O mercado brasileiro da dublagem sempre foi referência para o resto do mundo. Com grandes nomes no ramo, o país possui uma grande capacidade de conquistar o público do cinema pela identificação do espectador com uma obra estrangeira. Essa técnica de comoção do indivíduo com um produto feito a centenas de quilômetros de distância é chamada de adaptação.
Diferentes contextos e barreiras culturais significativas atrapalham a compreensão total de uma obra. Poucos seriam os brasileiros que entenderiam um trocadilho alemão, um ditado polonês ou uma expressão idiomática única da Coreia do Sul, por exemplo.
Por isso, o processo de adaptação depende da participação de tradutores especializados, agentes das produtoras, grupos de dublagem, revisores e, às vezes, adaptadores destinados à obra. A complexidade da versão brasileira exige um estudo aprofundado, aliado com a colaboração de pessoas de fora do processo de produção, como linguistas e estrangeiros, a depender da obra e de sua origem.
Como começa uma adaptação
O processo de culturalizar as obras audiovisuais se inicia com o contato de uma empresa produtora com um tradutor. A função deste é pegar o roteiro original da obra e transcrever com as alterações necessárias.
Um ou mais profissionais conhecedores das duas línguas em questão, o português e a da obra original, são contratados para iniciar um roteiro que será levado aos dubladores. Este roteiro também pode ser usado para outras etapas da versão brasileira, como na legendagem, em closed caption – a “legenda oculta”, recurso de acessibilidade para deficientes visuais – ou na audiodescrição de um filme.
Dilma Machado, tradutora e dubladora há anos, se dedica atualmente a espalhar o prestígio das adaptações brasileiras. Ela já trabalhou na tradução de grandes obras como Sin City: a Cidade do Pecado (Sin City, 2005) e Joy: O Nome do Sucesso (Joy, 2015). Dilma é a fundadora da ESTRADA (Escola de Tradução Audiovisual), e conversou com a Jornalismo Júnior sobre o trabalho do profissional da linguagem no cinema.
Tradutor, o primeiro filtro
A tradutora afirma que, para uma maior fidelidade na tradução, é necessário considerar o QOQ – quem, onde e quando. Uma grande pesquisa e, a depender da obra, uma verdadeira escavação histórica são necessárias para que o processo seja bem-feito.
É preciso saber quem fala, pois é possível que no português haja variações pela emoção ou trajetória de vida da pessoa; o onde também deve ser analisado, para que certo personagem tenha tal postura, sotaque ou dialeto; e por fim o quando, já que a variação linguística de obras de época também precisa constar no roteiro.
Dilma resume as nuances do processo: “Traduzir é uma coisa, adaptar é outra.” Uma passagem linguística literal se constitui como uma simples tradução, que não considera os elementos nacionais e internacionais, o contexto e outros aspectos. Mas a adaptação em si surge como uma técnica complexa, que tenta enquadrar o filme em um contexto que originalmente não é dele.
Em busca do roteiro neutro
Com a expansão meteórica do cinema no Brasil, se tornou cada vez mais necessário encontrar formas de comover igualmente diferentes pessoas de um país de dimensões continentais. Dilma cunha esse projeto como linguagem neutra.
A tradutora afirma que “não adianta pegar uma piada em inglês e traduzir ao pé da letra.” O tradutor seleciona formas de recriar o roteiro original, sem afetar a intensidade da cena para o público nacional.
Dilma completa que uma grande dificuldade na adaptação é a transmissão do humor. Geralmente, obras de comédia possuem um agregado de piadas autóctones – compreendidas somente no local de origem. Trocadilhos, ditados e expressões idiomáticas complicam enormemente o trabalho do tradutor.
Títulos nada a ver… Culpa de quem?
Outro filtro na adaptação está nas próprias produtoras: as centrais de marketing e vendas. As grandes empresas dos filmes também influenciam na tradução para tentar manter os moldes originais do filme, como a manutenção de termos, gírias ou formas de expressão características do local de origem do filme, ou conseguir maiores arrecadações e contato com o público alvo.
A chamada “Carta Criativa” é enviada para os linguistas antes do início dos trabalhos. Nela, segundo Dilma, contém as vontades da produtora de modificar ou não certas falas. Certas piadas ou nomes devem permanecer intactos e, com o tempo, a manutenção da originalidade é mais privilegiada em grandes blockbusters.
Isso pode às vezes causar certo estranhamento: nomes incomuns de instituições, instrumentos ou outros exemplos, que não existem no Brasil ou não possuem tradução direta podem passar para a tradução. E, em grande parte das vezes, isso decorre da pressão da empresa no processo do criador.
O mesmo acontece com os títulos de filmes, que não são traduzidos de maneira direta e, muitas vezes, são escolhidos pela própria empresa. Obras como Divertidamente (Inside Out, 2015), Viva: A Vida É uma Festa (Coco, 2017) ou até O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972) possuem seus títulos predeterminados antes do toque do tradutor, que geralmente pouco influencia nessa parte.
Do tradutor ao dublador
Além da presença da empresa produtora, outros profissionais podem causar alterações no roteiro. Normalmente, um revisor de texto está presente para pequenas alterações. Ele possui o trabalho de consertar pequenos erros ou desvios de tradução para a entrega definitiva da obra.
Há também um trabalhador que, segundo Dilma, ainda não se tornou popular no Brasil: o adaptador. Os grandes centros de dublagem europeus utilizam um terceiro elemento, uma pessoa conhecedora da cultura local que adapta o roteiro mais fortemente que o próprio tradutor, o qual, nesses casos, tenta ser mais literal na hora da criação. No caso nacional, o tradutor costuma desempenhar a função desses outros dois profissionais de maneira independente.
Além disso, é necessário levar o roteiro para a empresa produtora realizar o aval e modificar o texto. A tradutora afirma que “pode haver coisas que escapem à Carta Criativa ou não satisfaçam os gostos do cliente [da produtora]”, que podem ser modificadas antes da finalização do projeto.
Dublador, o tecelão das barreiras
Até aqui, o roteiro já sofreu grandes alterações, e no estúdio de dublagem ele é revolucionado novamente. Sobre essa etapa, a dubladora e estudiosa da área, Mabel Cézar, explica.
Atuante em grandes dublagens como Jessie da quadrilogia Toy Story e a princesa Leia da saga Star Wars, além de aparecer como a primeira voz feminina a ser locutora na televisão aberta do Brasil, Mabel conversou com a Jornalismo Júnior sobre as etapas e os desafios da sua profissão.
De acordo com a dubladora, esse roteiro, quando cai na mão do grupo de dubladores, precisa passar por um filtro próprio. Essas novas modificações são necessárias tanto para enquadrar no lip-syncing – os movimentos dos lábios, que podem variar com cada língua – ou na própria dramatização da cena.
O ator das vozes
Mabel reforça o destaque dramático do dublador. Desde a escolha de determinada palavra até a própria pronúncia, o dublador sai de um trabalhador coadjuvante para se integrar à obra produzida.
Esse aspecto pode ser percebido na dificuldade de dissociação de alguns personagens à sua voz dublada. Não é incomum encontrar algum apreciador de filmes que, sem saber a composição da equipe de dubladores de uma obra, relaciona com outra produção de um mesmo ator de voz.
Isso é um grande exemplo do êxito da adaptação da obra para o português brasileiro, já que, com a quebra da barreira linguística, há uma aproximação afetiva muito mais acentuada do público com determinado personagem.
Para que esse estágio de aproximação seja alcançado, é exigido do dublador um conhecimento de maneiras de interpretação e adaptação avançados, que não são encontrados no mercado do audiovisual com tanta facilidade. Assim como o tradutor – muitas vezes inclusive trabalhando juntos –, o dublador também precisa de uma carga cultural fora do comum.
As técnicas da produção
O conhecimento gramatical da língua que está trabalhando é vital para um trabalho bem-feito. Para que haja a correlação das sentenças até para os termos que possuem pronúncias semelhantes na tradução – como, em português, chocolate, e em inglês, chocolate –, é necessário saber o tempo de duração de cada frase.
Às vezes pode haver a inversão dos termos de uma sentença, a troca por sinônimos, o apagamento total de uma palavra ou a alocação de novos elementos… Tudo para definir uma única fala! Como diz Mabel, “só quem trabalha entende as dificuldades e as genialidades que nós precisamos criar para dar conta de tanta labial [movimentação dos lábios durante a pronúncia] e a imensa variedade cultural.”
Isso, segundo a dubladora, projetou uma melhora da visão do profissional da dublagem dentro do mercado cultural. “Quando eu falava que eu era dubladora, o que eu ouvia era um menosprezo; com o decorrer dos anos, a conversa era completamente outra”, diz. “A classe artística e o povo brasileiro ovaciona a dublagem”, completa.
As dificuldades do Star Casting
A alta complexidade técnica que é exigida de um dublador não é facilmente replicada. E isso fica visível com a moda do Star Casting, quando a produtora escolhe um famoso fora do universo da dublagem para o elenco de dubladores.
Momentos como a dublagem do apresentador de televisão Luciano Hulk no filme Enrolados (Tangled, 2010) ou a escolha da equipe do antigo programa Pânico na TV para dublar a animação Asterix e os Vikings (Astérix et les vikings, 2006) causaram um desconforto para o público. Esse sentimento se deve pela falta de conhecimentos técnicos das estrelas selecionadas.
“Eu entendo uma empresa colocar algum famoso para estrelar numa dublagem, isso poderia alavancar as arrecadações. Mas nem sempre você consegue o melhor trabalho quando chama alguém de fora do ramo da dublagem”
– Mabel Cézar
Hoje em dia, com a vasta gama de cursos de tradutores e dubladores para o cinema, é possível encontrar diversos trabalhadores habilidosos e aptos para o trabalho. Essas pessoas, como reforça Mabel, estudaram e “deram o seu sangue para estarem nesse meio”.
A opção pelo Star Casting é um fenômeno da divisão do marketing, e não uma escolha técnica. No entanto, existem casos onde o famoso selecionado elaborou ótimas performances. A dublagem de Leandro Hassum como o ranzinza Gru da trilogia Meu Malvado Favorito (Despicable Me, 2010) e a de Chico Anysio como o velhinho Fredericksen de Up: Altas Aventuras (Up, 2009) demonstram como é possível um Star Casting bem elaborado.
Por que precisamos defender os nossos tradutores e dubladores?
Se você vive nas grandes cidades brasileiras, já deve ter ouvido pessoas criticando o trabalho da dublagem. Às vezes, há alguém que fala que a dublagem mata os conceitos da obra original, ou que as discrepâncias de adaptação distorcem o entendimento completo.
O consumo da dublagem no Brasil desmente essas criações. Segundo dados da pesquisa do British Council de 2013, apenas 5% dos brasileiros dominam a língua inglesa. Para outras línguas, esse índice é ainda menor. Ou seja, a forma mais fácil de acesso a diferentes obras por praticamente toda a população é pela dublagem.
E não só isso: as defasagens na educação e a posição brasileira como país receptor de produtos culturais, bem como as barreiras culturais naturais entre cada povo, proporcionam uma dificuldade de abrangência das obras.
Nessas linhas se esconde o poder da adaptação: a aproximação do mundo e das artes para o brasileiro. Nesse ponto, tanto Dilma quanto Mabel concordam em afirmar: a capacidade democrática da tradução e da dublagem transcendem as diferenças internacionais e geram conteúdos de extrema qualidade no mercado nacional.
Existem, de fato, adaptações que não garantem sucesso. Existem também grandes obras que só deram certo no Brasil por conta da sua adaptação. Mas o mais correto a se dizer é que o cinema não seria a arte que é hoje nos corações brasileiros sem o toque e a magia dos profissionais da dublagem. Como afirmou Mabel, “quando você está vendo algo dublado e nem percebe, isso se conecta com você, isso conversa com você”.