Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A descoberta da negritude

Ser preto em uma realidade em que o padrão é branco

Descobri-me preta. Não através da história de minha família, dos caminhos dos meus ancestrais ou da beleza do meu povo. Descobri-me preta através do racismo, do ódio, da exclusão e da falta de pertencimento a espaços que deveriam ter sido meus também. Infelizmente, não fui, não sou, nem serei a única. Muitos outros pretos e pretas passam pelo mesmo todos os dias.

E quando se cresce ouvindo coisas como “Ah, mas não existe racismo no Brasil! Se existisse, sofreríamos todos, pois temos todos heranças de vários povos, inclusive dos negros!”, então se passa a acreditar que talvez seja algo individual. “Talvez… se eu alisar meu cabelo, se eu me vestir assim e me comportar de tal jeito. Talvez se eu tentar mais, eles vão me querer por perto.” Se passa a pensar que o racismo também é caso particular, exclusivo de alguns monstros que, em meio a uma sociedade moderna e inclusiva, chocam com atitudes escancaradas e não parte de uma estrutura social que, de forma velada, nos machuca das formas mais perversas. Passa-se a acreditar que, no Brasil, pretos e brancos têm as mesmas oportunidades. Foi o que pensei. É o que muitos pensam.

O descobrir-se veio quase de propósito. Me sentia perdida e sabia que algo precisava mudar. Quando vi cair a última mecha do cabelo dolorosamente alisado de minha cabeça crespa na cadeira da cabeleireira e me olhei no espelho, me senti, pela primeira vez em anos, autêntica. E gostei de ser eu. Gostei de ser preta. E agora que a chave para me tornar a melhor versão de mim estava em minhas próprias mãos, percebi que preta era muito mais do que o apelido carinhoso dado por minha mãe. Ser preta é carregar a herança de um povo que sofreu e que lutou, é ter que honrar uma história de dor, mas também ser parte de uma comunidade com herança cultural riquíssima.

Hoje, esse mesmo descobrir-se se confirma, todos os dias, ao assumir e estimar a estética negra, ao me relacionar com o mundo atentamente, ao entender a importância de ocupar certos espaços.

 

O processo de miscigenação brasileiro e o colorismo

O grande problema é que no Brasil ser preto é, até hoje, tratado de forma pejorativa. Nosso país passou, a partir do século XVI, por um processo de miscigenação bastante complexo, que hoje resulta em uma população com infinitos tons de pele e famílias com diferentes heranças. E, por esse processo histórico complicado é que se criam ideias de diferença racial através da escravização de pessoas africanas, assim como toda uma estrutura social racista, que passa inclusive pela linguagem.

Um exemplo curioso é o fato de que, na língua que falamos, existem palavras diferentes para se definir a etnia afro-brasileira e a cor preta, algo extremamente incomum em outras línguas. Usamos a palavra “negro” para se referir à cor da pele e “preto” para um lápis de cor. Já na língua inglesa, por exemplo, se usa a palavra “black” em ambos os casos. Isso, por um lado, pode revelar um pouco sobre a forma como o afro-brasileiro é visto em nossa cultura.

Ao procurar pelas duas palavras no dicionário Aurélio Online encontra-se, além do consideravelmente comum e verdadeiro, definições como as seguintes:

 

Negro: 

6 – Sombrio.

8 – Triste.

9 – Infeliz, mofino.

10 – Fúnebre, tétrico.

11 – Nefando.

12 – Aflito, apoquentado.

14 – Diz-se de ou escravo de pele escura.

 

Preto:

6 – Perigoso; arriscado.

 

E o preconceito se mostra também na forma como se busca, muitas vezes, não utilizar essas palavras para definir pessoas, como se isso atribuísse a elas um fardo negativo. Ao mesmo tempo, palavras e expressões como denegrir ou lista negra são usadas cotidianamente para representar objetos, ações e situações consideradas ruins.

O Brasil também passou por processos que tinham como objetivo a eugenia, se opondo ao discurso de valorização da miscigenação. E, embora não seja possível apagar nesta terra a presença dos povos africanos e afrodescendentes, esses processos conseguiram, de certa forma, fortalecer muitos preconceitos.

 

Vídeo sobre o preto na sociedade brasileira e as leis do fim constitucional da escravidão aos dias de hoje. [Créditos: YouTube/Canal Preto]

A estudante de Letras da USP, Franciny Saraiva declara que não usa mais a palavra negro, por ser muito associada a significados de valor negativo. Para ela, esse é um problema que não só muitas pessoas brancas têm, como também muitas pessoas pretas. “Muitas pessoas negras, sem querer ser pejorativas ou racistas, acabam evitando as palavras negro ou preto, até porque a gente sabe que às vezes essas palavras são usadas para se referir a nós de formas negativas, como xingamento. Como se ser preto fosse algo ruim.”

Um outro aspecto do processo de miscigenação brasileira e que pode ser também considerado uma das engrenagens da estrutura social racista do país é o colorismo. Colorismo ou pigmentocracia são termos usados para definir o fenômeno que faz com que pretos de pele mais clara sofram menos racismo que os de pele mais escura. Quanto mais escura a pele, mais se sofre com o racismo. Segundo o censo de 2016 do IBGE, cerca de 46,7% da população brasileira se autodeclarou parda e cerca de 8,2% se declararam pretos. “Enquanto ser negro significar os adjetivos mais perversos, eu não sei como as pessoas vão querer se apropriar da raça. Então acredito que muitas pessoas ainda preferem dizer que são morenas, mulatas ou pardas porque ainda é um lugar confortável”, conta a psicóloga Maiara de Souza Benedito.

 

 

Acauam Oliveira, doutor em Letras e professor da Universidade de Pernambuco, acha que deve haver cuidado com a percepção de que algumas pessoas têm dificuldade de se afirmarem pretas por causa do colorismo. Ele justifica: “para não cair na ideia de que a mestiçagem, a miscigenação, é falsa e que as pessoas na verdade têm uma falsa consciência daquilo que elas são. A mestiçagem é uma realidade. O que é falso é que a mestiçagem significa que o país não tem diferenças raciais.”

Robson Jovito, aposentado e que trabalhou em empresas estatais de fornecimento de energia elétrica, conta um episódio em que sofreu racismo no trabalho. Em 1995, ocupando uma posição de destaque em uma empresa estatal, teve que realizar um trabalho externo e foi discriminado por uma pessoa branca: o dono de um frigorífico da região. “Quando me posicionei e disse pra ele o cargo que eu tinha na empresa, ele alegou que o cargo que eu ocupava não era nada porque ele conhecia o negro como… No bar, bebendo pinga, numa roda de samba ou correndo da polícia”, relembra. Após o acontecido, Robson abriu um processo, mas foi acusado por colegas da empresa de se vitimizar ao buscar a justiça.

 

O que é racismo estrutural e institucional?

O racismo pode extrapolar as relações pessoais e se mostrar presente em diversos outros âmbitos, como nas instituições ou na legislação. Discutir o racismo desta forma significa reconhecer que o Estado e as organizações que detém poder econômico e político são responsáveis pela construção de uma sociedade desigual, assim como pela manutenção das estruturas que mantém essa desigualdade através do racismo.

No Brasil, até 1888, houve um regime escravista justificado, na época, por teorias de que os negros eram de uma raça inferior à humana e, portanto, poderiam ser escravizados, violentados e exterminados.

A partir do momento em que o fim da escravidão começa a se consolidar por motivos econômicos, a legislação brasileira passa a certificar a marginalização desses africanos e afro-brasileiros. Exemplos são a lei de 1834 que proibia que pessoas negras estudassem e a Lei de Terras que os impedia de comprar e ter posse de seus próprios lotes.

Embora tenha vindo a Lei Áurea, junto dela não foram pensadas medidas que inserissem o negro de forma saudável na sociedade da época e diminuíssem o abismo social entre negros e brancos. O regime escravista deixou de existir oficialmente, mas a forma de pensar e agir das pessoas perante o negro se manteve. Essas pessoas, que haviam sido escravizadas, são agora despejadas nas ruas à própria sorte, não aceitas em empregos formais por serem mal vistas.

Parte da intenção de eugenia do governo brasileiro dessa época foi a abertura para imigrantes europeus que, ao trabalhar nas lavouras a salários baixos, substituem a mão de obra negra, algumas vezes vindo para o Brasil já com o benefício da posse de terras, quantias em dinheiro e animais. Enquanto isso, a população negra lutava para sobreviver nas ruas sem direito à educação e sem trabalho.

A república de 1890 vem com leis penais que também se certificam de manter os negros em um lugar de inferioridade social. Exemplos disso são a lei de vadiagem, que poderia ser pretexto para que negros encontrados desempregados nas ruas fossem presos, e a lei que proibia a manifestação pública da cultura afro-brasileira nas ruas, que pretendia impedir o agrupamento dos negros como uma forma de alienação.

Assim o racismo se estruturou como parte das bases que fundamentam até hoje nossa sociedade na qual, segundo o Infopen, 61,7% da população encarcerada, que inclusive é a quarta maior de todo o mundo, é composta por pretos e pardos.

Uma das dificuldades de ser negro no Brasil é a necessidade de se reconhecer como negro. Não só como cor da pele, sendo ela mais clara ou mais escura, mas também como identidade. 

“Acho muito doido como a gente tem que se descobrir, como a gente não nasce com essa consciência e como ela é importante até para a gente se proteger de certas coisas.” Franciny cita como exemplos as mulheres negras que pedem que os homens negros que conhecem não andem de capuz na rua e o homem que foi morto na frente de sua família por um suposto engano durante uma ação do exército no Rio. “E isso é necessário porque, infelizmente, tudo à nossa volta parece ter sido feito para nos agredir e para nos matar constantemente”, o sentimento de Franciny, confirma Maiara, atinge a toda a população negra. A psicóloga conta que recebe em seu consultório diversos pacientes negros que se queixam quanto à hipersexualização, a solidão e o medo do genocídio.

 

O que leva ao descobrir-se?

Pelo fato de o racismo estar tão intrincado em nossa sociedade, o negro, desde a infância, sofre. Por mais horrível e cruel que pareça, é comum que crianças negras se sintam excluídas, o que pode causar nelas uma série de problemas. “As crianças negras poucas vezes ficam na frente, ali com a professora. Elas ficam no fundo da sala e aí são aquelas apontadas como as mais bagunceiras, os alunos-problema”, afirma a psicóloga. Isso acontece “porque não as querem ali no gargalo, de ficar perto, de ser ajudante da professora e acho que tudo isso vai contribuindo para que a gente se sinta inseguro.”

Ela continua: “Quando falam que a gente é feio, que nosso cabelo é ruim, que a nossa pele é cor de ‘não-sei-quê-lá’, que a nossa boca é muito grande… A gente vai achando que é quase um problema que a gente exista. Tudo isso deixa a gente cada vez mais ‘na nossa concha’, com dificuldade de se expressar para o mundo.”

Outra questão é a falta de representação correta de pessoas negras nos meios de comunicação de massa. Lembro-me de não me reconhecer em personagens na infância: não havia princesa da Disney ou heroína que se parecesse comigo. Mulheres com quem eu me parecia dificilmente eram retratadas como bonitas, inteligentes e independentes nas novelas e nos filmes. O não se reconhecer só aumentava o sentimento de não pertencer e de negação da negritude.

Para mim, o não pertencer foi determinante.

 

O que é o descobrir-se?

Para Acauam Oliveira, há dois momentos em que o negro se descobre: pela falta, o não pertencer e pelo sofrer com o racismo: “Aí é uma posição profundamente solitária. É uma descoberta da solidão de ser negro, da inferioridade, da feiura, da sujeira… A negritude nesse momento é um fardo, não é um dado positivo, mas um fardo que te coloca sozinho no mundo.” Ou, algo que pode ou não acontecer, pelo pertencimento a uma comunidade negra como um fato positivo e o reconhecimento dessas pessoas como força de resistência. “Ao meu ver, se essa descoberta da negritude enquanto existência não vier acompanhada de uma percepção do seu caráter coletivo, ela perde muita força. A força política desse movimento está em ser negro inserido numa coletividade negra, um país.”

Maiara entende o descobrir-se como um processo contínuo e necessário. Ela pensa que o descobrir-se ampara quando se entende o que é ser negro, porque leva a pensar acontecimentos anteriores que não eram compreendidos: “‘Ah, agora eu entendi o que aconteceu lá no prezinho, quando fulana me falou que eu era a mais feia da sala, ou porque eu ficava sem par na festa junina’, várias coisas que vão fazendo sentido”. Para ela, o descobrir-se também pode ser muito doloroso, na medida em que a percepção de que o racismo é algo estrutural e muito maior que as relações individuais causa a sensação de impotência para combatê-lo. “Quando a gente acredita que é algo individual, a gente sofre, mas parece que a gente tem algum controle, né? Quando a gente percebe que isso é uma estrutura muito maior não sabemos o que fazer. Então ao mesmo tempo que liberta, aprisiona e isso é muito duro.”

 

Brancos, o que têm a ver?

“A gente quando é negro e reconhece as significações disso é um tornar-se, um descobrir-se. Os brancos não passam por isso. Eles sempre foram o que eles foram. Não precisam pensar no que significa ser branco”, explica Maiara. E complementa: “É aí que está o perigo, porque até então o racismo ainda tem sido visto como um problema dos negros”.

Acauam vê a importância na inclusão dos brancos para o debate e a luta antirracista. “Para mim não faz sentido nenhum falar em combate ao racismo sem a inclusão das pessoas brancas. Porque o racismo é uma estrutura, não é uma questão de sujeitos particulares. E para mudar a estrutura você precisa mudar todos os polos dela.”

Para Franciny, as pessoas que não se identificam como negras também têm um papel importante porque, ao se abrir para a desconstrução dos preconceitos, podem ajudar a fazer a diferença. Ela acha que o principal ponto é reconhecer os privilégios. “A culpa não é diretamente dessas pessoas, mas elas têm que se reconhecer como pessoas que foram privilegiadas pela história, saber ouvir e tentar entender” e completa: “Às vezes não precisa ser algo tão denso, mas apoiar pessoas negras no geral, dar suporte. Estar aberto a debates, a ouvir e a se desconstruir, porque se a gente que é negro já está constantemente se desconstruindo… Imagina o quanto eles também podem.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima