O conceito de alma é tão abstrato que comumente as manifestações culturais tentam buscar apoio concreto para explorá-lo, de forma a trazer uma metalinguagem na qual a alma emociona a alma. Por meio do cinema, o diretor russo Aleksei Fedorchenko imprimiu a sua visão de alma para o telespectador. Com Almas Silenciosas (Ovsyanki, 2010), há a reafirmação de uma frieza russa que apenas um conterrâneo poderia expressar, e assim Fedorchenko empurra, por via de uma bela e artística fotografia, inquietação o bastante para cutucar ferozmente a nossa consciência.
O enredo da narrativa é baseado em Aist, que trabalha habitualmente como fotógrafo quando é chamado pelo melhor amigo para uma tarefa secreta e íntima: ajudá-lo com a preparação do corpo de sua recém-falecida esposa. Prontamente atendido pelo camarada, Miron – o qual está silenciosamente abalado com a morte em alma de sua amada, Tanja –, é o foco da atenção de Aist, não somente pela tristeza do amigo, mas também pelo peso que a morte tem na vida de uma pessoa. Nesse meio, a nebulosa viagem dos dois é embalada pelo ritual e tradição, tornando um procedimento penoso em tarefa a ser executada. Puro racionalismo ilógico.
Entretanto, a leve ameaça de ser um filme tedioso e desprovido de emoção mostra-se muito além das longas cenas filmadas sob perspectiva do banco de passageiro de um carro, descrevendo o balançar da cabeça dos sentados à frente; e dos muitos olhares vazios para o horizonte. A sensibilidade sutil nas tomadas é capaz de ser absorvida se houver uma atenção redobrada a cada novo segundo e o abuso das transcendências metafóricas que a obra propõe.
A cada tradição é possível reconhecer o caráter, de certa forma, ímpar e machista dos homens russos, os quais ao mesmo tempo que amam incondicionalmente as mulheres escolhidas para casar, submetem-nas a uma dedicação exclusiva ao seu homem. “Almas Silenciosas” esperneia a sua origem, e faz questão de ressaltar a sobriedade covalente ao país que conseguiu segurar Napoleão e Hitler pelo gelo da grande Sibéria. Mas o tão apreciável do filme é, principalmente, a forma como o frio e o silêncio dessas almas europeias são quebrados pelo pesar convergido em ternura.
A arte de “esfumaçar” o ente querido, ou seja, contar o incontável a qualquer um enquanto essa pessoa estivesse viva; a coragem de lavar o seu corpo desfalecido e enfeitá-lo, como se fosse para o próprio casamento; a compaixão de escolher o lugar perfeito para efetivar a sua cremação, entregando suas cinzas à água. E, além de todos esses passos construtivos da narrativa, nada mais poético na obra de Fedorchenko do que a analogia do silêncio das almas quebrado pelo fogo, ou melhor, da permanente neve congelando as emoções dos personagens sendo derretida pelo calor da carne humana queimando. E assim há a ruptura daquele racionalismo ilógico.
O filme é uma viagem nas entranhas da alma. E, para complementar a atmosfera abstrata, no meio desse passeio surge a imagem de dois pássaros: os trigueirões. Coadjuvantes da história e presos em uma gaiola, as silenciosas aves acompanham Aist na sua missão com Miron. E, mais uma vez é possível encontrar uma nova metáfora genial: dois pássaros silenciosos e dois seres humanos calados. Ambos presos em gaiolas e corpos.
Apático e contagiante, o filme é um paradoxo. Ideal para amantes de meditação sobre roteiros mais profundos, e péssimo para quem quer ver ação e explosão de cores na tela. Como um autêntico filme do leste europeu, Almas Silenciosas eleva concepções banais da complexidade humana e transparece um paradoxo: muitas vezes o que parece um silêncio, na realidade é um grito abafado.
“Se a alma doesse, deveria escrever coisas que via em sua volta.”
Por Júlia Pellizon
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