As lésbicas existem, e existem em muitas formas de corpos, raças e idades. Até que ponto o audiovisual de fato reconhece a existência das lésbicas? E como o cinema brasileiro lida com a subjetividade lésbica?
Embora ainda apareçam de forma desproporcional no cinema, as relações lésbicas passaram a ser representadas com maior frequência. A discussão vai além da exposição desses relacionamentos e passa pela maneira como o prazer lésbico é colocado em tela. Algumas teóricas do cinema como Linda Willians e a cineasta Barbara Hammer são expoentes na discussão.
A lésbica está lá
Levantam-se vários questionamentos se existe, de fato, uma convenção para o que significa a denominação “cinema lésbico”. Essa reflexão inicial é vital, pois certamente não há um único tipo de imagem da lésbica, embora isso contraste um pouco com a imagem da lésbica que é comumente propagada nos filmes, atreladas diretamente ao olhar fálico do cinema e à falta de subjetividade das personagens.
Principalmente tratando do cinema industrial, é possível observar a lésbica na cena, mas não vê-la verdadeiramente. A autora Ann M. Ciasullo afirma que “visibilidade não quer dizer estar presente, mas sim estar sendo assistida”. Com essa frase, ela busca elucidar o real enquadramento dado às lésbicas no cinema. Um exemplo disso, e que nunca é discutido, é o da personagem Janice em Meninas Malvadas (Mean Girls, 2004). A lesbiandade da personagem não é tratada com relevância no filme, apenas utilizada como um artifício cômico no último ato, ainda que as questões de Janice e sua sexualidade afetem a condução da história.
O cinema industrial e a cultura mainstream podam as imagens circulantes. O mesmo ocorre com os corpos lésbicos. A maioria das personagens presentes nos filmes correspondem a mulheres brancas, pertencentes a uma classe média ou média-alta. Além disso, há pouca representatividade das “caminhoneiras”. Para Ann, a lésbica é colocada sob a ótica heteronormativa nas produções e, quando isso ocorre, o desejo feminino é suprimido, de forma que ela se torna uma representação sexualizada.
“Por que não mudar o nome para Cine Homoafetivo?”
Por que é relevante que um cineclube que fale de vivências lésbicas não se contente a chamar-se “Cine Homoafetivo”? A resposta está justamente no apagamento lésbico da cena cinéfila. Aline Assis e Nayla Guerra são estudantes do curso de Audiovisual e membras do Cine Sapatão, cineclube fundado em 2017 focado no protagonismo de lésbicas no audiovisual. Nayla comenta que no início do projeto era mais difícil achar filmes nacionais feitos por lésbicas e, inclusive, menciona o esforço feito pelas fundadoras do projeto em traduzir e legendar muitos filmes, que não são amplamente difundidos no país.
Nayla adiciona que a partir de 2017 surgiram diversos curtas-metragens e maior diversidade. A preocupação do grupo passa muito por mostrar a interseccionalidade, exibindo mulheres negras, gordas e mais velhas nos filmes selecionados. Aline ressalta que essa é a relevância para o Cine Sapatão, principalmente ao chamar para os eventos do clube as realizadoras dos filmes. O Cine Sapatão tem atualmente uma parceria com o Centro Cultural São Paulo (CCSP), localizado próximo à estação de metrô Vergueiro.
Nayla e Aline comentam que participantes externos do evento — que não fazem parte do cineclube — já se mostraram incomodados com o nome do grupo, uma das sugestões foi “Cine Homoafetivo”. De forma geral, elas afirmam que o tema da lesbiandade é evitado em ambientes cinéfilos e acadêmicos: “Dá pra notar que ainda há muitos preconceitos, mas como o preconceito não é ‘cool’, as pessoas simplesmente não falam”, comenta Aline. s membras salientam a importância do Cine Sapatão como um lugar de encontro para falar das vivências. Mas também afirmam que há também eventuais situações de incômodo entre o público majoritário que frequenta o clube e que se referem ao outro recorte do encontro. Um exemplo disso é o incômodo de feministas radicais com o recorte de transexualidade levado em algum dos eventos.
No entanto, fora esses exemplos de incômodos dentro da comunidade — às vezes nem tão comunal — estão algumas ocorrências absurdas, novamente comuns entre o público externo. Em uma exibição presencial do clube em fevereiro de 2020 no CCSP o público da sessão tinha muitos homens héteros, muito diferente daquele que geralmente frequenta o clube. Os filmes da cineasta Carla Miguelote, escolhidos para o evento da ocasião, tratam o tema do prazer lésbico de forma muito explícita, segundo Nayla.
O evento foi marcado pela ocorrência de um homem se masturbando no meio da sessão de um dos filmes. Além disso, as membras relatam que muitos espectadores homens gritavam coisas como: “ah, é assim mesmo”, ou “mas essa parte não é dessa forma”. Como se eles entendessem, em alguma medida, mais do que a idealizadora do filme e estivessem em posição de intervir dessa forma na sessão.
Elas relatam um ataque virtual mais recente, em que um candidato a vereador chamado Edson Salomão produziu um vídeo em julho de 2020 chamado “17/07 | Boletim Diário | Cine Sapatão”. No vídeo, o político usa o clube como um exemplo negativo de uso do espaço público cultural.
Lésbicas fantásticas e onde habitam
Como dito anteriormente, as lésbicas têm aparecido mais nos filmes das últimas décadas. E cabe destrinchar um pouco mais sobre como elas e suas subjetividades foram tratadas nos filmes.
Lançado em 2020, o filme Alguém Avisa? (Happiest Season, 2020) é estrelado por Kristen Stewart e Mackenzie Davis — atriz conhecida pela sua atuação no episódio “San Junipero”, da série Black Mirror da Netflix — e fala do tema de saída do armário. Apesar da temática clássica em filmes LGBTQI+, o longa se torna um pouco mais original por abordar o tema dentro de um filme de comédia romântica. Apesar de tentar se reinventar, o filme não discute a lesbiandade, e o casal não tem a química necessária para trazer uma atmosfera intimista.
Outro filme que busca explorar mais o cotidiano das lésbicas é a comédia O Par Perfeito (Go Fish, 1994). A preciosidade do filme está em simplesmente mostrar as dinâmicas que ocorrem em um círculo de amizades e de convivência lésbica, algo pouco observado nas demais obras.
Outro trunfo é também o de mostrar uma variedade maior de corpos. Há um relacionamento birracial entre uma mulher lésbica latina e uma mulher lésbica negra, há uma maior representação das butch, além de uma cena interessantíssima mostrando um “tribunal lésbico”, que expõe um lado às vezes pouco acolhedor dentro da comunidade. Localizada à parte da trama, a cena serve para mostrar uma situação de invalidação da lésbica quando uma personagem que se afirma lésbica beija um homem.
O longa Nunca Fui Santa (But I’m a Cheerleader, 1999) trata de uma clínica de cura gay. A escolha do filme em utilizar-se da comédia, para mostrar justamente o absurdo da proposta de uma instalação como essa, torna Nunca Fui Santa um filme memorável, cheio de exageros com cores e até mesmo na atuação de muitas personagens. Além do mais, é sempre um prazer assistir Natasha Lyonne (Orange is The New Black) em cena, e também por se tratar de um filme com um final feliz, raro entre muitos filmes lésbicos.
A questão da interseccionalidade é uma questão séria dentro da representatividade lésbica no cinema. Muitos filmes como High Art: Retratos Sublimes (1999), Azul é A Cor Mais Quente (La vie d’Adèle, 2013) e tantos outros retratam um recorte muito específico de corpos lésbicos. Muitos filmes focam em lésbicas brancas, magras e de classe média ou alta. Filmes como O Par Perfeito, The Watermelon Woman (1996) e As Boas Maneiras (2017) trazem maior diversidade e espaços para corpos e expressões lésbicas reais.
The Watermelon Woman é um dos melhores filmes que tratam da temática lésbica. O filme é uma obra híbrida entre o ficcional e o documental. O longa tem como protagonista a também diretora do filme, Cheryl Dunie, e mostra a sua jornada para descobrir mais da vida da artista Watermelon Woman, uma atriz lésbica negra relevante nos anos 1920 e 1930. O filme deixa claro a disparidade e o apagamento racial na busca ativa de Cheryl por reconstituir a vida da atriz Fae Richards e todas as dificuldades envolvidas no processo, pela falta de registros.
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Cheryl Dunye nos bastidores de Lovecraft Country, série na qual dirigiu o episódio “Strange Case”
Além de As Boas Maneiras se tratar de um filme brasileiro, a obra de Marco Dutra e Juliana Rojas traz para o protagonismo do longa uma mulher negra, Clara. Muito além do que é mostrado em seu material de divulgação, As Boas Maneiras surpreende o público positivamente ao se revelar um filme sobre uma mãe negra lésbica solteira. Muito da beleza do filme está na proteção de Clara com seu filho Joel. O menino pode ser entendido como uma metáfora daquilo que é considerado queer em seu sentido ampliado: aquilo que é estranho e não aceito.
O francês Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu, 2019) se tornou muito marcante pela forma como fala sobre a história de amor entre Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse (Adèle Haenel). O filme subverte a relação artista-musa e cria uma atmosfera de mistério e desejo crescente entre as duas personagens. Nessa dinâmica, Marianne não é a artista ativa e Heloïse a musa passiva, ambas se observam e constroem uma relação igual e cercada de simbolismos de desejo. Não há palavras que descrevam.
Azul é a Cor Mais Quente
Esse filme merece um espaço separado, não por haver um apreço por ele, mas não tem como negar sua relevância. Azul é a Cor Mais Quente é sem dúvidas o filme mais relevante de bilheteria da história do cinema lésbico. Além de vencedor da Palma de Ouro de 2013, o filme foi um sucesso de bilheteria e um dos mais debatidos daquele ano.
O filme é visto por muitos da academia como uma colocação de “pornografia mainstream”, fixada no olhar masculino sobre o sexo e o desejo lésbico. A teórica de cinema Linda Willians fala amplamente em seus artigos do tema sobre como a visão conservadora do cinema estadunidense influencia nosso olhar sobre o sexo. A autora pontua que estamos acostumados a uma ótica hollywoodiana que permite cenas de sexo até um certo ponto, e que essa questão não se mostra como uma problemática no cinema francês.
No entanto, essa afirmação desconsidera as reclamações feitas pelas atrizes sobre o comportamento do diretor Abdellatif Kechiche. Ele apresentou comportamentos abusivos durante as filmagens das cenas de sexo. Inclusive, Azul é a Cor Mais quente é conhecido por sua famosa cena de sexo de 7 minutos. De acordo com as atrizes, essa cena demorou três dias para ser feita, dada a insistência do diretor.
Em 2019, o diretor retornou para o Festival de Cannes, agora com o filme Mektoub, Mon Amour. O novo filme do diretor dispõe de uma cena de 12 minutos de sexo oral, agora com um casal heterossexual. No entanto, mesmo se tratando de uma cena de sexo heterossexual, o diretor foi criticado intensamente pela forma como expôs o corpo feminino na cena.
Talvez a maior questão com o filme não seja as cenas de sexo explícitas, pois esse deve ser considerado como uma forma legítima de expressão daqueles corpos. Mas as reclamações das atrizes acerca do comportamento do diretor não devem ser deixadas de lado, como foram por Linda em um de seus artigos.
A discussão sobre lugar de fala e o entendimento das próprias limitações de alguém que não ocupa esse lugar estar liderando a produção de um filme tornam-se essenciais. Nayla destaca que há de se diferenciar a autorrepresentação da representação feita pelo outro. Para exemplificar seu pensamento, ela destaca o filme lésbico nacional Como Esquecer (2010), dirigido por uma mulher, Malu de Martino, mas que não deixa de ter uma representação problemática por isso. “Em algumas situações, uma mulher hétero não necessariamente entende mais da comunidade lésbica do que um cara. Isso porque não necessariamente um filme lésbico dirigido por uma mulher exibe uma autorrepresentação”.
Nayla observa que há, em alguns momentos, questões mais problemáticas do que um filme dirigido por um homem, e que não necessariamente se deve supor um pensamento coletivo das lésbicas no apontamento de um filme. “Tratar as lésbicas como um grupo homogêneo é uma visão muito redutora”, comenta Nayla ao falar sobre discordâncias internas entre filmes como, por exemplo, Azul é A Cor Mais Quente.
“Quando vi o filme pela primeira vez, lembro de ter sentido muito prazer. E na época ainda não me identificava como lésbica”. Anos mais tarde, já se identificando como uma mulher que se sentia atraída por mulheres, ela reassistiu ao filme e afirma que sentiu prazer novamente. No entanto, atualmente, enquanto estudante de audiovisual e com uma bagagem maior sobre as representações de corpos no cinema, ela afirma não ter certeza se sentiria prazer em assistir ao filme: “Eu olho Azul hoje e enxergo que ele é muito problemático”.
Já Aline comenta que teve uma experiência bem diferente com o filme: “Quando vi o filme e identifiquei que aqueles corpos eram objetificados, não tive nenhum prazer”. Inclusive, a membra ressalta o “deserviço” do filme. Quando o assistiu, pensou que as cenas entre elas eram violentas e, por isso, até considerava que não gostava de mulheres.
Sobre isso, Aline comenta também sobre produtos audiovisuais problemáticos e tecnicamente ruins que são exaltados por simplesmente mostrar a temática lésbica. Ela diz que isso ocorre muito porque esse público carece de produtos que contenham o mínimo de representatividade. Na questão de representação e do lugar de fala, Aline pontua um problema mais amplo quanto à objetificação da mulher. Para ela, o problema maior está na forma como realizadores representam mulheres, e não necessariamente na forma como realizadores mostram mulheres lésbicas, apesar da questão LGBTQI+ ter particularidades no problema da representação.
“O filme é problemático sim, mas não podemos tratá-lo como um caso individual”. Ao dizer isso, Nayla se refere a uma atenção até excessiva dos problemas de Azul é A Cor Mais Quente quando, na verdade, muitos de seus problemas constituem “a regra” da indústria cinematográfica, como a questão abusiva no set de filmagem e representações corporais problemáticas.
A relevância do cinema nacional, o circuito pirata e alternativo lésbico
Aline e Nayla comentam sobre ter a oportunidade de divulgar filmes e realizadoras brasileiras no cineclube, tanto que boa parte da programação do clube em 2020 não teve filmes internacionais. As membras reconhecem que muitas vezes o filme selecionado pela curadoria não é o mais brilhante tecnicamente — aspecto diretamente relacionado ao orçamento escasso de muitas das produções. A equipe reconhece a proximidade das discussões dos filmes selecionados com a realidade brasileira e que muitas vezes são utilizados como pontes para tratar de grandes temas.
“É só o que há no momento. É tudo, na verdade.”, comenta Nayla sobre o impacto do circuito alternativo na produção lésbica. Aline destaca o valor dessas produções na formação e consolidação de um círculo lésbico. Tais exibições permitem maior projeção a filmes que não possuem o devido reconhecimento, principalmente quando comparados aos filmes produzidos pela Globo, e com os quais apresentam divergências estéticas.
Atualmente a produção nacional lésbica é muito presente e se dá a partir de curtas-metragens independentes e de baixo orçamento, muitas vezes com as atrizes correspondendo às próprias realizadoras. Aline reforça o quanto se deve fortalecer esse circuito, uma vez que ele será, futuramente, o principal responsável pela produção de longa-metragens com lésbicas protagonistas atrás da câmera.
As membras destacam que, mesmo entre as produções de ampla circulação, o tema da lesbiandade em si não é muito discutido nos espaços de festivais. Em um dos eventos de 2020, chamado “Lesbianidade e Arte”, o Cine Sapatão exibiu o filme QUEBRAMAR (2019), que circulou por importantes festivais nacionais, como o Festival de Tiradentes e no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte. No evento do clube, a diretora do filme, Cris Lyra, comentou que aquela fora a primeira vez que o filme foi exibido em um espaço para lésbicas e que a temática do filme foi explorada.
Fica aqui uma autocrítica para a necessidade de apreciação de um circuito que nos mantém vivas e que acredito que muitas de nós não sabe da própria existência.
*Imagem da capa: Reprodução/ documentário Dyketactis de Barbara Hammer