Este filme faz parte da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Ao longo de treze anos (1961-1974), a guerra colonial portuguesa devastou a Angola, até então dominada por Portugal. O exército português impunha sua força bélica contra o povo angolano, e o sofrimento imperava diante da barbárie daquelas terras castigadas pelo homem europeu.
A narrativa de Cartas da Guerra (Cartas da Guerra, 2016) se passa nesse momento histórico e é baseada em fatos. Três anos antes do final da guerra, em 1971, o médico António Lobo Antunes teve sua vida interrompida para servir ao exército em uma das piores zonas da guerra colonial – o leste de Angola. Contra a sua vontade, o protagonista juntou-se às tropas portuguesas numa aventura militar de três anos, e deixou em sua terra natal sua mulher grávida de uma menina.
No decorrer do tempo em que esteve na Angola, António expôs uma subjetividade complexa construída em meio à ferocidade do colonialismo português. Ele estava tomado pela saudade romântica que sentia pela esposa e, fora isso, não tratou com indiferença a miséria do povo angolano subvertido ao domínio dos homens brancos. Para afagar a erupção de sentimentos que carregava dentro de si, construiu um olhar compassivo frente aos rastros de exploração deixados por Portugal e escreveu o livro D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto – um conjunto de cartas que deu corpo à obra de Ivo Ferreira.
Com um perfil humanitário, o jovem português atendeu às necessidades dos nativos enfermos, angustiou-se pelo fato de não ter visto o nascimento da filha e deixou crescer dentro de si vontades sexuais e afetivas sobre sua mulher. Esses fatores deflagram no filme um tom dramático e incessantemente poético do começo ao fim da narrativa.
Um dos grandes diferenciais de Cartas da Guerra é a forma poética pela qual se conduz a exposição das cartas do médico à mulher. Com uma fotografia em preto e branco, o filme apresenta António como um homem que usa e abusa de uma essência literária melancólica. Compõe suas cartas com adjetivos sexuais e amorosos para designar a esposa. O desejo é exaltado. A vontade de tocar o corpo dela chega a ser obsessivo, e o descontrole emocional desabafado no papel é a válvula de escape que ele encontra para afagar suas emoções inquietantes e o tesão resguardado.
Nesse contexto, o roteiro valoriza essas impressões ao colocar Maria José – esposa de António – para narrar as cartas do marido. Dona de uma voz melódica, ela consegue conectar as impressões textuais do drama de António ao valor estético da narrativa falada; une a beleza da alocução ao sentimento do texto e, assim, cria uma identidade única ao retrato da saudade que o filme visa apresentar.
No entanto, a obra foca na narração das cartas do começo ao fim e não há grandes acontecimentos imprevisíveis ao longo da trama. O enredo flui lentamente e a produção é enfadonha para quem tem a pretensão de assistir um filme cheio de acasos e aventuras.
Cartas da Guerra é um filme que trabalha a subjetividade aflita e frenética do ser humano e o drama psicológico da saudade que corre dentro de indivíduos que estão em situações extremas. Não é um trabalho cinematográfico voltado para o exterior, mas para o interior da pessoa humana. Na obra portuguesa de Ivo Ferreira, primeiro estranha-se a monotonia; depois, o monótono toma forma sublime: entra em nós, comunica-se com a nossa passionalidade e revela, dentro de cada um, o valor poético e reflexivo dos dramas sentimentais que resguardamos.
Veja o trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=s6ncwZB6OEs
por Caio Nascimento
caiovn.usp@gmail.com