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Crônica | O menino que queria ser Bruce Lee ou Uma Lembrança das Locadoras

Sexta-feira não era só o último dia útil da semana para o menino, mas sim o dia de um ritual especial
Por Vito Santos (vvitofs@usp.br)

Chegou a sexta-feira. Para qualquer adulto, isso significa um momento que precede o respiro pleno. É o final de semana que se aproxima… sábado e domingo existem. Ah! Que bom que existem! Mas, para o menino, não era este o significado do último dia útil da semana. Sexta de manhã era um prelúdio daquilo que aconteceria à tarde: era dia de locar um filme novo com o pai.

A locadora, que funcionava na esquina da rua próxima a um bar, reunia um acervo enorme de fitas VHS. Uma verdadeira curadoria de bom cinema de ação e aventura. Penso que, caso o menino venha a ler esta crônica, ele se lembrará até mesmo do cheiro do local e de como cada fita e cada prateleira era devidamente organizada. A sexta, portanto, era um dia de espera religiosa.

O relógio corria lento e a criança impaciente perguntava à mãe: “que horas são?”, na tentativa de, talvez, acelerar a passagem do tempo. No que a senhora de meia idade retrucava: “hora de menino impaciente dormir”, ele cruzava seus braços insatisfeito com a resposta.

Quando o sol finalmente ameaçava se por, os olhares do pequeno não saíam das pesadas janelas de madeira, pintadas de vermelho carmesim, de sua casa nos fundos de um quintal. Esperava o pai. Voltava-se à mãe: “ele ainda vai demorar muito”, e ela respondia: “vai chegar no horário que tem que chegar”. Ele sentava e esperava mais um pouco.

Até que as luzes do carro invadiam as frestas do portão. Chegou! O pai enfim vinha ao seu encontro e o indagava: “já pensou no filme que vai pegar hoje?”. O menino, que usara todo o tempo do dia para visitar nos recônditos de sua memória o catálogo que havia visto na semana passada, replicava com um sonoro: “sim!”. Sua irmã também juntava-se à empreitada. Lá ia o trio, por volta das cinco e meia da tarde, visitar a locadora, assiduamente toda sexta-feira.

Visão streetview da antiga locadora do bairro [Imagem: Reprodução/Google]

Era o dia propício. Locando na segunda, devolvia-se na terça e assim em diante. Mas não na sexta. Quem pegava no último dia útil devolvia só na segunda, então poderia aproveitar o sábado e o domingo inteiros com os longas selecionados. Prato cheio para aqueles três.

Se o menino já estava decidido em qual fita locar, na porta do estabelecimento ele já mudava de ideia. Ia revisitando capas, imagens, nomes e títulos. Avisava ao pai que queria aquele ali! Não, espere, queria na realidade esse aqui do canto. Minto! Era o da prateleira de cima que ele realmente queria. Em meio a confusão do pequeno, irmã e pai, já cansados de pegar e devolver fitas e mais fitas, ordenam diligência. O menino resolve o impasse pegando o mesmo filme da semana passada. Simples assim.

A repetição lhe aprazia e, mesmo em sua infância, já tinha certeza de seu bom gosto. O pai minuciosamente observava capa por capa das fitas disponíveis e, entre seu rol de seleção, sempre figuravam clássicos do kung-fu chinês. Bruce Lee, Jackie Chan e Jet Li eram figuras carimbadas. Os filmes de faroeste, sim, aqueles mesmo de Clint Eastwood, também eram adorados pelo velho. Curiosamente, o menino ansiava mais pela escolha do pai do que da sua própria. A irmã, por sua vez, variava entre animações clássicas, comédias românticas e dramas de impacto. A menina adorava Tarzan, se eu não estou enganado.

O momento da compra chegava. O pai, chefiando a dupla de pequenos, ia até o balcão e pagava o valor de dez reais pelas três obras. Ah! E, claro, se não me falha a memória, pegando três filmes ganhava-se um desconto no preço total da locação. Que besteira a minha não citar isso antes, já que a placa da locadora mesmo avisava da promoção. Perdoe este pobre narrador, às vezes um detalhe ou outro escapa, mas com o auxílio de algumas digressões terminaremos essa história, tenha paciência.

Como ia já dizendo, o momento da compra chegava e os irmãos, ansiosos com o momento de assistir os longas selecionados, se encontravam no lado de fora da locadora. Quando o pai vinha com a sacola, o passo era apressado. Chegando em casa, o videocassete já estava a postos. Mas não adiantava brigar, o primeiro a assistir seria o homem fanático por filmes de bang-bang e kung-fu.

Após terminar o trabalho, como um Hércules em repouso após desafiar o leão de Neméia, o pai sentava e assistia aos saltos acrobáticos dos shi-fus, os golpes formidáveis de Jean Claude Van Damme e a pontaria certeira de Sylvester Stallone. E o menino – lembram-se dele, certo? – não tirava os olhos dos grandes heróis. Arfava durante o confronto entre Bruce Lee e Chuck Norris em O Voo do Dragão (猛龍過江, 1972), seguia com os olhos os golpes de Jet Li em Era uma vez na China (黃飛鴻, 1991) e se surpreendia com a traição do melhor amigo de Jackie Chan no Jovem Mestre do Kung-fu (帥弟出馬, 1980).

O pai mal sabia, mas criava ali uma paixão imorredoura no menino. Esse que era impressionável por natureza e saía pelas ruas imitando os golpes e se autoproclamando mestre dos meninos menores. Era ele O Grande Dragão, como Van Damme, que jurava ter sido treinado pelos mais habilidosos mestres em seu passado como grande guerreiro chinês. E, de fato, tinha sido bem treinado vendo do sofá da casa os filmes com seu pai.

O primeiro contato com a magia do cinema veio como um golpe certeiro no coração do pequeno. História linda para se contar para qualquer um que viveu naquelas épocas em que se tirava tempo da semana para assistir um bom filme.

Entretanto, não vá dando adeus. A história ainda não se deu por acabada. Lembrem-se que a menina e o menino ainda tinham seus próprios filmes para assistir. Pelo que me recordo, os irmãos não conseguiam se entender bem quanto ao tempo de divisão do videocassete. O menor queria por demais assistir em loop a fita escolhida. E, por Deus – eu digo isto em sentido literal – o pequeno viciou-se no replay. Mal comia, pouco dormia e não despregava os olhos da tela da televisão por dois dias quase inteiros. Via e revia suas cenas preferidas e assistia horas a fio. Sua irmã reclamava aos pais: “ele não me deixa assistir meu filme e já está vendo o dele pela quarta vez só hoje!”. O menino fazia birra, esperneava, mas, por fim, aceitava ceder o monopólio do aparelho para a irmã, que ansiava por ver o desenrolar de um tal filme cujo navio naufraga, ou coisa assim.

Ora, o menino ainda precisava rever aquela cena específica de Pokémon O Filme 2000 (Pokémon: The Movie 2000: The Power of One, 2000)! Não entendia o porquê do mundo não girar em torno da sua grande vontade, o pobre pequeno com o rei na barriga. Entretanto, era um bom menino. Fofo, por assim dizer. Apaixonava-se, sem ter idade para saber o que é a paixão, pelo cinema, pela arte de gravar o mundo e de gravar o imaginário.

Pelas fitas daquela locadora, o menino conheceu o mundo. E, pelas minhas palavras, eu espero que, um dia, o mundo conheça o menino também. Que os sonhos dele sejam como o legado de Bruce Lee e não se desvaneçam no tempo. Que a coragem dos grandes mestres do kung-fu sempre despertem nele a vontade de vencer as injustiças do mundo.

Escrevo na esperança de que um dia esse menino me leia e que, talvez, o dono daquela locadora também. Creio que o pequenino não estava preparado para findar o ciclo de idas à locadora. Anos depois, com a falência do estabelecimento, tornou-se um órfão do cinema.

Será que, nas tardes de sexta-feira, ele ainda olha para a janela? Será que, por um deja-vu instantâneo, ele não acorda nos fins de semana procurando seu aparelho de videocassete?

Creio que essas memórias são muito preciosas para serem deixadas para trás. Penso que, tendo as escrito, eu resguardo o mundo de não esquecer que um dia tivemos fábricas de pequenos sonhos nos nossos bairros.

Quanto ao menino, espero que não tenha cessado de treinar com os mestres mais hábeis de toda a China e que esteja espalhando para os outros o legado de seu mestre kung-fu: seu franco atirador, seu pai.

*Imagem de capa: Reprodução/Imdb

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