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Cores, texturas e detalhes: a arte de recriar as épocas e estéticas do Brasil

Conheça mais sobre a direção de arte em filmes nacionais, tarefa que constrói a atmosfera cinematográfica e retrata identidades brasileiras diversas, mesmo sendo, muitas vezes, invisível ao público
Por Carolina Ziemer (carolziemer@usp.br)

Você já se viu, sentado numa sala escura de cinema em 2025, mas sentindo-se a esposa de D.João VI traindo o marido? Ou acreditando estar no sertão nordestino, em meio à seca, décadas atrás? Essa viagem no tempo acontece por causa de um trabalho minucioso que envolve pesquisa, sensibilidade estética e escolhas narrativas que moldam cada cenário, cada objeto e cada cor que vemos na tela. É exatamente essa a função da direção de arte, uma das engrenagens mais importantes, apesar de muitas vezes desconhecida, do cinema.

Mais do que figurinos e locações cuidadosamente selecionadas, é a atmosfera construída pela direção de arte que insere o espectador dentro da narrativa. Cabe a esse setor o papel de traduzir visualmente a ideia do diretor, de modo a criar uma linguagem estética coerente com o tempo, o espaço e o tom da história contada.

Uma das funções de maior importância do diretor de arte é a escolha da paleta de cores da produção [Imagem: Reprodução/TMDb]

Desenvolvendo uma estética

Embora seja uma função ainda pouco reconhecida pelo público em geral, a direção de arte é complexa e exige um trabalho técnico e criativo intenso. O diretor de arte coordena uma equipe multidisciplinar, cujas funções variam de acordo com a natureza da produção, o orçamento disponível e a escala do projeto. Além de criar imagens belas e impactantes, esse profissional é responsável por representar elementos que insiram o público em uma época, uma cultura e uma realidade.

O primeiro crédito formal dado a um diretor de arte aconteceu no clássico E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939). William Cameron Menzies foi responsável por conceber toda a estética visual do filme e chegou a desenhar quadro a quadro as principais cenas. Seu trabalho foi tão decisivo que o produtor David O. Selznick decidiu creditar Menzies como production designer, o que configurou um marco na valorização da função dentro da indústria cinematográfica. 

No Brasil, esse reconhecimento chegou mais tarde. Durante as primeiras décadas do século 20, era comum que uma única pessoa acumulasse funções como cenografia, figurino, maquiagem e cabelo, sem especialização formal. 

O primeiro filme brasileiro a creditar a função de direção de arte foi O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco. Clóvis Bueno assinou a direção de arte, enquanto Felippe Crescentti cuidou da cenografia e Patrício Bisso do figurino. A partir disso, a presença e a valorização desse profissional se tornaram mais frequentes nas produções nacionais.

No mesmo ano de lançamento do filme, várias outras produções brasileiras adotaram o termo “direção de arte” nos créditos, aumentando a visibilidade dessa função [Imagem: Divulgação/Island Pictures]

Diversos filmes brasileiros se destacam justamente pela força visual que suas direções de arte imprimem. Obras como Bacurau (2019) e Auto da Compadecida (2000) utilizam o sertão como palco de narrativas potentes, com cenários que reforçam tanto o realismo quanto o simbolismo das histórias. Outros longas mergulham em universos urbanos e periféricos, como Cidade de Deus (2002) e Marte Um (2022), que retratam favelas, becos e casas com detalhes que dizem muito sobre os personagens, mais até do que os próprios diálogos. 

O foco da direção de arte de Cidade de Deus, comandada por Tulé Peak, era a demonstração da desigualdade social e, para isso, foi necessário contrastar figurinos e cenários de pessoas de classes sociais distintas [Imagem: Reprodução/TMDb]

Representar uma história nacional marcada por contradições e diversidade é o grande desafio desses profissionais. Como explica Melissa Milano, atriz, produtora executiva e diretora de arte, “a direção de arte dá informações que o roteiro em si não consegue dar e traz aspectos que os atores podem explorar”. Em entrevista ao Cinéfilos, ela destaca que detalhes como uma louça suja em cena podem revelar hábitos, condições socioeconômicas ou até o estado emocional de um personagem. 

“Essas escolhas contam uma história tanto quanto as falas. Na identidade visual, é possível trazer a realidade e as características daquele personagem.”

Melissa Milano

E quando o passado é retratado nas telas?  

Em filmes de época, o trabalho da direção de arte ganha ainda mais relevância. Recriar cenários de períodos históricos que, muitas vezes são desconhecidos pelas próprias equipes, exige pesquisa rigorosa e sensibilidade estética.

Em Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), Carla Camurati retrata, com requinte visual, a chegada da corte portuguesa ao Brasil, após fuga da Europa por ameaça de Napoleão. Através de uma direção de arte expressiva, o longa usufrui de figurinos exuberantes, maquiagens e perucas exageradas para contar a história com humor. Esses elementos garantem que os espectadores sejam inseridos no ano de 1808 para além do cenário, aproximando-os dos personagens que exalam suas personalidades por meio do visual.

O filme foi relançado nos cinemas este ano após ter sido remasterizado [Imagem: Divulgação/Netflix]

Outro exemplo é Vidas Secas (1963), adaptação da obra de Graciliano Ramos. Embora não tenha tido crédito formal de direção de arte, o trabalho visual é determinante para expressar a aridez e a brutalidade da vida dos retirantes. A luz estourada transmite o calor do sertão nordestino, a ausência de cor reflete a realidade cruel e desumana da seca e os figurinos sujos e rasgados indicam a precariedade dos personagens.

Os diretores de arte trabalham em colaboração com os cenegrafistas e os figurinistas para garantir a imersão [Imagem: Reprodução/TMDb]

Já em Olga (2004), a ambientação é peça-chave para conduzir o público pela trajetória da militante comunista Olga Benário, da Intentona Comunista ao campo de concentração nazista. A direção de arte foi realizada por Tiza de Oliveira que, em entrevista à Folha de S.Paulo, comentou sobre a criação de uma ambientação opressiva, com tons frios e azulados, para instigar o sentimento trágico da narrativa. Além disso, Tiza compartilhou as soluções criativas em meio às dificuldades orçamentárias ao recriar as cidades europeias em cenários cariocas, como a transformação de uma fábrica em Bangu em campo de concentração. 

Na mesma entrevista, Tiza revelou que utilizou shampoo e isopor como solução inovadora para criar neve [Imagem: Divulgação/Globoplay]

A partir desses filmes, é possível notar o desenvolvimento daquilo que é crucial para um filme cativante: imersão. Uma direção de arte bem elaborada nos faz esquecer que o que está se passando na tela é ficção e te transporta para a realidade e o contexto sendo representado. 

Diminui o orçamento, aumenta a criatividade 

Criar essas atmosferas, no entanto, não é uma tarefa simples, especialmente diante das restrições orçamentárias que marcam boa parte das produções brasileiras. Assim como em Olga, os diretores de arte têm que buscar soluções criativas para obstáculos monetários. 

“Em produções de baixo orçamento, a maior dificuldade que nós temos é encontrar os objetos que idealizamos por um preço acessível”, explica Melissa Milano. Ela relata que, muitas vezes, é necessário recorrer a acervos pessoais, como objetos herdados de familiares, ou até fabricar peças de forma artesanal. 

“O baixo orçamento com certeza incentivou a minha criatividade de forma muito produtiva.”

Melissa Milano

O processo exige também uma extensa pesquisa histórica e estética, principalmente em narrativas ambientadas em épocas que os profissionais não vivenciaram. Melissa comentou que atua diretamente na resolução de impasses de cenário e figurino nas produções em que faz parte da direção de arte. “Você é forçado a pesquisar muito mais sobre o que está sendo contado”, aponta. 

Mais do que um suporte visual, a direção de arte é um componente narrativo fundamental do cinema. Ao olhar para os detalhes, como uma parede descascada, uma cortina desbotada ou a forma como os móveis ocupam um espaço, o espectador entende, muitas vezes sem perceber, quem são aqueles personagens, onde estão, de onde vêm e o que sentem. 

É essa capacidade de contar histórias silenciosas que faz da direção de arte uma das camadas mais complexas e poderosas do audiovisual. Quando bem feita, ela nos deixa esquecer que estamos em 2025, sentados em uma sala de cinema, e nos convence de que estamos em 1808, com Carlota, desembarcando com a corte portuguesa no porto do Rio de Janeiro. Isso é mais do que estética, é produção cinematográfica em sua forma mais sensível e imersiva.

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