Este filme faz parte da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
A conversa preguiçosa com um amigo. A luz que se espalha na cortina do quarto. O pássaro nos galhos da árvore. Cenas que parecem até incomuns de tanto que não reparamos nelas são escancaradas no primeiro longa-metragem da mineira Emilia Ferreira, Entrelinhas (The Unattainable Story, EUA, 2016), bem como os problemas, questionamentos e dilemas que estão presentes nas vidas humanas todos os dias e mesmo assim são ignorados – até surgirem com tal força que não podemos negar-lhes nossa atenção.
Ao trazer esses desapercebidos do cotidiano, o filme cativa. Com as frases que poderiam ter sido ditas por nós ou para nós no meio de um dia comum a produção provoca rebuliços internos, como quando Jacqueline (interpretada por Irina Björklund) questiona se Skene (Edoardo Ballerini) “nunca pensa sobre si mesmo”, ou quando afirma que “observa o oceano como se fosse a face de seu amante”. O fato-problema é que, na realidade, não dizemos essas frases: elas ficam suspensas sobre nossas cabeças, invisíveis mas pesadas. Como o personagem Peter, feito por Kevin Kilner, diz para a esposa: “você não quer falar sobre as grandes questões”. E Entrelinhas justamente se faz necessário para nos falar o que nos falta coragem para declarar em alto e bom som, o que deixamos passar.
Não à toa, o verbo miss, no sentido de “perder”, “não dar atenção” e “sentir saudade” é usado diversas vezes ao longo do filme: Skene, diretor de teatro que entende uma produção apenas no dia de sua estreia, diz: “I did miss something”. Jacqueline, escritora da peça, mais tarde, sente falta de olhar para Peter, seu ex-marido. David, personagem de Harry Hamlin, com quem ela teve um relacionamento, afirma que o que mais deseja de volta do mundo lá fora, enquanto está na prisão, não é sexo, como Jacqueline sugere, mas ternura. Todos parecem lamentar uma ausência, procurando em desespero mudo o que lhes falta enquanto tentam seguir com uma vida relativamente estável – mas não plena.
Entrelinhas é pungente por nos pôr à prova; por expor tão franca e dolorosamente na tela os nossos temores, inseguranças, tristezas e anseios, além de nos colocar, assim como Skene, Peter, David e a própria Jacqueline, como personagens num emaranhado vivo e humano que não sabemos como desenrolar. Nunca temos certeza do papel temos na história do outro – por isso nossa participação, por vezes, sai desajeitada. E nem sempre compreendemos como encaixar os outros personagens na nossa narrativa.
Outro destaque fica por conta da construção de planos que, além de visualmente bonitos, com uma paleta de cores equilibrada que demonstra bem a atmosfera do filme, são muito bem pensados. Exemplo disso são as cenas em que vemos Jacqueline e Peter discutindo por trás das grades. Também é interessante a inversão do clichê romântico de uma cena na praia, que desta vez é palco de um impasse entre Jacqueline e o marido.
As inquietudes da personagem principal em relação à carreira, dinheiro, amor, felicidade e realização pessoal são quase que universais e nos aproximam de tal maneira que nos vemos refletidos em Jacqueline. A dissecação da alma humana e, mais especificamente, da feminina, é tal que saímos com a sensação de nudez uma vez que os créditos rolam. Ao mesmo tempo, nos sentimos menos sozinhos nesse caminhar da vida – mas não mais capazes de fazê-lo.
Confira entrevista com a diretora do filme, Emilia Ferreira
por Carolina Unzelte
carol.unzelte@gmail.com