O ano é 2004. Você caminha de volta pra casa ao som do mais novo lançamento de Avril Lavigne, tocando no seu recém adquirido MP3 Player. Vai a passos rápidos, não pode chegar tarde e perder a transmissão inédita do último episódio de Friends. Com medo do atraso, percebe que não deveria ter passado naquela loja de departamento à procura de uma nova calça jeans de cintura-baixa. Agora, em 2019, essa cena pode ser nostálgica, mas impossível de acontecer em tempo real. O que aconteceu no universo da cultura, nos últimos 15 anos?
15 anos fora de série
Já imaginou assistir uma série sem nenhum personagem negro ou pardo? E ainda por cima, com 27 episódios? Apesar de parecer uma ideia distante, não faz muito tempo que essas mudanças chegaram. Há 15 anos, enquanto Friends e Sex and The City se despediam das telas, Lost e Desperate Housewives entravam na programação. Via televisão, os espectadores assistiam semanalmente um episódio novo, com dia e hora marcados.
Hoje, na era do streaming, a produção das – ainda chamadas – séries de TV mudou tanto em formato como em conteúdo. A Netflix surgiu como uma locadora digital e marcava 4,3 milhões de assinantes no ano de 2007. Aos poucos, ela foi se espalhando pelo mundo online e, em 2018, chegou 130 milhões.
Nesse período, surgiram termos como binge-watching, ou maratonar, e muitos programas foram reformulados, diminuindo o número de episódios por temporada e o tempo de duração deles. Uma das estratégias adotadas pelos serviços de streaming é de adequar o tamanho da série para que o espectador consiga ver tudo em um final de semana. Além disso, não precisar assistir comerciais é um atrativo dessas novas plataformas.
Contudo, as maiores diferenças ocorreram nas tramas e nos personagens. Com o passar dos anos, coube às séries trazer personagens mais diversificados e temas atuais.

No entanto durante esses dez anos, algumas coisas nunca mudaram: as piadas do Ross (David Schwimmer) em relação à Carol (Jane Sibbett), sua ex-mulher que se assumiu lésbica. Formada em Relações Internacionais na PUC-SP, analista de marketing e escritora para o blog Nó de Oito, Lara Vascouto afirma que, apesar dessa predominância de piadas preconceituosas e de protagonistas brancos, “é importante assistir com um olhar crítico. Na década de 1990, já se falava sobre machismo e racismo, mas não na mesma intensidade.”



“Tem duas protagonistas femininas brancas. Porém, no revival de três anos atrás, também não foi corrigido. A série vem depois de Friends e não tem sentido não ter sido corrigido” critica Lara Vascouto. “Mas é uma série muito esperta, com diálogos muito bons”, acrescenta.

Com os anos, a preocupação com maior representação aumentou. Séries como The Good Place e Black Mirror têm um elenco muito diversificado sem precisar chamar atenção a esses aspectos. “As sitcom [comédia situacional] se popularizaram muito nos anos 1990. Apesar de ainda termos dessas comédias, vejo uma guinada para o gênero de ‘dramédia’, com a mesma duração de 20 minutos”, afirma Lara Vascouto. “Elas tratam de temas mais densos e não tão situacionais, como em Brooklyn-99. Antigamente, quando surgiam esses assuntos, era um episódio inteiro falando sobre e depois não se falava mais nisso.”

15 anos, infinitas batidas
O prêmio de Single do Ano dos Grammys de 2004 foi para o Coldplay, pela música Clocks, de acordo com a lista divulgada pelo New York Times, à época. Embora muita gente ainda escute e goste dessa música, e Coldplay seja uma banda que ainda atrai muitos ouvintes e faz parte do universo mainstream, o som de Clocks não é exatamente o que se imagina como ganhador desse prêmio, hoje em dia. Em 2019, o prêmio não existe mais com esse nome, mas quem recebeu o de Música do Ano foi Childish Gambino, por This Is America.
As diferenças são gritantes entre as canções em si e os próprios artistas, mas outra coisa a se considerar é: quantas pessoas efetivamente ficaram sabendo de cada um desses resultados? Certamente, hoje, essa informação consegue chegar mais rápido, e com maior eficiência, a muito mais lugares.
As mudanças no contexto musical, nos últimos 15 anos, foram intensas. Desde a forma como produzimos até como consumimos músicas, houve uma grande influência de aspectos culturais e da tecnologia. Ao longo desse tempo, gêneros saíram de moda e entraram em alta; várias gerações de IPods foram lançadas e saíram de linha; serviços como o YouTube e o Spotify foram desenvolvidos e muitos artistas surgiram e desapareceram.
Pode-se dizer que os anos 2000, de uma forma geral, foram a era de ouro da música pop. Os nomes que são até hoje referência desse gênero estavam tocando sem parar na rádio e produzindo músicas que, hoje, se não são clássicos, são ditas ultrapassadas ou nostálgicas. Avril Lavigne, Beyoncé, Justin Timberlake, Christina Aguilera, Alicia Keys. Artistas como esses estiveram em alta ao longo da primeira década do segundo milênio e contribuíram fortemente para a formação da cultura típica dessa época. Isso sem contar que, nas rádios, ainda havia a presença de nomes clássicos como Michael Jackson e Madonna.

Esse aspecto de hibridização da música é uma das principais tendências da música atual, como explica o professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP, Rogério Costa: “Vivemos um momento em que as definições e categorizações se complexificaram. Há muita permeabilidade e porosidade entre as diversas manifestações musicais que emergem em diversos ambientes culturais”.
As músicas que ouvimos hoje vêm de lugares muito diferentes e têm influências dessas culturas. É mais fácil entrar em contato com outros gêneros e artistas, tanto para quem ouve, como para quem produz música. “Isso se deve em parte ao fenômeno da globalização e à utilização das novas tecnologias de comunicação, divulgação (através da internet), gravação e produção musical”, explica Rogério.
A questão da tecnologia é um ponto central na forma como se desenvolve e se produz a música contemporânea. Além de facilitar novas influências, ela pode promover o surgimento de novos artistas e possibilitar a popularização de outros gêneros. Nícolas Kolbe é baterista da banda Rubatosis e falou sobre esses impactos: “O desenvolvimento tecnológico possibilita que mais pessoas consigam fazer músicas com qualidade bem alta, sem precisar depender de terceiros. Existem vários exemplos, como o Rex Orange County e o Tame Impala, que foram assim no início.” São artistas que começaram de forma independente e, hoje, são bastante famosos.

Nesse contexto, é possível perceber uma maior variedade no cenário da música, não apenas no aspecto rítmico. É evidente uma presença maior de artistas e gêneros negros na música popular. Isso ocorre tanto a nível nacional, com a popularização do funk, por exemplo, quando internacionalmente. Nos Estados Unidos, artistas de rap, hip-hop e R&B têm grande espaço nas paradas. O prêmio de melhor música nos Grammys deste ano, uma música de trap – subgênero do rap –, é prova disso.

Embora seja difícil definir um padrão nas tendências da música de uma forma geral, especialmente com a diversidade que existe hoje, às vezes há alguns aspectos comuns. Nícolas considera que um deles é a proposta de músicas mais minimalistas. Ou seja, há a tentativa de deixar as músicas mais enxutas, sem reduzir a proposta ou o propósito delas. “Um exemplo disso é o trap. O trap cresceu bastante nesses últimos tempos, o lo–fi também, que é extremamente minimalista, e que, em questão rítmica, é bem simples.” Além desses subgêneros do rap, o baterista cita um exemplo do rock: “O álbum novo do Artic Monkeys, em comparação com o primeiro, que é do início dos anos 2000, está muito mais minimalista e conceitual. Ao mesmo tempo, eles conseguem fazer uma proposta bem desenvolvida e bacana.”
Todas essas mudanças no universo da música se refletem também na forma como a ouvimos e consumimos. Com tantas possibilidades, é difícil achar alguém que não agradeça por não precisar mais comprar um CD inteiro para ouvir uma ou duas músicas, ou passar horas baixando arquivos MP3 na internet. Os serviços de streaming, como Spotify, Deezer e Apple Music, fazem com que mais músicas cheguem a mais pessoas, de forma mais barata. Isso condiz com a forma que elas são produzidas. De forma geral, temos notas mais diversas alcançando mais ouvidos.
15 anos de tendências
15 anos representam muito tempo para a indústria da moda. As indústrias tradicionais, conhecidas como fast fashion, são caracterizadas pela constante mudança de seus produtos, o que leva os consumidores a sentirem a necessidade de comprar cada vez mais. Esse foi o tipo predominante nos anos 2000.
Francisca Dantas Mendes, professora de Moda na EACH-USP (Escola de Artes e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), comenta que a mudança de coleções no mercado da moda nem é tão significativa assim. “Na verdade, [uma coleção] não chega a ser totalmente nova, é uma versão melhorada da anterior. Eles vão soltando coleções com pequenas variações, mas não com uma grande estrutura de alteração.”
Em relação às transformações observadas nos últimos 15 anos, a professora diz que “não tivemos tantas mudanças na moda com relação às imagens, à cor e à forma”. O que ocorreu foi uma democratização, com o surgimento de novos nichos. Além disso, enquanto as indústrias conservadoras valorizavam a marca e a quantidade, as novas indústrias passaram a priorizar os produtos e a qualidade.

O termo slow fashion foi criado por Kate Fletcher em 2008, inspirado no movimento slow food. A ideia consiste em um consumo consciente na moda, baseado na preocupação social e ambiental. A produção é controlada e feita a partir de tecidos mais ecológicos. As lojas também procuram reduzir a quantidade de lixo gerado e fornecer um salário mais justo aos funcionários.

Quanto ao último aspecto, Francisca complementa que, para ocorrer sustentabilidade na moda, deve haver equilíbrio e justiça entre três aspectos fundamentais: sociedade, economia e meio-ambiente. Ou seja, o preço deve ser acessível, as condições de trabalho devem ser boas e os recursos naturais não podem ser usados de forma descontrolada.
Porém, ainda existe um desafio: o preço. Apesar de a qualidade da peça ser melhor e as condições de trabalho também, o valor das roupas permanece inacessível a grande parte da população. A consciência sobre as vantagens do consumo de slow fashion é reduzida pelas condições financeiras da compra, pois as promoções e o baixo preço do fast fashion apelam ao irracional.
Julia Portela, empresária da loja Giraflor Store, de slow fashion, explica a ligação entre o movimento e a preocupação ambiental. “Dentro desse perfil de vida [dos consumidores] está uma preocupação com o planeta, porque eu gosto de aproveitar o meu planeta, eu amo o meu planeta.” Esse hábito de consumo também se relaciona com a forma de cuidar das próprias coisas, pois, como as roupas de slow fashion possuem qualidade maior que as de fast fashion, sua durabilidade depende do cuidado individual – e a roupa pode durar a vida toda.
Porém, Julia ressalva que “é muito difícil ser uma marca 100% sustentável. O que a gente faz é ser honesto com o planeta e com as pessoas que trabalham. Todo mundo recebe pelo trabalho que está fazendo, e é importante ter o maior cuidado possível com o que se está produzindo”.
Mas por que a moda slow fashion é cara? Talvez a pergunta mais certa a ser feita seja por que a fast fashion é, normalmente, barata. A respeito disso, Beatriz expressa que, quando o preço de uma roupa é muito barato, “tem que se duvidar da procedência. Quem fez a sua peça? Por que é barata? Geralmente, essas peças são produzidas em regiões onde as condições de trabalho são bem precárias.” É o caso de países do Sudeste Asiático, como a China. Atualmente, Bangladesh também ganha destaque na exploração da mão de obra na indústria têxtil.

Esperava-se que, com o avanço tecnológico observado nos últimos 15 anos, haveria estratégias de otimização da produção e de maior aproveitamento dos materiais, além de métodos mais eficientes de reciclagem. Mesmo com o surgimento de empresas têxteis voltadas à sustentabilidade ambiental, o setor predominante ainda adota poucas políticas ecológicas – e como o consumo só aumenta, dificulta-se a solução do problema.
As indústrias tradicionais desperdiçam um caminhão de lixo têxtil por segundo, de acordo com relatório da fundação Ellen MacArthur. O relatório também conclui que, se não houver mudanças, até 2050 a indústria da moda poderá ser responsável pela liberação de um quarto das emissões de carbono de todo o planeta.

Francisca chama atenção para o surgimento, nos últimos anos, de pequenas marcas dentro do mercado da moda, as quais muitas vezes fazem parte do MEI (Microempreendedores Individuais). Com o empreendedorismo, as pequenas indústrias possuem maior autonomia e tanto o número de funcionários quanto de peças é reduzido.
As reflexões sobre identidade de gênero também repercutiram no mercado da moda. O no gender, já mencionado, ganhou atenção nos últimos 15 anos. É uma forma de fugir dos estereótipos de “roupa feminina” e “roupa masculina”, encontrando uma opção para todas as pessoas, inclusive aquelas que não se identificam com nenhum desses gêneros. Porém, justamente por ser algo recente, não se pode afirmar se é, de fato, uma quebra dos paradigmas da moda ou apenas uma tendência efêmera voltada apenas ao mercado.
