Com ouro e prata nos dentes, Raffa Moreira comemora a primeira vez que ganhou 10K em um mês por conta própria. Jé Santiago, com “Juliet, Oakley, Michael Kors” e sua “nave sem o teto”, corre contra o tempo atrás do Diñero. A carioca Ebony também ostenta seu kit: “Nike, Supreme, Adidas e Fila”. Versace ela não tem, “mas já está na list”. As músicas citadas fazem parte de um universo em expansão pelo Brasil e pelo mundo, um estilo musical cru e transformador da realidade social para muitas pessoas. Frequentemente comparado ao funk, devido às similaridades entre suas origens, e ao rock, pelo domínio comercial dentro da indústria da música, o trap veio para ocupar seu próprio espaço e tomar seus rumos de forma independente.
O trap é um subgênero do rap marcado pelo uso de sintetizadores e graves pesados nas batidas acompanhados por um timbre mais melódico das rimas com auto-tune; uma fusão do hip-hop com a música eletrônica. Ganhou popularidade nos anos 2000 em Atlanta, capital do estado da Geórgia nos Estados Unidos, e seu nome faz referência às casas utilizadas por traficantes para vender drogas, as chamadas traps.
O gênero se manteve no cenário underground nos primeiros anos, mas aos poucos conquistou mais espaço e se tornou um dos estilos musicais mais conhecidos e influentes da indústria fonográfica estadunidense. Rappers como Travis Scott, Lil Uzi Vert e a dupla Rae Sremmurd se estabeleceram nas paradas de sucesso do país com o estilo, enquanto artistas pop como Ariana Grande, Beyoncé e até mesmo Taylor Swift também incorporaram elementos de trap em algumas de suas músicas. No Brasil, de acordo com dados do Spotify, o consumo do gênero teve em média um aumento de 61% a cada ano entre 2016 e 2019. No YouTube, os clipes dos maiores trappers nacionais acumulam milhões de visualizações.
Muito mais do que apenas sexo, drogas, dinheiro e crime, o trap é uma celebração da melhoria de vida para pessoas periféricas através da fama e um grito de indignação contra o racismo e a desigualdade social. Essas características são atrativas principalmente para um público jovem que se identifica com as letras diretas e a cultura em volta do gênero. Por esse motivo, o ritmo é presença confirmada nos fones de ouvido e nas caixas e mesas de som das periferias.
A história do gênero
A cidade de Atlanta é o berço do trap. Desde os anos 1990, alguns produtores e rappers locais já exploravam alguns de seus sons característicos. A dupla UGK fez sucesso com Pocket Full of Stones e Cocaine in the Back of the Ride, faixas que contam com o uso de bateria sintetizada, e Master P incluiu sons eletrônicos em Mr. Ice Cream Man. Durante os anos 2000, o gênero chegou ao mainstream através de rappers do sul dos EUA que o incorporaram em suas produções, como Gucci Mane — que teve sua estreia com o álbum Trap House —, T.I., Lil Wayne e Rick Ross.
Na última década, o trap se manteve presente de maneira quase ininterrupta nas paradas de sucesso dos EUA, especialmente entre as dez músicas mais vendidas na Billboard Hot 100. Em 2013, o DJ Baauer emplacou a faixa Harlem Shake em primeiro lugar após a música viralizar nas redes sociais. Ainda que com uma roupagem mais próxima da música eletrônica, ela foi responsável por levar o trap ao conhecimento de um público mais voltado ao pop. Sicko Mode, de Travis Scott; Bad and Boujee, do grupo Migos com Lil Uzi Vert; e Rockstar, de Post Malone com 21 Savage, são algumas das músicas que repetiram esse feito.
No Brasil, o lugar de origem do trap é alvo de disputa. Guarulhos, o principal cenário do gênero no estado de São Paulo, foi onde Raffa Moreira e Klyn surgiram e ganharam reconhecimento através de faixas como Fiat 1995, parceria entre os dois trappers e Dreyhan, lançada em 2015. Em paralelo, a cidade de Vitória, no Espírito Santo, sediou as festas organizadas desde 2013 pelo coletivo Red Room, composto pelos artistas Naio Rezende, Luanna, WC, NOX Cachorro Magro e outros associados. O baiano Baco Exu do Blues e o pernambucano Diomedes Chinaski também utilizaram o estilo para exaltar os rappers nordestinos na polêmica Sulicídio, lançada em 2016.
Nos últimos anos, o gênero ganhou hits como Bro, de Raffa Moreira, e Kenny G, do cearense Matuê. O coletivo paulistano Recayd Mob se consolidou com a faixa Plaqtudum, de 2018, cujo clipe conta com mais de 100 milhões de visualizações no YouTube.

A produção independente
Não só o trap é consumido por refletir as vivências dentro das periferias, como também é referência para quem está no começo de uma carreira musical, seja através da produção ou das rimas. O ritmo cada vez mais se mostra como uma opção para quem não conta com instrumentos e outros equipamentos necessários para as gravações. Os programas de edição de áudio, aplicativos de alteração de voz e tutoriais disponíveis na internet auxiliam pequenos produtores e artistas a conseguirem fazer um som de qualidade dentro das limitações técnicas.
Ebony é um grande exemplo disso. Influenciada pelo grupo estadunidense Migos, começou a brincar com um aplicativo de alteração de voz para enviar a seus amigos, que apontaram seu potencial e a incentivaram a investir nas rimas. “Eu acho que não é exclusivo do trap, qualquer pessoa que quer algo busca fazer da forma que dá. Eu queria fazer música e fiz”, ela conta.
Em Poá, município da zona leste da Grande São Paulo, a cena cultural independente movimenta a região do Alto Tietê. O coletivo Unknown Weird Kids e a festa Instância Cabulosa reúnem jovens de todos os estilos no consumo e criação de arte. O produtor e DJ GR?G é um deles. Ele, que tem como referências no trap nomes como Astroboy Cold, Lil Uzi Vert, Derek, Princess Nokia e Rico Nasty, começou a postar seus beats no serviço de streaming Soundcloud, que considera ser o berço para artistas independentes underground. Além do trap, explora outros gêneros como funk, house, techno e pop em suas criações por se importar mais com o processo de produção do que com o estilo musical definido:

“Eu sempre pensei em produzir rap. Desde pivete ouvia bastante, mas eu achava que precisava de vários equipamentos, que precisava manjar de várias coisas de música, e meio que deixei isso de lado. O meu primeiro contato com produção musical foi no começo de 2018. Comecei querendo fazer alguns lo-fis com samples de MPB, alguns cloud raps, e a partir de então foi um momento em que eu tinha certeza que só precisava de um notebook e ideias. O que me atrai é entender desde a concepção da música até todo o universo acerca do objeto artístico, quais sonoridades, sentimentos e ritmos serão criados”.
Em Guarulhos, o trap influenciou as primeiras criações de Thiago, conhecido como Kunde. Aos dezesseis anos, ele gravou a música Te Querer Bem com sua amiga Laura para um show de talentos de sua escola. Um vídeo da apresentação dos dois fez sucesso no Twitter e chamou a atenção da Damn Producers, uma produtora independente, que convidou os dois para gravar a música e seu clipe.
Seu pai conquistou quatro vezes o Campeonato Mundial de Capoeira e possui uma fábrica de instrumentos afro-brasileiros. Isso influenciou a musicalidade de Kunde e o fez ter como referências os ritmos samba de roda, jongo, tambor de crioula, frevo, blues e jazz, além do próprio trap.
Atualmente, Thiago estuda na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e trabalha no Ministério Público de São Paulo. Ele conta que decidiu dar uma pausa na música e entrar em uma instituição estatal para levar os aprendizados adquiridos para suas próximas produções, que visam ser mais politizadas. “A música, para mim, é um instrumento no qual eu posso mostrar para as pessoas tanto críticas quanto propostas de mudança do sistema econômico, político e cultural no qual a gente vive”, afirma.
GR?G afirma que, para contornar essa dificuldade, foi necessário ser autodidata. Começou a produzir apenas com um notebook e um fone de ouvido e aprendia técnicas de gravação e edição com tutoriais no YouTube.
A conexão com a periferia
GR?G acompanhou o crescimento do trap no Brasil e enxerga semelhanças dele com o funk em relação ao sucesso do gênero nas periferias: “Acho que a identificação acontece porque o trap, assim como o funk, dialoga com coisas que jovens periféricos lidam, tipo crime, drogas, dinheiro, festa, superação, etc. Mas principalmente porque agora temos vários exemplos de artistas da quebrada que eram underground e conseguiram crescer na música, tipo Raffa Moreira e MC Caveirinha”.
“A conexão com o trap veio principalmente por escrachar uma realidade que é muito incômoda à classe média e à elite brasileira, que apontam as periferias como algo violento e como um problema. E os trappers começam a expor isso de uma forma que mostra que, na verdade, quem deu causa a todas essas problemáticas são as próprias pessoas que estão apontando o dedo”, comenta Kunde.
O crescimento do gênero também abriu margem para discussões. Alguns admiradores do rap tradicional se mostram relutantes com as letras ostentadoras e as atuais sonoridades em destaque, enquanto quem acompanha o novo estilo desde sua origem critica a ascensão e o protagonismo de artistas não-periféricos. “Eu acredito que, hoje, o trap tenha muito mais amplitude por ter sido capturado por um consumo de massa que não necessariamente cumpre com aquela primeira proposta de falar sobre a favela, de expor essa realidade”, afirma Kunde.
Seja como instrumento de ascensão social ou de politização, o trap é diariamente utilizado para alimentar sonhos e esperanças daqueles que com frequência são incentivados ou até obrigados a abandoná-los. É um ritmo que expõe a realidade tal como ela é, sem filtros ou eufemismos e sem medo de incomodar. Um legado de autoafirmação das novas gerações que abriu caminho para que mais jovens possam explorar suas potências. Sobre suas perspectivas para o futuro, GR?G afirma: “A meta é viver de música. Fazer dinheiro, ter meu estúdio, produzir e dar voz a mais artistas da quebrada”.