No dia 25 de maio, George Floyd, um homem afro-americano, comprou um maço de cigarro em um mercado, em Minneapolis, Minnesota. Minutos depois, foi abordado por quatro policiais brancos, sob acusação de ter realizado a compra com uma nota de US$ 20 falsa. Algemado e totalmente rendido, George permaneceu por 8 minutos e 46 segundos sob desproporcional imobilização, sendo os últimos 2 minutos e 53 segundos já desacordado.
Benjamin Crump, advogado da família Floyd, disse em coletiva que “os policiais o mataram com um joelho no pescoço [Derek Chauvin] por quase nove minutos e dois joelhos nas costas [Thomas Lane e J.A. Kueng], comprimindo os pulmões”.
“Não consigo respirar” foi uma frase dita repetidamente pelo “Gigante Gentil” – como Floyd era conhecido – até desacordar e morrer por asfixia. Esse caso de abuso e truculência policial foi o rastilho necessário para levar multidões às ruas contra a desigualdade racial e a violência sistemática que é historicamente sofrida pela comunidade negra.
A gota d’água de uma indignação antiga
Após a tardia abolição da escravatura nos Estados Unidos, em 1863, os cem anos seguintes foram marcados por uma severa segregação de cor de pele até a criação da Lei dos Direitos Civis, em 1964. Na prática, os casos de racismo continuaram (os mais célebres são os assassinatos de Martin Luther King Jr. e Malcolm X – líderes do movimento negro nos anos 1960), e se estendem até hoje. Minneapolis, a cidade em que Floyd foi morto, era e ainda é uma das piores áreas para um negro viver.
A série de protestos vinculados ao assassinato de George Floyd, e a proporção que tomaram, não são fruto de uma indignação isolada, mas sim o estopim de uma série de protestos recentes, motivados por assassinatos de jovens negros vítimas de racismo e brutalidade policial. O movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”), por exemplo, nasce após o assassinato de Trayvon Martin, um adolescente negro, em 2013.
Com início na cidade em que ocorreu o assassinato, as manifestações pelo fim do racismo e truculência policial acontecem desde o dia seguinte ao caso. Até o último sábado (06/06), mais de 700 cidades em território estadunidense mobilizaram-se. Essa já é a maior e mais efervescente movimentação do tipo desde o assassinato de Luther King em 1968.
De lá para cá, a estrutura social estadunidense pouco se transformou. Pelo contrário, ela dificilmente impede de evidenciar seu caráter segregacionista através de violência policial contra pretos, tendo como resposta manifestações populares.
O palestrante e colunista do site Mundo Negro, Levi Kaique Ferreira, aponta que o alcance das redes sociais alavancou os protestos atuais: “acredito que o fato de [o crime cometido pelo policial] ter sido gravado, e todo o contexto tão violento de como aconteceu, fez com que as pessoas se revoltassem com a polícia e com o Estado de um modo geral, […] algo que vem se repetindo há muito tempo”.
Em sua grande maioria, as mobilizações têm sido realizadas de maneira pacífica, bem como o irmão de George, Terence Floyd, pediu em discurso. Porém, duras ações como forma de protesto também acontecem. Levi, no entanto, sinaliza: “Não dá para gente comparar a reação do oprimido com a ação do opressor […]. As pessoas estão insatisfeitas […] a tentativa de diálogo em relação a isso acontece a todo momento”.
Para Levi, o caráter inflamado dos protestos, não deve ser reduzido à mera hostilidade dos manifestantes. Pelo contrário, é resposta àquela violência que primeiro foi cometida, que persiste e que não vira manchete. Ele observa: “Infelizmente, esse tipo de reação é o que chama mais atenção […] então o objetivo acredito que seja falar: ‘Você não pode mais tolerar isso. Toda vez que acontecer, isso aqui é o que vai ser como resposta’”.
Sobre a natureza essencial das manifestações, a psicoterapeuta – com foco em recorte de gênero e raça – Mariana Luz, observa: “A gente não protesta por opção, porque é bonito, porque é agradável levar bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Você corre o risco de ser preso, se machucar ou até morrer.” Ela ressalta ainda que protestar é “uma questão de sentido e de sobrevivência”.
O coronavírus em meio aos protestos
A atual onda de protestos tem como palco um cenário de pandemia e isolamento social jamais vistos. Além de demonstrar a coragem dos manifestantes, reforça a urgência da mobilização. Levi Kaique explica o paradoxo vivido pela população negra: “Um jovem foi assassinado dentro de sua casa durante uma operação policial. […] A escolha é: eu morro dentro de casa […] ou eu saio para a rua, pra lutar pelos meus direitos e corro o risco de pegar o coronavírus. […] Morte por morte, a morte já está rolando nas comunidades”.
Apesar de ser uma doença que atinge a todos, a taxa de infectados e mortos é maior entre a população negra. Levi explica: “a gente faz parte do grupo de pessoas mais pobres […] que mora em comunidades e […] têm menos acesso ao saneamento básico. Esse isolamento é parcial”. Além disso, Mariana observa que a população negra é a maioria que continua trabalhando, portanto, encontram-se menos protegidos: “Quem está na rua, nos trabalhos ditos essenciais […] é a classe operária majoritariamente. Estão mais expostas e não vão ter tratamento porque o sistema está quebrando. Então, todos os marcadores de classe, raça e gênero colocam essas pessoas em lugares de maior vulnerabilidade”.
Historicamente, a comunidade negra estadunidense tem duas vezes mais desempregados que a branca. Isso faz com que, em momentos como o atual, esse índice cresça muito. Inclusive, George Floyd foi prejudicado por isso, ao ser demitido de seu emprego como segurança.
A psicóloga ressalta que, antes do coronavírus, os negros já eram afetados por fatores que a população branca, em sua maioria, só conheceu agora: “[O racismo] é o crime perfeito: tira todas as possibilidades econômicas, políticas, sociais, educacionais, de saúde mental e física [..] ele vai minando, vai matando a pessoa, mesmo deixando ela viva, muitas vezes”.
O mundo pela igualdade racial
Manifestações por equidade racial em diversas partes do mundo evidenciam a emergência global da discussão. Levi ressalta o papel dos protestos de agregar notoriedade à causa: “É muito importante que seja discutido isso nesse momento de visibilidade em que os jornais estão falando sobre isso as celebridades estão falando sobre isso e a população tem interesse nessa discussão”.
No Brasil, eclodiram manifestações sobretudo contra a violência policial nas favelas. O foco foi no Rio de Janeiro, onde, de acordo com o Instituto de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2019, o número de mortes de negros por policiais, ultrapassou os 80% do número total de vítimas. Isso demonstra um quadro de abuso policial contra a população negra ainda mais rígido que o estadunidense.
É muito claro: embora haja contextos e passados estruturalmente diferentes entre as duas nações, o racismo ainda persiste. Somado à violência da desigualdade e condensado em agressão policial ele sufoca pessoas pretas, que, um dia de cada vez, tentam respirar e buscam sobreviver, seja lá ou aqui.
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