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Mais do que animações coloridas: animações em arco-íris

Estereótipos de gênero, sexualidade e desenhos animados: o que tudo isso tem a ver?

As produções culturais de uma sociedade costumam refletir muitos dos seus valores, conforme ela muda, o entretenimento que os indivíduos consomem muda também. Com os desenhos animados não é diferente. Eles refletem comportamentos sociais, formas de pensar e épocas distintas. Isso não é nenhuma novidade, basta comparar Coragem, o Cão Covarde (Courage the Cowardly Dog, 1999) com Gravity Falls (2012) para concluir que muita coisa no mundo dos desenhos animados mudou. 

Uma dessas coisas, e talvez a mais marcante, é a forma com que  as questões sociais estão sendo abordadas, em maior ou menor grau. Existe, por parte de alguns criadores, uma preocupação crescente com o modo como as animações influenciam o comportamento e percepção de mundo de quem as assiste. 

Cada vez mais temos exemplos de desenhos cujos personagens masculinos demonstram sensibilidade, enquanto meninas são capazes de salvarem o mundo. Apesar do longo caminho a ser percorrido, é difícil dizer que as coisas não estão mudando. Mesmo assim, há uma minoria política que permanece sendo muito pouco, e muito mal, representada: a comunidade LGBTQIA+.  

 

Por que não existem LGBTQIA+ nos desenhos? 

Personagens LGBT em Steven Universo
Safira e Rubi, personagens do desenho Steven Universe [Imagem: Reprodução/ Cartoon Network]
A comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, e mais) enfrenta incontáveis desafios na sua luta por condições dignas de existência. Desses desafios, boa parte está relacionada à forma como a sociedade civil enxerga e trata os indivíduos que integram essa sigla. Em países como o Brasil – líder em assassinatos de pessoas transexuais segundo a ONG Transgender Europe, que desde 2009 vem monitorando dados relevantes sobre as violências sofridas pela comunidade trans em todo o mundo – os preconceitos são ainda mais sólidos. 

Por isso, ainda é raro ver no Brasil produções audiovisuais que retratem os indivíduos que fogem à cisheteronormatividade de maneira positiva e não vexatória. Comumente associados à criminalidade e promiscuidade, esses grupos são alvo frequente dos discursos de ódio dos grupos mais conservadores da sociedade. Esse preconceito também é notável no posicionamento de figuras públicas (e políticas) relevantes, que costumam articular suas falas para criar receio e pânico quando o assunto está de alguma forma ligado à homossexualidade. 

Em geral, esses discursos são criados de modo a dar a ideia de que essa comunidade é inimiga da “família tradicional” e que, portanto, são um grande perigo para as crianças. No Brasil, criar animações voltadas para o público jovem e infantil, cujos personagens não correspondem às expectativas de gênero, é o suficiente para ter seu trabalho “classificado” por alguns grupos como imoral e perigoso para a juventude. Longe de estar ancorado em fatos concretos, esse discurso só corrobora para a intensa marginalização dessas pessoas. 

 

Uma questão de representatividade

Shun – Cavaleiro de Andrômeda [Imagem: Reprodução/ Toei Animation]
O termo representatividade tem ganhado cada vez mais espaço nas discussões sociais no  Brasil e no mundo. Na grande maioria dos casos, é empregado para descrever a necessidade de diversificar personagens e narrativas presentes em todas as atividades culturais produzidas no Ocidente. Utilizada por muitos segmentos que reivindicam o direito de serem retratados de maneira fiel nas produções culturais, ele nos chama a atenção para a padronização das personas dentro das produções audiovisuais, por exemplo, nas quais pessoas não brancas, PCDs (Pessoas Com Deficiência), mal aparecem nos filmes e séries,  a não ser à luz de estereótipos degradantes. 

Ver um personagem parecido com você possui certo impacto. Marú Peixoto, um grande fã de animes desde a infância, conta: “o primeiro personagem que eu lembro que fugia à heteronormatividade foi o Shun de Andrômeda, dos Cavaleiros do Zodíaco, ele é um dos meus personagens favoritos de toda a obra”. Apesar dos produtores terem demorado a se pronunciar a respeito da orientação sexual do personagem, ele claramente não segue os padrões ocidentais esperados para um herói masculino. “Ele começou a ser visto por muitos [telespectadores] como um personagem gay por ele não ter uma masculinidade frágil”, lembra Marú. 

De armadura verde e rosa, Shun poderia facilmente ser confundido com um membro da escola de samba Mangueira se circulasse pelas ruas do Rio de Janeiro. Como na verdade é um personagem de anime, suas vestimentas foram encaradas com estranheza pelo público. Não é apenas o modo como o personagem é desenhado que o faz se diferenciar da maioria dos heróis: “ele era um personagem que se preocupava com os amigos, com o irmão. Chorava e não tinha problema para admitir que estava com medo ou de demonstrar sentimentos pelos outros, acho que isso foi visto com maus olhos”, reflete Marú. 

É importante observar que todas as características citadas – como sentir medo ou se preocupar com amigos e membros da família – são, de um modo geral, comuns a todos os seres humanos. Mas são constantemente reprimidas durante a infância dos meninos, pois não correspondem à ideia que a nossa sociedade construiu de homem hétero e cisgênero. 

E recentemente, o Cavaleiro de Andrômeda, que marcou a infância da Geração Z, voltou a ser o centro das atenções dentro do mundo Geek. Isso porque em 2019 o remake do desenho produzido através de uma parceria entre a Netflix e a Toei Animation deu o que falar. Uma das maiores mudanças foi, sem dúvida nenhuma, a mudança do gênero de Shun, que na nova versão, é uma menina. 

Diversos posicionamentos foram tecidos a respeito. O roteirista da nova versão chegou a se pronunciar sobre a mudança. Na série de tweets publicada em sua conta oficial (@eugeneson), ele afirma que ter um grupo formado exclusivamente por homens para salvar o mundo era algo que o incomodava. “Hoje o mundo mudou. Garotos e garotas trabalhando lado a lado é o padrão. Nós somos acostumados a ver isso. Certo ou errado, o público pode interpretar uma equipe só de homens como nós tentando tomar um posicionamento sobre algo”, enfatizou Eugene Son em sua rede social. 

Enquanto alguns aplaudiam a inserção de uma mulher na Ordem dos Cavaleiros de Bronze e outros ficaram decepcionados por não ver o desenho ser retratado tal qual era na infância, um terceiro grupo ficou feliz e frustrado ao mesmo tempo. Desse grupo fazem parte aqueles que, apesar de estarem felizes com a entrada de uma mulher no time, ficam tristes por ter sido o Shun a protagonizar essa mudança. Isso porque de uma forma ou de outra se sentiam representados ao poder assistir a um dos mais poderosos cavaleiros da saga quebrando diversos estereótipos de gênero a cada episódio. 

“As indagações sobre a sexualidade do Shun surgiram em tom de ofensa. Mas a gente falou: ‘Então tá bom, se vocês acham que ele é homossexual ele vai virar o nosso ‘protegido’. Nos apropriamos do Shun”, relembra Marú com nostalgia. O produtor da primeira versão da saga, Yosuke Asama, parece ter tido uma visão parecida do cavaleiro, e acredita que o Cavaleiro de Andrômeda possui um papel essencial para o grupo. “Não o fizemos homossexual, mas com sexualidade indefinida. Shun é um rapaz bonito, gentil e educado que dá valor à amizade. A ideia era passar a mensagem de que a amizade entre os cavaleiros é importante: é com ela que vencem as batalhas”.

 

Nova geração: de crianças, jovens e desenhos 

She-ra na nova versão do desenho She-ra and the Princesses of Power [Imagem: Reprodução/ Netflix]
Mesmo com a polêmica voltada para a nova versão dos Cavaleiros do Zodíaco, nem todas as adaptações conduzidas pela Netflix foram mal recebidas pelo público. Muito pelo contrário, um remake em específico tem reunido crianças, jovens e adultos em frente às telas para acompanhar, passo a passo, as aventuras de uma das mais marcantes heroínas do mundo dos desenhos animados. Adora e seus fiéis amigos finalmente voltaram diretamente dos anos 80 para derrotar a Horda do Mal no reboot de She-ra e as Princesas do Poder (She-ra and the Princesses of Power, 2018)

Recuperando um dos desenhos mais conhecidos por  quem cresceu em meio à Década Perdida, a Netflix buscou tornar a produção mais leve para os novos telespectadores, suavizando cenas de violência  que eram tão comumente apresentadas às crianças  30 anos atrás. Longe de diminuir a  gravidade dos desafios enfrentados pela Rebelião, a versão estreada em dezembro de 2018 apostou mais na complexidade das personas. 

Super bem-sucedido em prender o telespectador (independente da idade) a cada episódio, ele diverge bastante do original. Nele, a luta entre o bem e o mal não é tão simples como parece. Isso porque, salvo algumas exceções, personagens de ambos os lados do campo de batalha possuem defeitos severos e qualidades admiráveis. Odiar vilões bem humorados e com senso de responsabilidade se torna uma missão quase impossível, tanto quanto apoiar todas as decisões tomadas pela rainha das princesas quando ela também é uma mãe superprotetora. 

Longe de parecer a super-heroína indestrutível de 1985, Adora (que durante as batalhas assume a forma da lendária She-ra) enfrenta problemas para controlar e dominar seus poderes, deixar a impudência de lado e lidar com as discussões diárias de seus melhores amigos, Glimmer e Blow. Órfã e criada em meio ao que podemos chamar de ambiente familiar nocivo (ou centro de treinamento para futuros soldados malignos), ela sente dificuldades para entender e tomar as decisões certas, e na grande maioria do tempo precisa lidar com a sensação de não pertencimento. 

As mensagens da história são claras: a vida não é dicotômica. Entender as motivações dos “inimigos” não é fácil,  mas necessário. Uma espada mágica não substitui determinação e treino. Salvar o mundo não é uma missão que se pode cumprir sozinho e negligenciar os sentimentos nunca é uma boa saída para um problema. Os personagens possuem uma dimensão emocional tão convincente, que não seria surpresa encontrá-los no Planeta Terra, reclamando das aulas de física em uma sala de Ensino Médio. 

Mas não é só nessa perspectiva que o desenho nos remete à vida real. A diversidade acompanha cada segundo diante da tela. Personagens de diversas etnias, tipos de corpos, sexualidade e expressões de gênero são representados, isso pode gerar muitas  dúvidas para quem ainda não assistiu aos episódios. Como será que as personagens lidam com tantas questões assim de modo acessível para o público mais jovem? 

Se fossem terráqueos e ocidentais como nós, eles talvez tivessem que lidar com violências estruturais como racismo, machismo e transfobia. Como são habitantes de Eternia, parecem não dar muita importância a características secundárias e desinteressantes como a sexualidade de alguém, e estão mais preocupados em impedir o avanço do mal e entender como funcionam os poderes dos novos integrantes do grupo. 

Um dos maiores méritos da série é a forma natural como toda essa diversidade se apresenta. E lembra ao público que, ao contrário do senso comum, as histórias com personagens LGBTQIA+ não precisam ter como tema central a vida afetiva delas. Personagens trans, lésbicas e assexuais podem muito bem se reunir para lutar batalhas e salvar o mundo de vez em quando. 

 

O que pensarão as crianças? 

Personagens LGBT em Hora de Aventura
Princesa Jujuba e Marceline de A Hora de Aventura [Imagem / Reprodução: Cartoon Network]
Boa parte dos discursos dos adultos ao se deparar com toda e qualquer coisa que sugira uma fuga da cisheretonormatividade elabora uma mesma pergunta: “O que as crianças vão pensar disso?”. Embora alguns utilizem essa expressão como forma de mascarar a própria relutância em tratar de um tema pelo qual nutrem preconceito, muitos carregam uma dúvida verdadeira sobre a situação. 

É evidente que assim como os adultos, crianças possuem diferentes pensamentos acerca da questão. Alice* de 10 anos de idade, gosta dos filmes produzidos pela Disney, especialmente os que têm princesas como protagonista, como Moana – Um Mar de Aventuras (Moana, 2016). Quando o assunto são séries e desenhos animados, ela prefere aqueles que tenham bastante ação, como Caçadores de Trolls; Contos de Arcádia (Trollhunters: Tales of Arcadia, 2016). 

Apesar da pouca idade, Alice já entende que existe pouca diversidade em meio aos desenhos. “Eu acho horrível não haver diversidade, tanto de cor de pele, quanto de [tipos de] cabelo. As princesas, por exemplo, são todas de uma maneira igual. Como se fossem para eles uma pessoa ‘normal’”.  Para ela, isso acontece porque as personagens refletiam os valores racistas da sociedade, e exemplifica por meio da Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, 1937): “ela foi pensada antigamente, e eles eram muito racistas com esse tipo de coisa, com a aparência”.

O raciocínio de Alice se estende a outras minorias políticas que são praticamente apagadas das animações. E ela não vê grandes problemas envolvendo a inserção de personagens de diferentes gêneros e sexualidades. “Eu acho que seria ‘de boas’ colocar personagens LGBT, mas seria muito difícil para as mães explicarem para os filhos. Eu quando era nova perguntava tudo para o meu pai e a minha mãe. Mas em séries para pessoas da minha idade acho que deveria ter bem mais”. 

O questionamento das crianças sobre as diferentes possibilidades de afeto é algo que pode gerar desconforto em muitas famílias. E não é incomum que pais se sintam despreparados para abordar esse tema com seus filhos ou se sintam pouco à vontade. A professora e Chefe do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Luciana Szymanski, acredita que o enfrentamento do tema não deve ser motivo de agonia para os responsáveis. “Eu diria, antes de tudo, que ninguém é obrigado a falar sobre algo que lhe deixa extremamente desconfortável. É por isso que existe essa possibilidade de diálogo nas escolas”. 

Quando a pergunta surge, o melhor a se fazer não é fugir dela. De acordo com a doutora em Psicologia da Educação, é importante que os questionamentos das crianças sejam sanados quando surgem. “Eu diria que a coisa mais importante é você respeitar a dúvida de uma criança. A dúvida de uma criança é sempre algo muito sério. E ela tem o direito de saber”, enfatiza a especialista. E para isso podem ser dados exemplos de pessoas próximas ou a conversa sobre o assunto pode ocorrer com outros adultos próximos à criança, que tenham maior domínio sobre o tema e facilidade para explicá-lo.

 

A representatividade como solução

Lance e George – pais de Bow [Imagem: Reprodução/ Netflix]
Mesmo que a família encare as dúvidas infantis acerca dos vários temas que envolvem a comunidade LGBTQIA+, os desenhos ainda podem gerar desconforto. São mesmo apropriados e adequados para os pequenos? Luciana acredita que a mera inclusão de personagens não cisheteronormativos nas narrativas não representa um fator de alerta por si só. Quando se trata de conteúdos voltados para o público infantil não existe uma resposta certa para a pergunta “É adequado ou não?”.

Isso porque o questionamento passa por diversos fatores, que vão desde a idade da criança (deve-se estar sempre atento à classificação indicativa), até o modo como os personagens se comunicam entre si. “Eu tenho ouvido muitas mães dizendo que se incomodam com o assunto da violência nos desenhos. Outras que se incomodam com o fato de que alguns personagens não conversam, eles gritam.” Para a doutora em Psicologia, essas questões podem ser conversadas no ambiente familiar, incluindo as crianças e chamando a atenção para o modo como as personagens dos desenhos interagem.

Quando o assunto é comunidade LGBT, a representação nos desenhos pode ser uma solução, uma ferramenta para quebrar preconceitos e naturalizar a presença da diversidade no cotidiano infantil e infanto-juvenil. A escola pode, e deve, ser aliada nesse processo, sanando dúvidas e orientando as crianças e famílias acerca do assunto, salientando a importância do respeito. “Eu acho que também tem que respeitar. As crianças também deveriam entender, e que a escola deveria ensinar sobre isso, que tu pode escolher o que tu quiser ser, seja homem ou mulher”, diz Alice.

“Desenhos que são para crianças de fato, que trazem a temática LGBT e as possibilidades afetivas não são a princípio um problema, se não até uma solução”, afirma Luciana Szymanski. De acordo com ela, as crianças possuem o direito de entrar em contato com formas respeitosas de se falar acerca das possibilidades afetivas  que existem, uma vez que isso faz parte da existência humana como um todo. 

Apesar da permanência do assunto como tabu na maioria dos círculos sociais, Alice se mantém esperançosa: “eu quero que mude muito porque o mundo vai ficar muito melhor. Porque tipo, agora, por exemplo, em 2020 acho que já está melhorando muito em relação a antigamente, mas ainda pode melhorar muito. E acho que vai mudar, só que eu não tenho certeza né?”

 

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