Por Carolina Unzelte (carol.unzelte@gmail.com)
“Vista-se mal e notarão o vestido. Vista-se bem e notarão a mulher.” A frase da francesa Coco Chanel reflete o poder que a moda tem na expressão e afirmação do indivíduo e de sua identidade cultural e política, principalmente das mulheres. Muitas vezes julgado como um tema supérfluo, o universo fashion guarda em si tanto o potencial de estabelecer padrões de beleza inalcançáveis (vide qualquer passarela recheada de mulheres magérrimas de biotipo europeu) quanto o de ser uma ferramenta de empoderamento — seja ele pessoal, de gênero ou econômico.
A moda é mais do que aparenta à primeira vista: não é apenas sinônimo de vaidade e preocupação com a imagem, mas também uma manifestação cultural relevante. Por trás de simples roupas, está a construção social do sujeito que as veste: tecidos, botões e acessórios representam o tempo, o espaço, ideologias e marcas culturais de quem os usa. Carla Lemos, autora do Modices e pioneira nos blogs de moda no Brasil, diz que o que nós vestimos “fala pela gente e se reflete na forma como nos sentimos. William James, considerado o pai da psicologia americana, dizia que o vestir era uma das partes mais importantes do eu”.
Por expressar esses aspectos, a moda também é um símbolo de estabilishment. Existem marcas, por exemplo, que procuram apenas certos tipos de clientes: em 2014, o CEO da americana Abercrombie & Fitch, Mike Jeffries, deu declarações polêmicas em que sugeria que sua companhia só desejava clientes magros e com determinada aparência. As próprias roupas com gênero, que dividem itens masculinos e femininos, demarcam o que é aceito socialmente.
Além disso, por ser produto de uma contexto histórico-social, a moda também pode representar revolta e ruptura com esse status quo. “Esse mito da moda fútil foi criado para dominar”, Lemos ressalta. “Trata-se de uma das indústrias mais importantes do planeta. Uma força enorme que durante séculos foi usada para oprimir e que pode ser usada como força de libertação”.
Uma roupa, uma revolução: a moda e as mulheres
Exemplos de libertação não faltam. O mais importante designer francês pré-Primeira Guerra, Paul Poiret, rompeu com as ideias estéticas do século XIX ao abandonar os vestidos volumosos e os corseletes e trocá-los por peças soltas, que dessem às mulheres maior liberdade de movimento. “Os espartilhos eram ferramentas de dominação e controle das mulheres, pois eles espremiam a caixa torácica e prendiam o ar, impedindo que o oxigênio chegasse corretamente ao cérebro. Foi depois da ‘queda do espartilho’ que começaram movimentos como as sufragistas”, lembra Carla Lemos.
Mas foi no entreguerras que nasceu, provavelmente, a revolução máxima envolvendo moda e sociedade, com a dona da maison da Rue Cambon, 33. “Paradigma da mulher moderna, Coco Chanel é uma das maiores responsáveis pela mudança no papel feminino no século XX”, afirmou Janet Wallach, sua biógrafa. Criada em um orfanato, a estilista encontrou no talento para costura um modo de ascender socialmente e difundir suas ideias, ousadas para a época.
Ao incluir no guarda-roupa feminino peças como o tailleur, a calça de alfaiataria e os cabelos curtos, Chanel transformou a moda (e, por que não, o mundo) por questionar as convenções sociais do que era para o homem e para a mulher. Além de construir seu império de estilo sozinha, a estilista também foi engajada em política, financeiramente independente e solteira (à parte alguns amantes colecionados no caminho) durante toda a vida — feitos impensáveis para uma mulher em seu tempo.

O uso da calça por mulheres, de cuja popularização Chanel participou, merece um capítulo à parte. “A calça feminina é icônica porque levou muito tempo até ser aceita no Ocidente em todos os espaços e em todas as ocasiões de uso”, explica Natalia Rosa, professora de história da moda do Senac. Trabalhadoras urbanas do século XVIII já usavam a peça, mas apenas nos anos 1980 ela foi aceita em festas e em ambientes formais, como o profissional. “A história da calça feminina entrelaça várias fases da história das mulheres ocidentais, sendo mais usada em momentos de empoderamento, ligado ao mercado de trabalho e à aderência das mulheres aos esportes”, completa Natalia.
Nas décadas de 1940 e 1950, o feminismo ganhava novo fôlego com pensadoras como Simone de Beauvoir, que vinha questionando a construção social dos gêneros. A moda, profundamente influenciada pela Segunda Guerra Mundial, trazia trajes com inspiração militar e, paralelamente, também cedia espaço ao modelo clássico de beleza feminina de Dior, com saias godês, cinturas marcadas e laços. Opostos caminhando juntos, a tradução dos papéis de gênero na moda se enfraquecia.
A década seguinte, da juventude libertária e do movimento hippie, também é a da nova onda feminista, com a moda presente tanto na queima de sutiãs em protestos quanto no escândalo da minissaia de Mary Quant, inglesa inserida na British Invasion da cultura pop. Na mesma época, o smoking feminino de Yves Saint Laurent inspirava sexualidade e poder a partir de um conjunto originalmente masculino. O movimento punk, dez anos depois, também viria a desafiar o que deveria ser ou não “feminino” e “delicado”, agregando couro, spikes e outros elementos agressivos às roupas das mulheres.
Em sintonia com a liderança recém-conquistada das mulheres no mundo corporativo, os anos 1980 chegaram com o power dressing. “Naquele período, as mulheres ocidentais estavam novamente inseridas do mercado de trabalho, dessa vez em cargos altos e de chefia. As grandes ombreiras marcantes da época serviam para moldar um corpo vestido similar ao corpo vestido dos homens, em uma tentativa de nivelar as desigualdades em situações de competitividade”, explica Natalia Rosa. Peças de aparência mais intimidadora também foram incorporadas no fim do século XX, com as riot grrrrls, filhas do punk, representantes do grunge e declaradamente feministas.
O século XXI surgiu com a internet mudando tudo, inclusive a moda: as it girls — garotas admiradas e copiadas por seu senso de estilo — agora eram as blogueiras e vlogueiras do street fashion. “A democratização do acesso à informação de moda mudou tudo, desde esse ritmo canibal da indústria da moda rápida até o estímulo que os blogs e redes sociais deram pras pessoas encontrarem na moda uma forma de expressão individual”, conta Carla Lemos. O próprio batom vermelho, um dos atuais símbolos do empoderamento feminino no Brasil, nasceu de vídeos como o viral “Não tira o batom vermelho”, da vlogueira JoutJout, e o videoclipe “Survivor”, cover do Destiny’s Child, feito por Clarice Falcão.
Essa moda é minha
Assim como para Chanel no início do século passado, a moda foi, para a carioca Annapaula Bloch, um modo de mostrar inquietação em relação ao que era comumente aceito. Moradora da comunidade do Salgueiro, no Rio de Janeiro, Annapaula criou em 2013 a “Sou dessas”, revista sobre o jovem da periferia, e se tornou uma it girl: “Com a revista, mostrei o que realmente a favela tem a oferecer e não o que os jornais dizem, que é só violência”, conta. A “Sou dessas” começou em formato impresso e estava disponível digitalmente até julho de 2015, falando sobre moda, comportamento, música e entretenimento, tudo feito por e para adolescentes das favelas.
Antes da revista, Annapaula se incomodava com a falta de representatividade na mídia. Estereótipos negativos associados à moda também a afetavam. “Eu tinha vergonha de usar trança, tinha medo de usar top e ser tachada de favelada”, confessa. “Me sentia puta de esmalte vermelho e batom também. Não gostava de andar de chinelo no shopping porque iriam achar que eu era da favela. Eu não me aceitava da forma que eu era”.

Por mais que tentasse se enquadrar, Annapaula não se sentia confortável com a situação. “Eu queria me libertar, usar meu cabelo afro, usar shortinho e não ser julgada de vadia por isso”, relata. A moda e os padrões estéticos, que antes representavam tanta opressão, agora são uma fonte de orgulho e descobrimento pessoal: “Com a Sou dessas, percebi que minhas origens deveriam ser apresentadas para todos, independente de críticas ou não”. Annapaula assumiu sua identidade por meio da coragem que ganhou com a revista. “Usando essas tranças e estilo que fui chamada pra sair na revista ‘O Globo’ e fui pro [Copacabana] Palace numa premiação”, ela conta. “Foi um jeito de dizer: vai ter preta favelada no Palace, sim!”
Carla Lemos também teve uma experiência empoderadora ligada à moda. Depois de muito tempo alisando os cabelos, passou pela transição e soltou seus cachos. “Foi principalmente uma jornada de autoconhecimento”, conta ela. “Entender não só quem, mas como eu sou”. A blogueira ainda destaca a importância da representatividade nesse processo: “Só depois de começar a ter referências de meninas com cabelos de texturas naturais entendi os tipos de cuidados que são inerentes ao meu tipo. Aí descobri que meu cabelo é, sim, maravilhoso.”
Caminhos pela moda
A moda, como a segunda indústria que mais gera empregos no país, também empodera à medida que abre caminhos para a independência econômica, aliando seu potencial criativo à lucratividade como negócio. A ONG Onda Carioca, que atua na comunidade do Terreirão, no Rio de Janeiro, com o projeto Costurando, dá novas perspectivas de vida aos seus participantes por meio da confecção de diversos artigos com lona vinílica, agregando também conceitos de sustentabilidade ao projeto. Ela também mantém a Escola de Moda, Costura e Design de Lonas – que, desde o ano passado, já formou 64 pessoas. “A capacitação técnica é o primeiro passo, que oferece o básico. Mas tudo tem que caminhar junto com o desenvolvimento do empreendedorismo”, aponta Júlio César Gomes Ribeiro da Costa, presidente e fundador da Onda, falando sobre os obstáculos da inserção no mercado.
Mesmo com as dificuldades, o projeto transforma de diversas maneiras: do ponto de vista educativo, segundo Júlio, amplia-se a consciência ambiental com a experiência da transformação de um resíduo em um produto estética, funcional e economicamente interessante. “O empoderamento econômico acontece no momento em que a pessoa se vê capacitada para realizar um negócio cujas premissas estão fundadas nessa nova economia verde”, ele conta.
Júlio ainda ressalta o papel amplo e versátil que a moda tem, atingindo os participantes não apenas pela transformação em suas vidas financeiras. “A moda e o design são ferramentas super-relevantes na descoberta da sua identidade; são uma ponte para a pessoa se autoconhecer e entender o seu papel na sociedade”, afirma. “E, socialmente falando, o projeto é uma experiência que empodera na construção de identidades culturais e de uma sociabilidade que ajuda muito na superação de desafios individuais”.