Por Fernando Souza
Incorporando o feminismo no campo artístico desde os anos 60, muitos artistas se empenharam na crítica da representação dos corpos, discutiram a ausência de mulheres na História da Arte, questionaram as instituições e o cânones artísticos e desconstruíram o imaginário de uma cultura patriarcal e machista
(Confira aqui a primeira parte do texto)
Publicado em 1990, Problemas de Gênero (do original, Gender Troubles) é um marco no movimento feminista estadunidense e mundial. Ao partir de uma crítica pós-estruturalista do gênero, Judith Butler traçou um panorama de desconstrução dessas categorias e como o feminismo passa a ser entendido diante desse panorama. Nessa obra, o conceito de performance de gênero foi apresentado como um efeito de ações reiteradas. Em outras palavras, uma performance que produz o efeito estático de normatização de gênero enquanto obscurece suas contradições e instabilidades.
Em seu mestrado, a artista, ativista feminista e pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da USP, Lina Alves Arruda pesquisa a crítica feminista da representação, principalmente estadunidense dos anos 80. Essa crítica vai de encontro com o que é proposto em Problemas de Gênero, pois procurou preceitos antiessencialistas de usar imagens de mulheres. Griselda Pollock, Rosalyn Deutsche e Teresa De Lauretis foram autoras que participaram dessa crítica revisionista. “Existem algumas representação que são biologizantes e essencialistas, que reificam o discurso da heteronorma, com uma matriz sexo-gênero”, explica.
Ao analisar imagens do feminismo e como são construídas suas imagens, Lina observa que, na maioria das vezes, o sujeito evocado é unificado na mulher. Judith Butler alega que é impossível representar todas as instâncias e topologias marginais que configuram “mulheridade”, ou seja, impossibilidade de representação como sujeito para leis. Já a teórica Rosi Braidotti afirma que muitas feministas são resistentes em dissolver o sujeito “mulher”, por esse sujeito não ser transcultural nem trans-histórico, seria um erro conceitual, porém, um acerto político, uma vez que o sistema judiciário, assim como outros microssistemas da sociedade, operam com a ideia de sujeitos.
“Usar o sujeito ‘mulher’ é bastante excludente para homens trans* e mulheres trans* (…), como também gera rupturas dentro do próprio feminismo”, critica a pesquisadora, afirmando que categorias como lésbicas e negras são frequentemente excluídas, o que gera dificuldades de identificação com o movimento. Em seu ativismo como artista e feminista, ela se questiona como utilizar imagens de mulheres que não reifiquem um contrato binário, de oposição a categoria “homem”. “De forma naturalizada, dizer ‘mulher’ pode ser bastante essencialista e atropelar discursos desconstrutivos, que são a tomada contemporânea dos discursos de identidade. De que forma podemos falar das experiências de mulheres através de uma imagem sem naturalizar ‘mulher’ ou ‘mulheridade’?”, questiona.
De um ponto de vista pós-identitário, trabalhar com o marco da identidade de sujeitos não é uma estratégia profícua, aponta Lina, que enxerga em meados dos anos 70 um maior investimento desse sujeito unívoco “mulher”, através de questões como a sororidade. Ao invés desta forma de organização política que reivindica através de uma experiência empírica, Judith Butler propõe que seja adotada uma estratégia ativista de coalizão. “Me interesso por um tema, debato, me mobilizo diante de uma causa, não necessariamente em torno da minha essência, até porque o problema da política de identidade é que ela cria apenas um sujeito, a ‘mulher’, a ‘lésbica’, a ‘negra’, que é excludente, que hierarquiza os marcadores sociais”, explica Lina.
Apesar de observar que o feminismo no Brasil tem se proliferado e ficado mais múltiplo e periférico, a pesquisadora ainda tem dificuldades de encontrar no ativismo imagens que sejam pós-identitárias ou que desconstruam os sujeitos. “Minha interpretação é que elas são subjugadas. Com isso, também não pretendem valorizar essas imagens, temos tanto problemas de representação quanto temos necessidade de representação”, pontua. Sujeitos como lésbicas, negras e pessoas trans* não estão representados em várias instâncias, porém Lina acredita que isso é um privilégio, que permite liberdade, principalmente fora do sistema capitalista. “A alternativa que tenho observado tem sido não a de abdicar de um sujeito identitário político, mas de estender esse sujeito”, aponta.
Várias artes feministas
Em plena organização de um novo feminismo, de caráter majoritariamente liberal ao promover a igualdade de direitos, a arte feminista dos anos 60 e 70 nos Estados Unidos propôs usar como método estético a mesma prática de ativismo para mudanças políticas. Como aponta Susana Carro Fernández no livro Mujeres de ojos rojos: del arte feminista al arte femenino, a tomada de uma consciência coletiva incentivou as artistas (e outras mulheres) a se organizarem para discutir temas de suas vivências pessoais e problematizá-los em sua arte.
É nesse contexto que surge a Womanhouse, um espaço artístico idealizado originalmente por Paula Harper e que contou com a colaboração de Judy Chicago e Miriam Schapiro. Em depoimento, Judy Chicago descreve que “era necessário um espaço que abrigaria o trabalho das mulheres artistas que criavam a partir de sua experiência cotidiana. E esse espaço devia ser uma casa: a casa da realidade feminina, na qual se entraria para experimentar os feitos reais da vida, sentimentos e inquietudes das mulheres” (tradução livre). Cedida temporariamente pelo pela cidade de Los Angeles, o projeto artístico da casa foi inteiro realizado e executado em apenas seis semanas, com o trabalho das próprias artistas e estudantes.
Replicando os espaços do lar, como a cozinha, quartos e banheiros, a Womanhouse transformando o lugar privado em local público, de crítica dos sistemas do matriarcado que confinaram as mulher no ambiente doméstico. Menstruation Bathroom (1972), de Judy Chicago, visto através de um fino véu de gaze, representa o espaço imaculado e branco do banheiro, com suas compressas e tampões para ocultamento da menstruação, que encarna a essência naturalizante da femininidade. Já em The Doll House (1972), Fernández enxerga na obra de Miriam Schapiro e Sherry Brody uma representação da construção de gênero e como desde a mais tenra infância a mulher é ensinada para exercer os papéis do lar.
“Lucy Lippard fala que a maior contribuição da arte feminista foi a falta de contribuições para a arte moderna, mas eu refutaria. Acho que Judy Chicago, Miryam Schapiro e Georgia O’Keeffe tentam criar um estilo bem modernista, ou seja, o feminino como estilo dentro da arte moderna”, acredita Lina, que vê nessas tentativas o alcance de visibilidade para o feminismo do contexto estadunidense dos anos 60. Se essa década trouxe uma valorização do feminino, no começo da década de 70, a performance trouxe para a arte feminista o corpo assinalando biopoliticamente a mulher. “Não desvalorizo essas práticas porque elas funcionam principalmente nesse contexto, mas estamos em um outro contexto teórico e conceitual em relação a gênero”, argumenta, comparando com o momento atual feminista. Segundo Lina, a crítica da representação dos anos 80 trouxe na sequência a crítica contra a essencialização da mulher na biologia.
http://www.youtube.com/watch?v=H1smoNE6Stc
Conhecida como o maior nome da performance mundial, Marina Abramovic faz uso do corpo e o teste de seus limites são constantes no seu trabalho desde os anos 70. Incômoda, a performance “Art is Beautiful, Artist must be Beautiful” traz o uso do corpo como estratégia para desestabilizações de naturalizações. A repetição da artista violenta não só sua imagem corporal, mas também a imagem que temos da própria arte. Outra performance muito lembrada é “Rhythm 0” (1974), na qual testa as barreiras entre artista e público deixando 72 objetos (de armas a rosas) em uma mesa, tendo a audiência completa liberdade para usá-los contra ela como quiser.
Em sua pesquisa, Lina se interessou pela representação insatisfatória nas imagens. De acordo com a teórica feminista Terese De Lauretis, a insatisfação com as figuras da cultura é gerada com o desgosto com a representação hegemônica dos meios de comunicação em massa. Nesse raciocínio, a representação também cria o gênero, ideia pertencente ao conceito de “tecnologias de gênero”. “Gênero é o produto ou o efeito da representação de gênero. Uma imagem de mulher cria a categoria de mulher, a alimenta, a produz, a mantém. A partir dessa ideia, precisamos pensar como seria uma tecnologia feminista de mulher, ou seja, como as mulheres vão manejar o seu próprio imaginário”, explica.
Por meio da crítica da representação, é possível produzir novas imagens ou incindir no que é veiculado pela televisão, pelos jornais e revistas que evocam. O exemplo dado por Lina é a tentativa de estender a categoria “mulher” ou ressignificá-la ao produzir imagens de mulheres reais. Em seu ativismo, ela trabalha com a ideia de mulher como imagem, propondo um olhar crítico a representação já existente.
Cindy Sherman pode ser vista como um exemplo de artista que usa de estratégias de paródia e performance de gênero. Em suas fotografias posadas, trabalho citacional e contingência do sujeito são seus contornos. Já Barbara Kruger utiliza da estratégia de intervenção em imagens característica da pop art, fragmentando-as as possibilidades de mulher. Trabalhos como “Your Body is A Battleground” (1989) e “We won’t play nature to your culture” (1983) são até hoje ícones feministas de uma crítica desconstrutiva de gênero.
“Sempre que trabalhamos com ironia, temos dois lados: por um lado, reificamos o objeto que queremos criticar, pelo outro lado, desconstruímos e subvertemos as suas retóricas originais”, diz a pesquisadora sobre a apropriação de imagens. Marta Rosler e Laurie Simmons são exemplos de artistas que se reapropriaram de imagens de donas de casa, mas na opinião de Lina, geram um binarismo exacerbado e autoexcludente entre masculino e feminino ao usar figuras clássicas dos anos 50 ao lado de colagens da Guerra do Vietnã.
Se nos anos 60 e 70 foi lugar de experimentações, a partir dos anos 80, com uma crítica pós-estruturalista consolidada, o corpo passou a ser lugar de desconstrução para artistas, feministas ou não. Nesses trabalhos, são criados “anticorpos”, já deslocados de normatividade e sua coerência, que seria a coesão dos termos sexo, gênero, desejo e prática sexual para os sujeitos. “Qualquer um desses termos deslocados já são suficientes para causar um estranhamento desestabilizador da matriz sexo-gênero”, argumenta Lina.
Por meio de autorretratos e fotografias, Del Lagrace Volcano é um artista trans* que traz corpos não-hegemônicos, com suas próprias experiências subjetivas. Outro exemplo dado por Lina é o trabalho de documentação de modificação corporal de Heather Cassils, por meio de experimentação hormonal e mastectomia. Nos anos 90, Cathy Opie fotografa sujeitos que normalmente não são retratados e que vão além de uma beleza heteronormativa.