O segundo dia do Encontro Paulista da Lei Paulo Gustavo foi realizado em 23 de maio, marcado com a intenção de expor os resultados da consulta pública realizada em março e receber demandas da população, nesse caso, participantes do cenário audiovisual.
O primeiro dia do evento contou com a presença de gestores e operadores municipais da Lei Paulo Gustavo no Estado de São Paulo e ofereceu uma oficina técnica patrocinada pelo Ministério da Cultura (MinC). Já o terceiro dia teve a participação dos demais setores civis para a discussão dos editais da lei.
A lei Paulo Gustavo
A Lei Paulo Gustavo, apresentada em novembro de 2021, propõe a liberação de R$ 3,8 bilhões para amenizar os efeitos da pandemia no cenário cultural brasileiro, sendo R$ 2,8 bilhões para o setor audiovisual e o restante para demais atividades da área cultural.
A proposta recebe o nome do ator Paulo Gustavo, um dos maiores nomes do audiovisual brasileiro e célebre por sua caracterização como Dona Hermínia nos filmes “Minha mãe é uma peça”, que faleceu em decorrência da Covid-19 em maio de 2021.
A tramitação da lei começou no ano de seu falecimento e seguiu até 2023, com a cerimônia de assinatura da lei pelo atual presidente Luís Inácio Lula da Silva em Salvador (BA) no dia 11 de maio. No começo de 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro vetou a lei afirmando que o projeto criava uma despesa sujeita ao teto de gastos dos órgãos públicos e não apresentava uma medida compensatória.
Ao vetar o projeto, o presidente afirmou que ele comprometeria os repasses de despesas discricionárias — isto é, aquelas que não são obrigatórias — porque essas “se encontram em níveis criticamente baixos e abrigam dotações orçamentárias necessárias à manutenção da administração pública”.
Apresentação da consulta pública
No momento inicial do encontro, foi realizada a fala dos participantes da mesa. Marilia Marton, secretária de cultura e economia criativa do estado de SP, apontou a necessidade de “usufruir desse recurso [o dinheiro destinado ao setor do audiovisual] com responsabilidade”. Danilo Nunes, superintendente do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan), afirmou que era necessário “ter juízo” ao fazer as propostas no final do encontro e destacou o papel do artista como agente cultural.
Bel Galvão, representante da Rede de Pontos de Cultura do estado de São Paulo, destacou o fato da lei beneficiar os fazedores de cultura e o recente acordo com a Netflix, que produzirá a minissérie sobre a chacina da Candelária. Ela também disse que uma das tarefas da lei é chegar ao interior profundo e à periferia, regiões que sofrem carência do fomento de produção cultural.
O representante do comitê da Lei Paulo Gustavo no Estado de SP, Alessandro Azevedo, fechou a introdução abordando as dificuldades na aprovação do projeto, a grande mobilização na área da cultura em torno dele e afirmando que a maior dificuldade era fazer com que os recursos chegassem onde eram necessários.
Jennifer Queiroz, assessora técnica do evento, chegou após a última fala de Nunes e em sua declaração destacou a importância de “editais robustos e estruturantes”. Também, foram apontadas a busca pela adequação de salas de cinema em espaços que “tenham vocação” para tal — como antigos teatros —, a possibilidade dos recursos atingirem projetos diversos — citando curtas metragens e games — e a necessidade de formação e qualificação de técnicos em audiovisual.
Outro ponto de destaque foi a presença de uma parte da verba reservada para videogames. “Games é uma questão que chegou [à discussão]. É importante que a gente comece a entendê-los como parte da cadeia produtiva do audiovisual”, afirmou Jennifer Queiroz, “A gente só tem a ganhar [com esse setor], é um potencial e ele movimenta vários setores culturais como o desenho, a música”.
Ao final do primeiro bloco, a secretária de cultura, que em entrevistas anteriores defendeu a área da cultura sem ideologia, fechou o primeiro momento com uma fala do cineasta brasileiro, Glauber Rocha: “Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. O cineasta teve diversas obras censuradas durante a ditadura militar e por meio da Comissão da Verdade foram encontrados indícios de que o mesmo estava sofrendo ameaças de morte por ser considerado representante da esquerda no cinema.
O audiovisual opina
O primeiro bloco, que apresentou os editais da Lei Paulo Gustavo, não agradou a todos.
Emerson Mostacco, produtor cultural na Mostacco Produções, expressou suas dúvidas com relação ao evento, afirmando que havia a necessidade de explicar os valores apresentados nos incisos e explicitando o fato da impossibilidade de resolver todos os assuntos pendentes em reuniões que acontecem apenas uma vez no ano. “Se não houver mudança terá uma sensação irreal de conformismo, ‘ah fizemos’, ‘vamos levar tanto’, o cineasta tem sobrevida de, por exemplo, 5 anos, demora muito para fazer a produção”, disse o produtor..
Para Edgar Henrique Siqueira, que trabalha no setor do audiovisual como script doctor, suas preocupações estavam ligadas com a questão orçamentária — para a finalização de seus projetos em andamento — e o reconhecimento, difícil de ser obtido nessa área.
A gestora de cultura da cidade de Ibitinga, do interior de SP, Julia Mergulhão Estronioli destacou que as regiões do interior quase não têm nenhum apoio à cultura. Chamou a Lei Paulo Gustavo de uma “oportunidade” e espera que, com ela, o interior passe a “produzir e a consumir mais o cinema”. A gestora comentou também a fala de Bel Galvão a respeito do fomento de cultura das regiões interioranas e periféricas: “a questão de formação [dos profissionais do audiovisual, previstos pelo Inciso III] que eles comentaram ali é algo que no interior é muito fraco”.
Sobre isso, a secretária Marília Marton disse que a formação de novos profissionais não é o foco da lei: “A lei é estruturante, porque não vai se repetir. É neste momento em que a gente pode fomentar salas de cinema, adaptações de espaço para cinema ou melhorias em cinemas já existentes, ou formação de público”. Para ela, a Lei Aldir Blanc 2, sancionada em 2022, é que possui a finalidade de auxiliar os produtores iniciantes, juntamente com o Programa de Ação Cultural (ProAC), que possui editais “com linhas exclusivamente para a periferia”.
“Nesse momento em especial, a Lei Paulo Gustavo precisa injetar dinheiro no mercado para que a gente possa impulsioná-lo. Precisamos entender que o mercado da cultura tem os pequenos, os médios e os grandes, e ninguém pode ficar para trás”, finalizou a secretária.
Discussões no encontro
Após uma pausa e a apresentação do grupo Trio Café, o evento prosseguiu. A mesa, que antes contava com cinco pessoas, retornou com apenas uma, Jennifer Queiroz. Esse fato gerou constrangimento na organização do evento devido ao descontentamento por parte do setor civil do audiovisual.
A primeira fala das perguntas foi de Janaína de Oliveira Reis, representante da Associação de Cinematografia Independente de Guarulhos (ACING), que também compõe o Fórum de Cinema do Interior Paulista (ICine): “Lamento que na mesa só esteja a Jennifer para ouvir, porque nós ouvimos algumas coisas um pouco assustadoras”. Janaína destacou que a presença de “editais milionários” são exceção, e não regra para o fomento do setor. Na sua visão, mais importante do que um projeto receber muito dinheiro é o financiamento de projetos plurais:
“O cinema é diverso. Não vai ser com poucas pessoas recebendo grandes valores que a gente vai conseguir isso [estruturar o audiovisual paulista]. É justo que agora o estado de São Paulo olhe para essas produções, que estão nas periferias e nos interiores. Porque se não fizermos isso, não tem democratização nem política estruturante nenhuma”.
Raquel Valadares, diretora sudeste da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API), criticou a presença de streamings nos editais. “O serviço de streaming não é regulamentado no país, e isso [a Lei Paulo Gustavo] é um recurso público. Por mais que nós esperemos fomentar cultura para mais ‘janelas’, a gente tem que tomar cuidado para não editar recursos demais nas plataformas gringas”, disse em sua fala, que foi ovacionada pelo público. “Podemos pensar em plataformas nacionais, ou com 70% do catálogo com produções nacionais”, sugeriu.
Nicole Puzzi, atriz que ficou famosa na década de 80 por estrelar filmes do gênero pornochanchada, realizou uma fala pedindo mais atenção para pessoas idosas do setor na inclusão da lei e criticou o etarismo na categoria: “Por que em nenhum edital há apoio a pessoas, aos artistas e aos trabalhadores idosos? Por que os idosos, artistas e técnicos, também não podem entrar nessa pauta? Por que não se eles viveram uma vida inteira construindo a história do cinema, de tudo?”.
“Eu tenho 65 anos, estou fazendo curso de dramaturgia, estou estudando, fiz curso de roteiro… Quer dizer, estou na flor da idade, como muitas pessoas aqui que também tem mais de 60 anos e estão ativos e na flor da idade. Gostaria de pedir que essas pessoas fossem lembradas”, finalizou, sendo recebida por uma salva de palmas no final.
A produtora cultural Inti Queiroz expôs um dos principais problemas do encontro: “Eu ia te perguntar [Jennifer Queiroz] ‘Como é que vocês estão planejando a implantação do sistema estadual de cultura?’, mas você não vai saber responder. E a secretária tinha que estar aí, porque diálogo é a secretária, quem realmente decide, e o setor [audiovisual] dialogando. Isso não é diálogo”.
Em um primeiro momento, Jennifer prosseguiu para a próxima questão sem responder a produtora, mas retornou depois reafirmando seu conhecimento acerca dos problemas enfrentados pelo setor e afirmando que todos os pontos seriam passados para a secretária e discutidos.
Outro ponto que se tornou polêmica no encontro foi as falas da secretária a respeito de sua visita ao Festival de Cinema de Cannes, uma das maiores conferências do setor audiovisual do mundo. Ao longo do primeiro bloco, Marília Marton se referiu diversas vezes ao festival, que é muitas vezes considerado algo elitizado, o que desagradou o público presente:
“[Não é possível dizer que] o audiovisual paulista é ‘assim’ porque eu estava lá em Cannes”, pontuou Janaína Reis, parafraseando a secretária, “é um recorte muito específico. Não é o todo”.
“Enquanto a secretária está em Cannes, nós temos vários amigos e amigas trabalhadores da cultura que não vieram aqui hoje porque não tem dinheiro pra ‘busão’ (sic)”, reclamou Inti Queiroz.
“Eu não sei quanto custa um filme que ganha em Cannes”, disse Eneida Soller, presidente do Conselho Brasileiro de Entidades Culturais (CBEC), que chamou atenção a produções que não vão a festivais internacionais, como as do ICine e do Cine Favela.
O segundo dia do Encontro Paulista da Lei Paulo Gustavo terminou expondo os problemas enfrentados pelo setor cultural audiovisual, especialmente sobre o negligenciamento de produções periféricas e do interior profundo. Mesmo em um ambiente feito para discutir as propostas e escutar aqueles que estão em contato direto com o setor, a falta de diálogo foi duramente criticada pelos participantes, assim como a repetição de termos genéricos como “projeto robusto e estruturante”, sem uma definição exata. A íntegra da reunião pode ser encontrada no canal do Youtube da Secretaria de Cultura e Economia Criativa de SP.