Nos últimos anos, muito tem se falado sobre democracia. Não é à toa que um dos bestsellers do The New York Times se chama Como as democracias morrem, escrito por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Neste ano, a Netflix lançou o documentário Democracias em Vertigem. Mas afinal, o que é democracia? Ela morre? Entra em vertigem? Como está a nossa democracia?
Democracia é um conceito que se origina na Grécia Antiga. O termo é composto por “demo” e “kratis”, que traduzido do grego significa “governo do povo”. Em linhas gerais, ela buscava a participação dos cidadãos nos assuntos políticos. É fundamental percebermos que, por centenas de anos, a democracia não era democrática, mesmo que isto aparente ser um paradoxo. Na gênese dela, por exemplo, apenas os abastados da sociedade possuíam o direito ao voto e à voz. Esta elitização se perpetuou no Império Romano, chegando até a história recente do Brasil. Apenas em meados do século passado que qualquer cidadão brasileiro, independentemente de sua classe social, de seu grau de escolaridade, de seu sexo ou de seus traços fenótipos, pôde votar, ser votado e atuar dentro de um sistema democrático.
Este regime, mesmo que muitos simplifiquem a definição em “direito ao voto”, é muito abrangente. O voto popular é apenas um dos componentes. Entretanto, alguns países não democráticos também possuem eleições, caso da Coréia do Norte, onde, curiosamente, o ditador Kim Jong-un foi eleito com 100% dos votos em 2014. Ou seja, o direito ao voto não significa que um país é democrático. Outros componentes são a liberdade e a igualdade. É a garantia de que qualquer um pode se expressar e se manifestar, de que qualquer um será tratado de maneira igualitária, independentemente dos inúmeros fatores que os possam distinguir.
Embora alguns acreditem que a democracia moderna esteja consolidada, existe uma visão contrária que afirma que, mesmo após mais de dois milênios de desenvolvimento, ela ainda está em consolidação. O cientista político Júlio César Casarin Barroso Silva, doutor em Ciências Políticas e docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), exemplifica que um dos argumentos contrários é que “dois dos mais canônicos exemplares da categoria (países com democracias consolidadas), os Estados Unidos e o Reino Unido, têm sido sacudidos por ventos desestabilizadores”.
Assim como ocorre com esses dois países tidos como exemplo para as outras democracias, mas que estão passando pelos “ventos desestabilizadores”, diversas nações estão em processos semelhantes. Justamente neste ponto se encaixa o Brasil. Com a eleição do candidato da extrema-direita Jair Bolsonaro, a discussão sobre a democracia do país volta a figurar.
Antes de discutirmos a democracia do nosso país, porém, precisamos entender a “morte” e a “vertigem” dela.
A morte e a vertigem da democracia
A morte é um termo que se refere ao fim de algo. Ela significa que tal coisa se findou e que não há mais como mudar isto. Seria a concretização da morte da democracia e que não existem mais formas de recuperá-la. Vertigem é um termo mais ameno. Significa que está em decadência, porém não necessariamente está próxima do fim. E se personificarmos a democracia, poderíamos compará-la a um estado clínico de um paciente. A vertigem pode representar um adoecimento. Já a morte é morte. É algo irreversível.
Contudo, na visão de Júlio César, os termos “morte” e “vertigem” são meras “figuras retóricas”. “A democracia não morreu e nem está perto de morrer no mundo, nem como ideia, nem como prática. Mas parece evidente que a ordem liberal-democrática está sob stress mundo afora”.
Segundo ele, uma democracia estabelecida necessita de instituições fortes, império da lei e “de um mínimo consenso sobre questões básicas e virtudes dos cidadãos”. Porém, ele é taxativo: “Todas essas características estão em baixa mesmo onde elas pareciam bem estabelecidas”.
Contextualização do regime democrático
É consensual que vivemos um momento ímpar na história democrática brasileira. Nosso regime é muito jovem. Reflexo disso é que há 34 anos vivíamos em uma Ditadura Civil Militar. Obviamente, a ditadura sequer chegou perto de uma democracia, muito pelo contrário, foi um regime brutalmente autoritário.
Entretanto, durante a reestruturação da democracia no período pós-ditadura, iniciamos um processo de fortalecimento das instituições. Este processo se iniciou durante o governo ainda não democrático de José Sarney, passando por Fernando Collor. E neste momento já tivemos o impeachment – que é destituição do presidente. Ou seja, após menos de uma década da redemocratização, logo com o primeiro presidente eleito por votos populares, tivemos a retirada do poder.
Conforme Silva, que também é formado em Direito pela USP, o impeachment “é um recurso institucional extremo”, ou seja, ele não pode ser utilizado de forma banalizada. Feito este adendo, retornaremos à observação de alguns eventos importantes.
Fernando Henrique Cardoso é eleito e reeleito em 1994 e 1998, respectivamente. Contribuiu para o Plano Real e para o fortalecimento das instituições e da democracia.
Luís Inácio Lula da Silva eleito em 2002 e reeleito em 2006. Contribuiu muito para a distinção entre os três poderes – executivo, legislativo e judiciário.
Durante o Governo Lula, em pleno período eleitoral (entre 2005 e 2006), surgiu o escândalo do Mensalão, que dizia que deputados eram comprados com dinheiro público para apoiar o governo. Isto mostra a força das instituições, pois os próprios poderes estavam se fiscalizando.
Dilma foi eleita em 2010 e reeleita em 2014.
Durante meados de 2013, movimentos políticos começaram a surgir, muito influenciados pela Primavera Árabe, movimento popular que aconteceu nos países árabes que derrubou governos. Exemplos desses movimentos foram os casos contrários ao aumento das tarifas em São Paulo e, posteriormente, atos contra a então presidenta Dilma Rousseff. Havia uma insatisfação ao governo.
Mas em 2014, após a reeleição de Dilma, se inicia um processo conturbado.
De 2014 a 2019: sequência de colapsos
Dilma foi reeleita com 51,64% dos votos válidos no segundo turno. A eleição foi muito acirrada e polarizada. O concorrente à presidência era Aécio Neves. Ao ver sua derrota, o psdbista foi enfático ao dizer que as eleições foram fraudulentas. Ele se recusou em aceitar o resultado das urnas.
Manifestações populares se iniciam pedindo o impeachment da presidenta. Não havia fatos que justificassem os pedidos, mas eles aconteciam.
Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, antes integrante do governo, decidiu romper os laços e acolheu um pedido de impeachment contra Rousseff.
Votação do impeachment: parlamentares justificando seus votos em “Deus”, “família”, “ética”. Um deputado do baixo clero, chamado Jair Bolsonaro, homenageia o torturador de Dilma durante a Ditadura, Carlos Ustra. Dilma foi cassada.
Defensores da presidenta afirmam que ocorrera um Golpe.
Michel Temer, vice de Dilma, assume a presidência.
Pessoas pedem impeachment de Michel.
Votação: parlamentares justificando seus votos em ‘Deus’, “família”, “ética”. Votação acabou e Temer não foi cassado.
Eleição de 2018, polarização entre extrema-direita e esquerda. Bolsonaro, o mesmo que homenageou um torturador, surge como principal representante dos grupos reacionários e conservadores. Haddad, que se tornou o sucessor de Lula, representa a esquerda.
Sequências de reflexos da ultra polarização: Manifestantes de ambos os lados em constantes conflitos, sejam virtuais ou mesmo físicos em atos públicos.
De um lado, uns seguram faixas pedindo Golpe Militar
De outro lado, outros seguram faixas dizendo que 2016 foi Golpe.
De um lado, Bolsonaro diz ser contra a urna de votação, pois ela é “fraudulenta” – reparemos que se repete o mesmo discurso de Aécio.
De outro lado, Haddad ataca o Supremo Tribunal Eleitoral por indeferir a candidatura de Lula, que era o primeiro colocado nas intenções de votos nas pesquisas eleitorais.
Bolsonaro ataca a mídia.
Haddad ataca a mídia.
Bolsonaro ataca Haddad.
Haddad ataca Bolsonaro.
Brasil fica refém dessa polarização.
Instituições são duramente atacadas por ambos.
Democracia fica refém disto.
Bolsonaro é eleito presidente.
Bolsonaro ataca os ministros do STF.
Bolsonaro ataca os parlamentares.
Bolsonaro ataca a oposição.
Bolsonaro ataca a imprensa.
Bolsonaro realiza atos que, para alguns, a Constituição condena.
Bolsonaro defende a Ditadura.
Bolsonaro ataca minorias.
Bolsonaro incita o ódio.
Oposição pede impeachment de Bolsonaro.
Quais fatores atingem uma democracia?
Para Júlio César, “a intolerância, o clima de deslegitimação da oposição e o acosso de minorias, o desprezo dos cidadãos por evidências, a crescente desimportância da imprensa e o ataque sistemático às instituições perfazem um conjunto ameaçador para um regime democrático.” Além disso, ele complementa que a banalização do impeachment é mais um “sintoma” de que a democracia não vai bem.
A intolerância pode ser notada quando a disputa eleitoral é polarizada. Na visão do cientista político, a competição entre direita e esquerda é algo positivo para o fortalecimento democrático, porém quando os lados se tornam rivais extremos, como ocorreu nos Estados Unidos na eleição entre Donald Trump e Hillary Clinton e no Brasil durante o confronto entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, isto fere diretamente a democracia.
Quando uma democracia morre, o novo regime será o autoritarismo?
Não necessariamente. Para Silva, um regime autocrático pode se iniciar, mas pode iniciar-se, também, um regime de anarquia, ou seja, um estado de dissolução do poder governamental. Tal dissolução poderia ser, segundo o especialista, uma guerra civil, por exemplo.
Jair Bolsonaro oferece risco à democracia?
Para Vinícius Saragiotto Magalhães do Valle, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, e docente na Faculdade Santa Marcelina, Jair oferece riscos em “vários níveis”. “Diversas vezes ele defende torturadores e faz uma defesa à ditadura militar. Então, (…) [ele defende] algo bastante problemático para um líder num estado democrático. Ele faz declarações que vão de encontro à nossa Constituição. Muitas vezes ataca nossas instituições e direitos que são cláusulas pétreas. Isso gera um efeito de descrédito na democracia. Também ultrapassa os limites institucionais do cargo da Presidência da República em condições de um estado de direito”.
Valle afirma que o presidente Bolsonaro ultrapassa as prerrogativas do cargo a ele destinado. Segundo o cientista político, o presidente eleito pela extrema-direita brasileira não se limita à retórica, mas também adota medidas autoritárias, o que viola a democracia, tal como o enfraquecimento das instituições que defendem o combate à tortura.
Por fim, se listarmos o que é democracia e compararmos com certas atitudes de Bolsonaro, veremos que há muitas contradições. Enquanto um regime democrático se opõe ao autoritarismo, o atual presidente defende. Enquanto o primeiro preza pela liberdade de expressão e de imprensa, o segundo defende a censura. Todavia, cabe a nós refletirmos: Bolsonaro oferece riscos à democracia? Se algum de nós tiver medo por se opor a ele, já sabemos a resposta.