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A arte de compor canções

Através da composição de canções, artistas contam histórias, dividem sentimentos, provocam emoções e marcam períodos. O momento da criação sempre esteve envolto em uma névoa mística, apresentado como um acontecimento pouco explicado e visto, muitas vezes, como inalcançável pelo público.  “As canções brotam a partir de um sopro de vida que transforma sua ausência em …

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Através da composição de canções, artistas contam histórias, dividem sentimentos, provocam emoções e marcam períodos. O momento da criação sempre esteve envolto em uma névoa mística, apresentado como um acontecimento pouco explicado e visto, muitas vezes, como inalcançável pelo público.

 “As canções brotam a partir de um sopro de vida que transforma sua ausência em existência, retirando-o do campo de alcance do saber humano, como se já não tivéssemos fenômenos realmente misteriosos suficientes”, escreve Luiz Tatit, músico, pós-doutor em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH) da USP, em seu artigo “A arte de compor canções”.

 

Valor prosódico da canção

No texto, Tatit cita o exemplo da criação da música Wave, de Tom Jobim. Em uma entrevista para o músico e editor Almir Chediak, o músico Chico Buarque conta que Jobim apresentou a melodia de sua música e o deixou responsável pela criação da letra. 

Buarque começou a canção com o verso conhecido “vou te contar…”, mas teve dificuldades em continuar a letra no momento, com a promessa de que terminaria a canção posteriormente. Por fim, Jobim acabou se encarregando de finalizar a letra. 

 

 

Mesmo sem um fio condutor, ambos sabiam que a música deveria começar com a frase “vou te contar”. Essa percepção está ligada ao valor prosódico da canção. 

“Valor prosódico significa algo que indica justamente essa compatibilidade da melodia com a letra, quando as duas coisas estão bem encaixadas, e normalmente estão. A relação naturalmente compatível da melodia com a fala é o que a gente chama de boa prosódia”, explica o professor, em entrevista para a Jornalismo Júnior

A prosódia está presente nas falas, discursos e conversas do dia a dia através da entonação natural que atribuímos a cada frase. A melodia que criamos na fala é mais instável e não possui afinação, entretanto, dentro da canção ocorre a estabilização, as notas se tornam precisas do ponto de vista musical.  

“O valor prosódico de uma canção é exatamente o encaixe da melodia na letra, que a gente acha que está muito bem feita, mas está muito bem feita espontaneamente, o compositor faz naturalmente porque ele fala daquele jeito”, complementa o músico. 

 

Letra X poema

É possível notar um ponto em comum entre o poema e a letra: a poeticidade encontrada nas duas formas de expressão. No entanto, os letristas se diferenciam dos poetas em razão do desafio que os primeiros possuem de alinhar a letra com a melodia.

“O problema do letrista é algo que encaixe com a melodia, não só na sonoridade, mas no clima. Por exemplo, se você tem uma canção mais lenta, com mais vogais, normalmente tem mais compatibilidade com uma letra que fale de amor, separação e emoção”, explica Tatit.

O músico cita em seu artigo um depoimento do cantor Nando Reis para o músico Leoni: “Se você for pegar e ler uma letra, ela não vai se sustentar, como uma poesia. Existe outra carga de significados que a letra adquire quando cantada”. 

Conforme Tatit, “boa parte dessa carga de significados procede da figurativização, do fato de as frases melódicas virarem modos de dizer”. Nesse contexto fica evidente o papel do intérprete na atribuição de sentido da canção. 

 

 

O poema, em contrapartida, possui uma certa independência, pois basta que se justifique em si mesmo através das rimas, aliterações e assonâncias. 

 

O cancionista 

Entre melodistas e letristas, a pesquisa aprofundada de composições de canções ressalta a existência da figura do cancionista. Enquanto a preocupação do letrista é encaixar suas ideias na musicalidade proposta, o que aflige o melodista é criar sonoridades que indiquem e auxiliam na criação das letras. 

O cancionista, em contrapartida, se preocupa com a relação entre melodia e letra, e busca formas de encaixe entre elas. “O cancionista mais parece um malabarista. Tem um controle de atividade que permite equilibrar a melodia no texto, e o texto na melodia, distraidamente, como se para isso não despendesse nenhum esforço. Só habilidade, manha e improviso”, escreve Tatit em seu livro O Cancionista: Composição de Canções no Brasil

 

Processo criativo 

O processo criativo de cada artista é notavelmente individual. Cada compositor utiliza de métodos e caminhos diferentes para produzir suas obras. 

Tatit cita em seu artigo que Chico Buarque afirmou para a escritora argentina Vitória Weinschelbaum que nunca escreveu uma letra antes da música, mesmo que muitas vezes as duas nasçam juntas. 

Luiz segue a mesma linha de Buarque. Ele sempre começa suas composições pela melodia. “A melodia fica até um pouco oscilante, meio entoada, musical, até que vai se estabilizando de tanto eu repetir. Depois que eu vou pensar na letra, quando eu já tenho tudo ou uma parte pronta”, explica. 

A cantora Tulipa Ruiz conta um pouco sobre seu processo de criação: “Como eu não toco um instrumento, apesar de me aventurar por todos, parto do que acontece primeiro. Uma frase que digo sem querer, algo que escuto, o que vale para uma frase musical, uma sensação, um lugar, uma sugestão”. 

A música Dois Cafés da artista, por exemplo, fala sobre o dia a dia e ganhou este nome pois a ideia surgiu em uma tarde em que estava reunida com seu irmão para um café. “À tarde fomos tomar outro café para fazer a letra”, complementa. 

 

 

Para Leonardo Passovi, vocalista da banda baiana Flerte Flamingo, seu processo criativo não é claro e não possui uma ordem específica, de forma que fica a cargo da inspiração para cada canção em específico. 

“Meu processo criativo é uma coisa muito confusa, eu não tenho muito controle sobre ele. Nunca tem uma ordem certa, cada coisa vem de um jeito, às vezes vem uma letra, um assunto que você quer tratar, às vezes vem um motivo melódico”, conta o músico. 

Leonardo acredita que para se conquistar o controle do próprio processo criativo é necessário uma prática assídua, e conta que sua composição preferida lançada até o momento é Criatura do Mal: “Eu senti que tinha controle do processo, até que em certo momento percebi que o processo tinha pernas próprias. Foi no meio da canção que percebi que o eu lírico era feminino”.

 

 

“Eu achei uma música bem charmosa, o que estava sendo dito na letra condizia bastante com a atmosfera que estava sendo transmitido pelos acordes, pela melodia”, complementa. 

O duo Chapéu de Palha compartilhou com a Jornalismo Júnior um pouco de seu processo criativo. A amazonense Giovanna Póvoas conta que o processo para cada canção é individual e o mineiro Helder Cruz complementa: “Não tem uma ordem certa de composição na verdade, às vezes vem a letra primeiro, às vezes a melodia ou a harmonia, e depois eu crio o complemento para aquilo que veio”. 

Giovanna considera a música Toda Eu como sua preferida, enquanto Helder conta seu apreço pela canção Domingo, de sua parceira de duo, e Contra o Meu Querer, uma composição própria.

Domingo me passa uma sensação de tranquilidade, como se eu fosse transportado para uma tarde de domingo com o meu amor. E Contra o Meu Querer foi uma música que me descarregou muito na época que eu escrevi, a sensação é de alívio quando toco”, declara Cruz. 

 

 

Inspiração

Através das letras de suas músicas, os artistas passam emoções, sentimentos, e envolvem o público em uma narrativa. A inspiração, assim como o processo criativo, se apresenta como um fator muito pessoal do letrista, baseado em suas referências e experiências. 

Póvoas, do duo Chapéu de Palha, compartilha a relação entre sua escolha temática e a literatura: “Eu costumava buscar inspirações nos livros que eu lia do Manoel de Barros, Grande Sertão: Veredas do Guimarães Rosa, e assistia um show da Maria Bethânia chamado ‘Caderno de Poesias’”. 

A artista complementa: “Eu adorava a visão deles, as palavras peculiares, a poesia. Eu abria uma poesia e encontrava uma palavra ou uma frase que me tocasse e fazia algo com isso, a paixão que as palavras deles me despertavam era inspiração imediata”.

Cruz conta que, além de buscar inspiração em suas vivências e emoções, procura influências em músicas ritualísticas, principalmente de religiões de matriz africana.

Para Passovi, a inspiração vem através de experiências pessoais ou de amigos. O artista conta que gosta de escrever músicas sobre cotidiano e narrar histórias em suas canções através de uma linguagem próxima e compreensível ao público: “Se algum acontecimento se faz necessário ser tratado em música, normalmente é universalizável”. 

Tulipa Ruiz cita Joni Mitchell, Fátima Guedes, Rita Lee, Ana Frango Elétrico e Tássia Reis, entre outras, como artistas que são referências para suas composições: “Estou sempre ouvindo, ouvindo, ouvindo e me deliciando”.

 

Métodos de composição

Helder Cruz, que além de membro do duo Chapéu de Palha, também é estudante de música, divide alguns de seus métodos para composição: “Eu estudo harmonia de músicas que eu eventualmente goste ou que me prendam e tento entender o que elas têm de especial; estudo também teoria musical, mais especificamente contraponto e harmonia, para poder abrir mais caminhos para minha composição tanto harmônica, quanto melódica”. 

Leonardo considera o processo de criação de canções relativamente parecido com o de cozinhar, a maneira como os “ingredientes e sabores” já conhecidos são misturados garantem a criação de algo novo. O músico considera que o estudo de harmonia permite que o compositor aprenda a manipular as ferramentas melódicas, de forma que através desse domínio é possível se desprender das regras e testar novas combinações. 

Passovi ainda ressalta a importância de escutar outros artistas para aumentar o repertório musical: “Assim, na hora de seguir um ímpeto criativo, a gente sabe quais caminhos podemos seguir para criar os nossos”. 

Tulipa conta que também aprimorou seu método de composição através da escuta: “Sempre fui uma boa ouvinte e ouvinte de mulheres principalmente”. Dessa forma, foi capaz de escrever canções para inúmeras cantoras, como a música Banho, interpretada por Elza Soares. 

 

 

A arte de compor canções é cercada por uma série de métodos, habilidades e particularidades que, em conjunto com a individualidade do artista e da carga emocional, são capazes de sensibilizar e gerar identificação com o público, e assim transcender o espaço mítico idealizado da composição.

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