Este filme faz parte do 22º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
“Bossa Nova é igual a Os Cariocas”, elogia umas das entrevistadas. Sendo um dos maiores expoentes da música brasileira e tendo já circulado inúmeros países ao redor do mundo, é as vezes impensável que um estilo tão importante como a Bossa Nova tenha hoje seus ídolos desconhecidos da grande massa. É verdade que alguns deles, como Elis Regina, Tom Jobim e João Gilberto, ainda ecoam em nosso imaginário cultural, mas muitos outros foram se perdendo com o decorrer do tempo; Os Cariocas são um deles. Com a morte de Severino Filho, último dos integrantes fundadores, no ano passado, Eu, Meu Pai e Os Cariocas (2017) revela-se como um importante documento para preservação da memória da banda. Dirigido ainda pela atriz e filha de Severino, Lúcia Veríssimo, o documentário reúne uma série de depoimentos e confissões que talvez nenhum outro realizador fosse capaz de conseguir – várias das fontes conhecem também a diretora, o que torna a interação entrevistador-entrevistado muito mais profunda. Essa familiaridade que, no entanto, poderia gerar relatos de lembranças íntimas e análises profundas, transforma-se aqui num rol de intermináveis elogios (e a quantidade de vezes que se repete a palavra “cariocas” prolongando o ‘o’ é sintomático).
Não é problema que se faça, mas se restringir apenas a isso torna a obra mais fraca. Tarefa essa difícil se nos atermos apenas às personalidades entrevistadas – citando alguns, temos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Djavan, Ney Matogrosso, Martinho da Vila, Erasmo Carlos, Zélia Duncan, Gal Costa, Maria Bethânia, Fafá de Belem, e artistas que não acabam mais. Mesmo assim, vários desses ocupam-se por repetir comentários elogiosos, que nada acrescentam ao conhecimento do público. Constatamos assim seu primeiro problema: se a pretensão era a de eternizar o nome de Os Cariocas, àqueles que não os conhece, e mesmo aos que já, poucas são as informações concretas (quanto mais aprofundadas) que explicam a singularidade do grupo. Algumas hipóteses são o falsete e a harmonia jazzística, mas mesmo essas não superam o “Severino tinha o melhor falsete da história”. Além disso, incomoda a montagem pleonástica, que a cada nova ideia inclui três ou quatro depoimentos dizendo o mesmo de formas diferentes – imagino que seja difícil escolher entre Gil, Gal ou Ney, mas pela semelhança das respostas, percebemos quão fechadas ou pobres devam ter sido as perguntas feitas.
Por outro lado, a linha temporal felizmente se preocupa em narrar os principais acontecimentos do grupo, que vão do surgimento na Rádio Nacional (que inclusive revelou artistas hoje consagrados como Cauby Peixoto e a própria Elis), passando pela morte prematura de Ismael Netto (violonista, cantor e compositor) e o sucesso internacional que os levou duas vezes ao The Tonight Show With Johnny Carson, em Nova York, chegando até o desmembramento durante a ditadura militar e posterior retomada com a volta da democracia. Nesse meio tempo, Severino (violonista, cantor, pianista e caompositor) e Badeco (violonista e cantor) contam também algumas histórias marcantes, como as festas privadas de João Gilberto e Tom Jobim que basicamente popularizaram a banda no cenário musical ou os convites que tiveram para cantar no cinema e até mesmo acompanhados da orquestra de Villa-Lobos. Ainda, por mais que o filme seja todo embalado pelas canções do conjunto, é um pouco frustrante que se faça tão poucas menções diretas ou discussões em torno delas (algumas com certo espaço são “Canção da Volta” e “Não Vou P’ra Brasília”).
Caminhando entre acertos e tropeços, a diretora ainda toma tempo para fazer um resumo superficial da política adotada pelos últimos presidentes, que pouco se relaciona com o que vinha sido desenvolvido. Assim também como um considerável histórico do Tropicalismo, que quase nada dialoga com a carreira de Severino, muito menos com a de Os Cariocas. O que parece é que Lúcia tenta situar a relevância do grupo não apenas por ele próprio, mas por contextos maiores que os englobava, e que não por isso dão obrigatoriamente valor ao primeiro. Não à toa, temos a impressão de assistirmos a um conteúdo relevante que, no entanto, parece sempre estar com algumas pontas soltas a mais.
Ao final, o filme ainda cai num discurso elitista e frouxo “de que não se faz mais música boa”, típico daqueles que ou não aceitam a mudança dos tempos, ou que por serem preguiçosos, não se dão ao tempo de pesquisar e descobrir que muita música ainda hoje é produzida nos moldes da Bossa Nova clássica. Tentando se recobrir sobre o discurso de paixão e redescoberta, o documentário é ainda ao auto-indulgente, pedindo para que todos os seus entrevistados batam palmas para uma grande colagem final. Eu, Meu Pai e Os Cariocas é uma bem-intencionada homenagem de filha e admiradora ao pai e banda que com certeza precisam ser sacramentados na história da cultura brasileira; só não do jeito que aqui foi.
Trailer:
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com