Ao longo dos anos, os papéis femininos no cinema sofreram diversas alterações. Nos dias de hoje, as personagens representativas estão cada vez mais presentes nos filmes, e não apenas em papéis secundários, como suporte para protagonistas masculinos. Elas também aparecem como personagens centrais, com suas próprias histórias complexas e até mesmo como super-heroínas. Essa mudança não se deu de forma rápida, muito pelo contrário: as mulheres percorreram um longo caminho até conquistarem seu espaço nas telas e deixarem de representar apenas personagens estereotipadas.
No começo do século XX, com a era dos filmes mudos, apesar da grande presença feminina por trás das câmeras nessa época, aos poucos a indústria começou a ser dominada pelos homens e a figura da mulher passou a ser moldada por e para eles, de forma que a imagem feminina servia apenas como objeto de cena para a apreciação masculina.
Nessa época, Florence Lawrence, considerada uma das primeiras atrizes de cinema do mundo, interpretava apenas papéis passivos, desde a camponesa ingênua até a esposa dócil de um personagem central. Assim, é possível perceber que os estereótipos femininos surgiram desde muito cedo, e foram sendo meramente reproduzidos pelos cineastas, sem reflexão acerca da real representação da mulher.
Um dos poucos filmes a quebrar esse padrão estabelecido na época, alguns anos depois, quando o som já começava a compor as produções, foi O Martírio de Joana D’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, 1928). Considerado um dos mais importantes da história do cinema, o filme mostra os momentos finais da heroína francesa, desde sua prisão até sua condenação de morte. Focado nas emoções e expressões das cenas, apresenta uma personagem feminina forte, com uma história heroica e inspiradora.

Esse cenário começou a mudar apenas em 1960, com o enfraquecimento do Código Hays e o avanço da segunda onda feminista, um período de pensamentos e atividades feministas que começou nos Estados Unidos com o objetivo de aumentar a igualdade de gênero para além do sufrágio. Resistir à opressão da sexualidade feminina era um dos objetivos principais desse movimento; assim, muitos dos filmes produzidos nessa época foram feitos por mulheres e tinham como foco essa temática, mostrando a heterossexualidade do ponto de vista feminino. Um destaque dessa época é Wanda (1970), um filme independente, dirigido, produzido e estrelado por Barbara Loden. O longa conta a história de uma mulher recém-divorciada, suas dificuldades na busca por uma vida melhor e suas crises existenciais, abordando essa temática de uma maneira que era praticamente uma raridade nos anos 70.

Um filme que evidencia essa tênue linha entre a libertação e a sexualização é Barbarella (1968), uma ficção científica baseada numa história em quadrinhos que apresenta Barbarella, uma viajante do espaço e representante do Planeta Terra enviada ao espaço para capturar o cientista criminoso Durand Durand. A obra evidencia a libertação feminina ao apresentar uma personagem feminina central que tem consciência dos seus atributos físicos e de sua sexualidade, além de apresentar conceitos chocantes para a época, como uma máquina que mata através do prazer sexual excessivo. Porém, a personagem também é extremamente sexualizada em quase todo o filme: dependendo de personagens masculinos para atingir seus objetivos, que a ajudam em troca de favores sexuais, Barbarella passa a ideia de que mulheres precisam da assistência de homens para alcançar seus objetivos, e que a única maneira de conseguir essa ajuda é através de seu corpo.

Essa dinâmica de estereotipação feminina começa a sofrer mudanças reais apenas no final da década de 80. Com a terceira onda feminista, a qual teve início como uma resposta às supostas falhas da segunda onda, passou-se a acreditar que precisavam haver mudanças nos estereótipos e retratos da mídia em suas tentativas de definir as mulheres. Assim, inicia-se um afluxo de filmes com personagens femininas fortes e características reais, não idealizadas, que se estendem até os dias atuais, com um protagonismo feminino cada vez maior. Um exemplo disso é Thelma & Louise (1991), um filme que conta a história de duas melhores amigas que partem em uma viagem e acabam por se tornar fugitivas da polícia, tentando escapar dos crimes que cometeram. Ao apresentar mulheres com defeitos e problemas concretos e relações amorosas que passam longe da idealização romântica, a obra ataca os padrões convencionais da sociedade e reescreve os papéis tradicionais de gênero.
Outra questão trazida pela terceira onda foi a necessidade de um feminismo diverso, que não focasse apenas nas mulheres brancas de classe média-alta, mas que abraçasse a percepção de que mulheres são de cores, etnias, nacionalidades e origens diversas. Assim, os filmes passaram a trazer também protagonistas de tipos mais diversos. Em A Cor Púrpura (Color Purple, 1985), a personagem principal é uma mulher negra oprimida que sofre com a violência doméstica e tenta superar o racismo e misoginia no sul rural dos Estados Unidos.
Outro fator que contribuiu muito para esta evolução foi o aumento do número de mulheres trabalhando por trás das câmeras. Ao contrário do que muitos pensam, o início da história cinematográfica teve um pioneirismo feminino muito forte na direção, edição e roteirização. Enquanto representavam personagens ingênuas na frente das telas, por trás delas lideravam os sets de filmagem e lidavam com os negócios. Quando a indústria começou a se moldar num modelo formal e se tornar um negócio lucrativo, entretanto, as mulheres começaram a perder o prestígio nos sets e as posições de destaque passaram a ser exercidas por homens.
Histórias como a de Alice Guy-Blaché, a primeira mulher a dirigir um filme em 1896 e uma das inventoras do conceito de cinema narrativo, e de Lois Weber, outra diretora que, em 1916, produzia filmes com enfoque em problemas sociais, como o uso da pílula anticoncepcional e o aborto, ajudaram a desconstruir a ideia de que algumas posições são reservadas para homens, e inspiraram outras mulheres a não deixar que a profissão fosse tomada pelos homens, mas a retomar a influência feminina antes estabelecida. Exemplos como a já citada diretora e estrela de Wanda e, mais recentemente, a cineasta Kathryn Bigelow, a primeira mulher a ganhar um Oscar de Melhor Direção, são a prova deste legado.

É necessário continuar cobrando uma maior representatividade feminina nos filmes atuais, além de avaliar o desempenho destes nesse quesito. Uma forma de fazer isso é utilizar o chamado Teste Bechdel, um teste criado pela cartunista Alison Bechdel para avaliar se um filme faz bom uso de suas personagens femininas. O filme precisa cumprir três regras: ter pelo menos duas personagens mulheres com nome, que devem conversar entre si, e o assunto deve ser sobre algo que não homens. Os critérios parecem triviais, mas a maioria das grandes produções não consegue cumprir esses requisitos.
As mulheres ainda representam 51% dos frequentadores de cinema, segundo pesquisas do Motion Picture Association of America (MPAA), e é apenas selecionando e questionando os filmes a que assistimos que será possível reverter esse cenário de desigualdade, e não deixar que histórias como a de Alice Guy-Blaché sejam apagadas da história. Muito pelo contrário: que continuem a inspirar um número cada vez maior de mulheres a diversificar esse mundo ainda tão padronizado.
por Beatriz Crivelari
beatrizcrivelari@usp.br