Esse filme faz parte da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto.
“Em Nasaretha, dizem: se colocar o ouvido no chão, ainda consegue-se ouvir os gritos e sussurros dos que morreram na enchente”.
Mantoa (Mary Twala Mhlongo) é uma mulher idosa habitante da vila de Nasaretha, em Lesoto. Viúva, sem netos, seu único familiar é um filho que trabalha nas minas sul-africanas e retorna a casa em Dezembro, na época do Natal. Nesse período, enquanto anseia pelo seu retorno, Mantoa descobre que seu filho faleceu. Desolada e sem qualquer perspectiva de vida, a senhora começa a planejar seu próprio fim.
Um ritual funerário à seu filho é organizado, com elementos sincréticos entre a religiosidade local e o catolicismo. Mantoa, em visita ao cemitério, descobre que as autoridades regionais planejam construir uma barragem e inundar a região de sua vila e realocar seus habitantes. Os mortos também poderão ser desenterrados e realocados, conforme a vontade de seus familiares. Indignada, a senhora cria um ato de resistência ao autoproclamado “progresso” em favor de manter seu direito sobre a terra intacto.
Lemohang Jeremiah Mosese, diretor e roteirista da obra, é lesotiano e atualmente reside em Berlim. Para ele, o filme é uma obra sobre resiliência e coragem. Tanto a protagonista Mantoa quanto Mary Twala, a atriz octogenária que a interpreta e infelizmente faleceu em julho deste ano, são exemplos de encorajamento para contextos globais tão complexos e desafiadores da atualidade.
País montanhês, todo o território é localizado acima dos mil metros de altitude e, durante o inverno, há ocorrência de neve em várias regiões. O Estado também é completamente cercado pela África do Sul, país de muita relevância econômica para Lesoto, uma vez que uma grande parcela de sua população vive da extração de minérios em minas sul-africanas.
A terra é um bem sagrado. É geracional, é identitário, é parte constituinte de um povo. E essa é a defesa de Mantoa. Sem familiares vivos, tudo que sobrou a ela é a terra em que seus pais, seu marido, seus filhos e seus netos se encontram.
Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição (This Is Not a Burial, It’s a Resurrection, 2019) é uma marcante viagem pela cultura de Lesoto e os impactos da colonização e das progressivas transformações modernas. Uma perda de suas próprias características se achega lentamente à comunidade de forma estável. Com cenas capazes de arrepiar o espectador, em especial quando toda a comunidade se expressa em uníssono, é único testemunhar a lenda, a luta de Mantoa por manter a tradição e o espaço do que sobrou em sua vida.
Um dos momentos mais emblemáticos e simbólicos do longa é um monólogo proferido pelo padre da comunidade. Nele, ele conta a história da criação da igreja presente na vila, e como o povo deu aos ferreiros o ferro de suas lanças para que se forjasse um sino para a construção. A paradoxal Gênesis construtiva e destrutiva de um novo modelo de sociedade para a época, que se repete no presente. “Cada badalada do sino abria caminho para o novo: um novo Deus, um modo de vida novo. A cada badalada do sino, algo antigo era logo esquecido”.
Confira o trailer, com legendas em inglês:
*Capa: [Imagem: Divulgação/Memento Films]