Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida, lançado pela Companhia das Letras em 2019, conta a história de um pai e um filho que vão a Lisboa e têm sua vida transformada, tanto pelo choque de uma nova realidade quanto pela ausência da família. A mudança leva a reflexões sobre saudade e liberdade, com a possibilidade de ser quem quiser em um país estrangeiro, mas, ao mesmo tempo, temer pela ideia de emancipação.
A partir de uma história aparentemente simples, a autora explora, de maneira psicológica, sentimentos de membros de uma família, que não são perfeitos, mas também não chegam a ser maniqueístas – por isso, são mais complexos do que parecem. A relação dos indivíduos com a sociedade e os outros seres também é explorada. Tudo é retratado de forma melancólica e envolvente.
O enredo capta a atenção de quem lê, de modo que não se consegue suspender a leitura. Às vezes, no entanto, mesmo com a vontade de continuar, é importante parar e refletir sobre o que foi abordado, aplicando as experiências à própria vida para traçar a ponte entre literatura e realidade.
Cartola de Souza e seu filho, Aquiles, moram em Luanda, cidade angolana. O garoto tem este nome em homenagem à má formação de seu calcanhar, e, apesar de ter todo o suporte da família, sente-se preso ao defeito de nascença: “Não era livre. Era doente. O calcanhar defeituoso era o seu passaporte.” (página 47). Após seu nascimento, o médico garante uma esperança: aos 15 anos, Aquiles poderia realizar uma cirurgia para resolver o problema, mas a operação deveria ser feita em Portugal, onde as condições são melhores.
Depois dessa descoberta, a vida de Aquiles gira em torno de seu futuro, e seu aniversário de 15 anos é esperado por toda a família. Sua mãe, Glória, em razão de problemas após o parto, possui restrição de movimentos e deve ficar na cama diariamente, sempre aos cuidados da família. A irmã, Justina, engravida precocemente e se torna mãe solteira de Neuza.
Glória, com sua doença, vive no passado, presa às lembranças nostálgicas da juventude com o marido. Sua monótona vida gira em torno dele. Sua felicidade é ver o marido feliz, como é possível perceber em: “A sobremesa dela era ver Cartola regalar-se com farófias” (página 39). Esse amor, no entanto, não é correspondido com a mesma intensidade, o que fica mais evidente quando Cartola vai a Lisboa e tenta “esquecer a mulher”. Glória procura ligá-lo e enviar-lhe cartas com frequência, sempre preocupada com o bem-estar do marido. Ele, no entanto, não retribui da mesma forma e apenas no final reconhece que poderia ter sido mais atencioso.
Quando o aniversário de Aquiles chega, ele e o pai vão para Lisboa, sem previsão de volta: deixam para trás a família, a terra e o passado. A viagem é marcada por um misto de expectativa e insegurança: “Quem os receberia? Onde dormiriam? Foi-lhe claro naquele instante que não viajavam para Portugal, mas para sempre.” (página 26)
Pai e filho devem se adaptar à nova realidade. Lisboa, tão diferente de Luanda, fornece-lhes o sentimento de deslocamento e não pertencimento ao local. Marginalizados, conseguem empregos em construções para sobreviverem. O temporário torna-se permanente pois, mesmo após a cirurgia, o garoto e o pai permanecem na capital portuguesa, no bairro periférico de Paraíso – que completa o nome do livro.
O amor paterno é retratado de uma perspectiva psicológica, com base na preocupação do pai com o filho e também nos pensamentos das personagens nos acontecimentos cotidianos. Isso é perceptível na seguinte passagem: “Em menos de nada, o pai já se perdia nas máximas do filho como quem se perde num livro complicado e admirava a sua criatura como um prodígio imerecido.” (página 17). O sentimento de orgulho e companheirismo que Cartola sente pelo filho é um dos aspectos mais intensos e belos do livro.
Cartola faz amizade com Pepe, espanhol taberneiro que adotou um cachorro chamado Tristão. A amizade dos dois começa justamente devido ao cachorro: “Tristão ofereceu-lhe a barriga. E, como quem gostava do cão tinha a chave do coração do homem, Pepe e Cartola tornaram-se amigos.” (página 92). A amizade dos dois é crucial para a adaptação de Cartola no novo ambiente. Por ter com quem contar, o angolano não sente mais a noção de deslocamento e despertencimento, o que simboliza a importância das relações para o bem-estar das pessoas.
Com simplicidade e poesia na linguagem, o livro expressa melancolia a partir de sentimentos nostálgicos da juventude e da distância – física e emocional – da família. Embora não seja o foco, o preconceito racial também é abordado a partir do estranhamento de alguns portugueses ao receber imigrantes negros de uma ex-colônia,.
A evolução de Aquiles em sua passagem da adolescência à fase adulta é retratada na narrativa, com variação, inclusive, de sua concepção sobre o pai, ora visto como novo ora como velho. O envelhecimento também é abordado a partir da perspectiva de Glória e Cartola sobre o sentimento da passagem da vida.
Há representação de algumas tradições machistas, como o “papel” da mulher no lar, melhor demonstrado a partir de Justina, já que Glória é doente e não pode realizar muitas atividades. A filha, diante de visitas, é tratada quase como empregada. Enquanto os homens ficam apenas conversando sem ajudar nos afazeres domésticos, Justina é a responsável pela refeição e pelo bem-estar dos demais.
A autora foi capaz de descrever muito bem a diferença entre Luanda e Lisboa, o que não aconteceu por acaso. Djaimilia nasceu em Angola e morou em Portugal, por isso possui bom conhecimento sobre a realidade retratado no livro.
Com menos de 200 páginas e parágrafos curtos, a leitura é fluida e dinâmica. É importante mencionar que o livro foi escrito por uma mulher negra. Numa sociedade de consumo de cultura elitizado, a produção cultural de pessoas marginalizadas é uma bela forma de resistência e luta contra o preconceito. Mas a qualidade da obra vai muito além disso. Quem se dispuser a ler irá rir, chorar e, sobretudo, refletir sobre os mais variados aspectos da vida.