Inserir personagens gays em desenhos animados, teoricamente infantis, é um enorme desafio. No último mês, por exemplo, a mera ideia de que talvez houvesse um casal lésbico em Procurando Dory encheu a internet de comentários negativos e tentativas (falhas) de boicote ao filme. O suposto casal, sequer confirmado pela Pixar, não apareceu por nem um meio minuto segundo internautas estadunidenses… Imagine, então, como seria se um dos personagens principais de nossas tão queridas animações fosse gay.
A questão é que, na verdade, já existem personagens coloridos, e não só no sentido literal, em animações. De forma sutil, sem beijos ou títulos, desenhos como Steven Universe, Avatar: a Lenda de Korra e Gravity Falls nos mostram que há como, sim, inserir diversidade em meio a tanto preconceito e continuar fazendo sucesso.
Se você não viu (e pretende ver, obviamente) algum dos desenhos citados e é parte da Turma Anti-Spoiler Mesmo Que Seja Inofensivo Ou Conhecido, sugiro que pule a parte em que falo do tal desenho. Se já viu, ótimo. Se não pretende ver… espero que a matéria mude sua opinião.
Steven Universe
Em Steven Universe, por exemplo, temos casais explícitos como Rubi e Safira. O desenho, que conta a história de uma espécie alienígena – as chamadas “gems” – e sua vida aqui na terra, tem uma maioria absoluta de personagens femininos, já que todas as gems apresentam características similares às nossas mulheres humanas.
Há ciúmes entre as gems, há amor não correspondido (ou pelo menos correspondido apenas como amizade), e há Rubi e Safira, que flertam descaradamente, discutem como o bom casal que são, choram e se beijam em lugares suspeitamente próximos à boca ao se reconciliarem. Não é segredo para ninguém ao assistir o desenho que Rubi e Safira se amam — sim, amor é a palavra usada para descrever os sentimentos, diversas vezes — como é possível ver na letra dessa música, cantada pela fusão das duas:
Go ahead and try to hit me if you’re able.
Can’t you see that my relationship is stable?
I can see you hate the way we intermingle.
But I think you’re just mad ‘cause you’re single.
You’re not gonna stop what we’ve made together.
We are gonna stay like this forever.
If you break us apart we’ll just come back newer.
And we’ll always be twice the gem that you are.
I am made o-o-o-o-of
Lo-o-o-o-ove
Tradução:
Vá em frente e tente me atingir, se for capaz.
Não vê que meu relacionamento é estável?
Posso ver que odeia como nós nos entrelaçamos
Mas eu acho que você só está com raiva porque é solteira/sozinha
Você não vai parar o que nós fizemos juntas
Nós ficaremos assim para sempre
Se você nos separar, simplesmente voltaremos mais novas
E nós sempre seremos duas vezes a gem que você é
Eu sou feita de
Amo-o-o-r
Lindo, né? O show, que conta com pouco mais de 80 episódios, de 10 minutos cada, é cheio de músicas divertidas, cores, e episódios capazes de fazer qualquer adulto chorar. Além de ser uma ótima fonte de representação feminina, também explica e explora, alegoricamente, coisas como consentimento (como desenvolvido nesse artigo), discriminação, relações abusivas e homofobia.
Avatar: a lenda de Korra
Já em Avatar: A Lenda de Korra, que se passa muitos anos após A Lenda de Aang, velha animação conhecida nossa, temos Korra e Asami.
As duas personagens foram confirmadas como bissexuais pelos próprios criadores do desenho após uma season finale em que, embora não tenha acontecido um beijo, as duas decidiram viajar juntas e sozinhas… E essa arte oficial adorável foi revelada pouco tempo depois:
É claro que isso não impediu que chamassem o casal de “forçado” ou “apressado” ou desmentirem a própria palavra dos autores dizendo que as duas eram apenas boas amigas. Só deixarei esse gif aqui abaixo. Ninguém cora assim quando uma amiga elogia o seu cabelo.
A relação das duas é sutil e se desenvolve no começo da quarta e última temporada, quando é revelado que Asami é a única pessoa em que Korra confia para compartilhar seus próprios sentimentos e pensamentos por meio de cartas. O desenho tem 52 episódios de 45 minutos e aborda maravilhosamente temas como estresse pós-traumático, ditaduras, líderes totalitaristas e anarquismo.
Gravity Falls
Talvez por ser da Disney, esse relacionamento é o mais sutil da lista. Em Gravity Falls o relacionamento entre dois policiais parece servir apenas para comicidade no começo. Como personagens secundários, aparecem sempre juntos e, conforme os episódios avançam, podemos ver o quão próximos são. Foram nos últimos episódios, entretanto, que as suspeitas de vários fãs da série se confirmaram — embora não oficialmente, como aconteceu com Korra e Asami.
Além da cena acima, em que Blubs se mostra extremamente aliviado por seu parceiro estar vivo, há também o memorável quote abaixo. O criador de Gravity Falls, Alex Hirsch, declarou uma vez que adoraria colocar um personagem LGBT no desenho, mas duvidava que o deixariam. Parece que essa foi, então, sua maneira de cumprir seu desejo.
O desenho conta com 40 episódios de 20 minutos, uma animação muito bem trabalhada, personagens extremamente bem desenvolvidos e plot twists espetaculares. Entre outros desenhos com personagens LGBT temos Hora da Aventura (com Marceline e a Princesa Jujuba, confirmadas como casal pelos criadores) e o filme Paranorman (em que temos Mitch, o primeiro personagem abertamente gay em um filme animado mainstream).
É claro que estamos longe de representar casais gays e lésbicos igualmente aos casais héteros. Em Korra temos várias dicas, mas o casal só foi confirmado no término, quando não havia mais chance de boicote ou cancelamento. Mesmo em Steven Universe, onde a representação é presente e o casal evidente, não há beijo. Há carinho, abraços, beijos na bochecha, e até mesmo flerte, mas não há beijos. Alguns podem argumentar que é porque se trata de um desenho infantil, mas em Korra, por exemplo, há beijos de casais heterossexuais. A ausência de uma demonstração de amor no desenho serve apenas para dar margem para que esses personagens sejam chamados apenas de amigos próximos, e não para proteger crianças de algo que elas veem o tempo todo.
Essa tentativa de inserir casais e personagens, ouaté mesmo revelá-los depois é, entretanto, bem vinda — ou pelo menos melhor do que nada. Não precisamos sempre fazer alarde sobre a sexualidade de um personagem. Colocá-los assim, de uma forma suave, ajuda as crianças a entenderem que aquilo é sim, normal. Após ver alguns episódios de Steven Universe e algumas explicações que o desenho fornece sobre o relacionamento e amor das personagens, não parecerá absurdo considerá-las um casal — ou fusão, como dito no desenho. Se algum dia elas entrarem na internet e encontrarem a arte oficial maravilhosa e oficial de Korrasami e se perguntarem “wow, elas parecem namoradas”, vão descobrir em poucos segundos que elas eram mesmo. E que não há nada de estranho nisso.
Além disso, é bom para a comunidade LGBT se ver um pouco fora de estereótipos de vez em quando. Essas pessoas não vivem apenas com medo de sair do armário. Essas pessoas não são apenas o amigo da personagem principal que fala com ela sobre moda, ou a garota super confusa porque namorava um cara mas agora se vê apaixonada por outra garota. São seres humanos com vidas normais, cuja sexualidade é parte importante da vida, mas não define esta. E esses desenhos, com suas brincadeiras e mensagens sobre esperança e amor, são uma forma maravilhosa e única de mostrar isso para o resto das pessoas.
Por Keyla Carvalho
ccarvalhokeyla@gmail.com