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‘Poesia Reunida’ de Sylvia Plath restaura o legado da escritora e traduz poemas inéditos no Brasil

Edição bilíngue revigora nome da autora ao creditá-la por sua escrita ímpar sem atá-la ao fardo de sua biografia

Os 127 poemas mais célebres de Sylvia Plath, vencedora do Pulitzer em 1982 e autora de A redoma de vidro (Biblioteca Azul, 2019), encontram-se no lançamento Poesia Reunida (Companhia das Letras, 2023), que coleta textos produzidos entre 1954 e 1963. A edição condensa o conteúdo dos livros Ariel (Verus, 2018) e The Colossus and Other Poems (Vintage, 1998) — cujos versos nunca haviam sido publicados no Brasil — além de poemas isolados. Com tradução da poeta Marília Garcia, responsável por versões brasileiras de Annie Ernaux e Pablo Neruda, o título contempla o essencial da obra de Plath e o contexto básico de sua vida pessoal. 

A leitura é sangrenta e pode ser desconfortável; assuntos sensíveis são abordados, ora envolvidos por metáforas, ora com linguagem explícita. Os gatilhos estão inseridos entre estrofes mornas e o leitor deve estar alerta sobre menções de suicídio, mutilação, abuso e violência. Ariel é uma coletânea sentimental e desamparada. Em alguns poemas, o leitor acompanha uma Sylvia pós-suicida que expressa uma dor à prova de morte. Em outros, como Sou vertical, ela contempla uma natureza arcaica, e contrasta a vida das plantas com a ausência da vida em si:

“E vou ser útil quando me deitar para sempre:

As árvores vão me tocar enfim, e as flores terão tempo para mim.”

A natureza a acompanha em O Colosso, mas como em um quadro de natureza morta. Ele reúne imagens litorâneas e campestres sob uma lente cinza e fria; de modo contraditório, é a única coleção de poemas publicada pela autora em vida.

A versão brasileira

Diferente da temática visceral derramada nas páginas, a estrutura do texto demonstra o controle afiado sobre a língua e a edição bilíngue permite uma comparação entre os versos originais e a adaptação para o português. A tradução de Garcia prioriza manter o domínio literário de Plath, com foco em reproduzir sua sonoridade, o que, por vezes, compromete o sentido original dos poemas. Em Paizinho, por exemplo, a assonância em U é emulada com maestria:

“You do not do, you do not do   

Any more, black shoe

In which I have lived like a foot   

For thirty years, poor and white,   

Barely daring to breathe or Achoo.”

“Já não te aturo, já não te aturo

Sapato espúrio,

No qual vivi feito pé em apuro

Pálida e pobre, por trinta anos,

Até para respirar era duro”

Porém, em outra estrofe do mesmo poema, a fidelidade semântica é escanteada. A opressão nazi-fascista é evocada no âmbito familiar, mas na troca de “Every woman adores a Fascist” por “Toda mulher gosta de um fascista”, perde-se parcela da ambiguidade. “Adores” sugere também a idolatria política, enquanto “gosta” restringe a uma relação pessoal.

A autora

Centenas de produções biográficas sobre Plath ajudam a mistificar a imagem da autora; é o caso do filme Paixão Além de Palavras (Sylvia, 2003), estrelado por Gwyneth Paltrow, por exemplo. Por ter sofrido com relações abusivas e problemas de saúde mental, a poeta foi tanto estigmatizada pelo machismo, ao não receber um obituário nas notícias mesmo sendo uma autora consagrada; quanto martirizada por movimentos feministas subsequentes. Sua vida conturbada é posta em foco enquanto sua obra — de qualidade literária impressionante — é deixada em segundo plano; como resultado, seus diários estão publicados no Brasil há anos, mas sua obra sequer havia sido disponibilizada na íntegra até este ano. Essa inversão subjuga a potência de sua escrita, como se a grandeza da sua arte fosse atingida graças a suas angústias, e não apesar delas.

Sylvia é considerada expoente da geração confessional, composta de poetas estadunidenses que usaram a primeira pessoa para levar a vida pessoal às páginas após a Segunda Guerra Mundial. A poesia plathiana carrega seu contexto histórico ao repetidamente usar o Holocausto como  metáfora  para se referir a conflitos familiares — o pai é posto na figura do ariano, enquanto o eu lírico seria o judeu.

Otto Plath, seu pai, foi um alemão especialista em abelhas, referenciado diversas vezes ao longo da coletânea por meio de enxames e símbolos nazistas. Em um trecho de 1958, Sylvia usou seu diário para se referir ao pai: “Ele não ia ver um médico, não acreditava em Deus e louvava Hitler na privacidade da sua casa”. Em 2012, arquivos do FBI revelaram que ele havia sido detido por suspeitas de relações com a Alemanha Nazista, o que revela o caráter literal das analogias da filha.

As denúncias contra seu pai sugerem que a comparação da própria dor com o genocídio judeu não é metafórica, mas há acusações de racismo envolvendo Plath desde a publicação A redoma de vidro. No romance, os personagens negros, latinos e asiáticos são estereotipados e sofrem discriminação pela protagonista. O preconceito velado —comum em escritores brancos da época — se soma às críticas pelas analogias com o nazismo, e cria um histórico racista que estreita a liberdade poética de Sylvia para ousar no assunto, afinal sua solidariedade com outras etnias seria seletiva e individualista. 

Plath referencia, em sua coletânea, crenças do catolicismo, judaísmo e até mitologia grega, como no poema “Lesbos”. [imagem: Reprodução/ Facebook/ Libros de La Nona]

Com recortes bruscos, o uso da técnica de enjambement divide as frases em versos, de modo que um pensamento é quebrado em linhas diferentes.  Os períodos são constantemente interrompidos, o que dá o tom atropelado e deixa transparecer o desespero sentido pelo eu lírico. Esse uso se alia com o encadeamento de angústias, e faz com que cenários caseiros (a cozinha é o mais comum) se tornem palco de dramas globais. É o caso do poema Corte, que ela dedica à babá de seus filhos: a partir de uma ferida no dedo, reflete sobre violência em um âmbito histórico, e dez versos são suficientes para que ela saia da própria pia e visite indígenas assassinos, pilotos kamikaze, veteranos de guerra e a gaze que cobre o machucado se torna uma veste da Ku Klux Klan.

A edição inclui um prefácio conciso da tradutora e a cronologia da vida da autora, textos que se destacam em meio às produções temáticas de Plath porque não partem de sua morte. É uma boa leitura para adentrar a obra de Sylvia e conhecê-la como uma grande poeta da literatura estadunidense.

Foto de capa: [Divulgação/Companhia das Letras]

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