagem: AFP Photo/Jacques Marie]
Maio de 1968 em Paris [Imagem: AFP Photo/Jacques Marie]
Cada vez menos representados pelos ditames políticos, econômicos e culturais da classe dominante, aos quais, inclusive, se atribuíam as guerras e misérias humanas do período, estudantes, filósofos e trabalhadores foram às ruas para demandar uma nova forma de sociedade baseada em plenas liberdades. As pichações pelas ruas de Paris (“Está proibido proibir”, “Seja realista, peça o impossível”), os cartazes em Washington D.C, a música em Woodstock e as passeatas no Rio de Janeiro pareciam em uníssono clamar por algo de valor universal: era a vez do novo


O legado

Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Fernando Meirelles integram o quadro de incontáveis diretores em atividade que beberam de alguma forma do que se apresentou há 60 anos na França, quando Acossado estava em bilheteria. Embora seja considerado um movimento cult, a Nouvelle Vague produziu filmes de ampla recepção popular ao longo dos anos que dominou as bilheterias e corroborou para o aparecimento de uma conjuntura revolucionária nos costumes.

Não apenas unanimidade entre grandes cineastas contemporâneos, o cinema da Nouvelle Vague continua a ser inspiração também para os jovens estudantes da sétima arte. Hoje, a Nova Onda integra o currículo da maior parte dos cursos de audiovisual do mundo, incluindo os do Brasil. Mas longe de ser apenas um conteúdo frio, as contribuições do movimento  são vistas como clássicas e possuem poder além da estética.

Segundo Lucas, o legado do movimento não pode ser visto apenas em sua dimensão técnica, ou sentimental, já que os dois precisam ser considerados simultaneamente: “Às vezes, o pensamento, ou o sentimento são exprimidos [no cinema] como um fluxo, não como um livro linear”. 

Nesse sentido, para o jovem cineasta, o desregramento da Nouvelle Vague chega a ter um poder psicológico, pois estamos acostumados a consumir cultura que vem nos moldes padrões, o que nos força a racionalizar os sentimentos a partir dos moldes narrativos presentes nos filmes, TV, etc. e nem sempre isso basta”. Então, para Lucas, “ter alguém que te ofereça uma alternativa, te dá um respiro disso tudo,  te ajuda até no entendimento como pessoa, porque você não precisa regrar, racionalizar aqueles sentimentos”.

Assim, esses 60 anos não podem ser rememorados como uma simples efeméride, sob o risco de se esquecer do que de fato se tratava esse movimento: espírito rebelde e criativo. A experiência vivida pelos diretores franceses no início de suas carreiras mostra que o valor cinematográfico mora no olhar sensível ao redor, na força do querer se comunicar com o mundo e na coragem em subverter o que está dito como verdade.

1 comentário em “60 anos de Jean-Luc Godard e a Nouvelle Vague”

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