Os mistérios em torno da vida após a morte tornam a experiência de quase morte (EQM) um assunto fascinante e recorrente tanto no meio informativo quanto no cultural. Seja em programas jornalísticos, como o tenebroso Linha Direta, em séries de entretenimento, como a recente The OA, ou em filmes, a EQM quase sempre nos instiga e nos prende. Quase. Não é o caso de Além da Morte (Flatliners, 2017).
Refilmagem do homônimo de 1990, a história mostra 5 jovens estudantes de medicina que decidem realizar um experimento contínuo: eles têm seus corações parados por alguns minutos e são trazidos de volta. Conforme os personagens morrem e retornam à vida, habilidades como a memória, a intuição e a autoconfiança vão se fortalecendo de acordo com a personalidade de cada um e as sensações deles se tornam afloradas, como se fossem criaturas de outro mundo. No entanto, como diria Rumpletiltiskin, de Once Upon a Time (2011-), “toda magia tem um preço”. Junto com essas delícias, as novas aptidões e percepções de mundo, são desenterrados traumas do passado e somos apresentados a pecados e culpas, que passam a perseguí-los até os levar ao limite da razão.
No ponto de partida e central da trama, temos Courtney (Ellen Page), que logo nas cenas iniciais tem sua angústia revelada: a perda da irmã mais nova em um acidente de carro quando ela estava atrás do volante. Aqui temos uma protagonista muito diferente do sarcástico e amargo Nelson (Kiefer Sutherland), que se eternizou ao distorcer a frase pertencente aos guerreiros Sioux, também citada em outros filmes e livros: “Hoje é um bom dia para morrer”.
Como o passado dela é exibido de uma maneira clara, antes que o gatilho das experiências “em nome da ciência” pudesse ser acionado, sabemos desde o princípio a verdadeira intenção de Courtney. Não é ambição, nem curiosidade. Ao contrário do que acontece com os outros personagens, o trauma dela está em mente antes, sendo também a própria motivação para iniciar a jornada. Tanto que ao voltar de sua morte quase mágica, ela demonstra insatisfação por não ter encontrado a irmã do outro lado.
No entanto, por mais que as justificativas, tanto da precursora da ideia quanto de quem a abraçou, sejam apenas pretextos egoístas, são pretextos que poderiam — e deveriam — ser muito melhor desenvolvidos. Assim, todo o potencial argumentativo é desperdiçado. Nada ganha profundidade, nada se sustenta ou convence o público: nem a pesquisa médica, nem a “abertura do portal”, nem a relação entre os estudantes perdidos. Eles chegam a mapear as áreas cerebrais de Courtney após seu retorno, mas é um lado rapidamente esquecido. Percebem que estão vivendo algo sobrenatural, mas só exploram isso de um modo passional e nada inovador. Sabemos que são competitivos, não muito próximos, e mesmo assim, se tornam uma espécie de Clube dos Cinco (Breakfast Club, 1985).
Aliás, isso chega a ser um pouco ridículo para um drama de horror que se leva a sério. A conexão estabelecida entre os personagens é muito forçada, não existe química em cena. E seria aceitável se o objetivo fosse justamente o de não criar um laço entre eles. No mínimo, seria justificável, dada a necessidade (não atingida) de tensão. Mas os criadores acharam que era uma boa ideia escrever cenas deles festejando juntos, quebrando paredes, bêbados dentro de um carro como se pertencessem a algum filme adolescente sobre se sentir infinito, se beijando. A presença de uma insossa Nina Dobrev, que pouco se diferencia da mocinha de The Vampire Diaries (2009-17), pode ter auxiliado ainda mais nessa impressão.
Quanto aos enredos e às trajetórias individuais, nos deparamos com uma série de clichês. A moça desesperada, reprimida e pressionada por uma mãe controladora. O galã rico e superficial que transa com quase todo o elenco. O descendente latino inteligente, honesto e misterioso. A garota obcecada por uma carreira de sucesso. A construção dos clichês não seria um problema se o desenrolar fosse interessante e os personagens, cativantes. Não são.
Assim como no original, o ponto alto é a experiência estética. No caso do primeiro, seus efeitos sonoros chegaram a ser indicados ao Oscar. No atual, trata-se de uma concepção mais visual, especialmente no que diz respeito ao fantástico universo pós-morte deles. O de Courtney, por exemplo, é cheio de luzes azuis que representam pura energia. Entretanto, são momentos rápidos e negligenciados. As cenas ilustram bem as características daqueles que as protagonizam e são bem menos conceituais do que as de 1990.
A narrativa é uma mistura desorientada de gêneros. Não faz sentido: o terror não causa o mínimo de aflição e o drama, ainda que seja mais apelativo do que o original, não causa comoção. Só não é possível dizer que o papel do longa não foi cumprido porque simplesmente não é compreensível o que ele busca. Ellen Page até convence o espectador do drama e do terror vivido por Courtney. Aliás, sua atuação é um dos poucos pontos positivos, o que infelizmente não sustenta uma história de quase 2 horas.
A tensão criada é insuficiente e os desenlaces quebram o pouco que existe, o que é bastante decepcionantes para os fãs da atmosfera e da proposta dos filmes de terror. O demônio em Além da Morte, que não é um demônio materializado e sim, uma perseguição de culpas, só queria, afinal, oferecer uma lição de moral aos personagens. Quem diria que bastava um pedido de perdão nem um pouco altruísta para a redenção. A cena que fecha o filme se parece muito mais com o fim de um episódio de Gilmore Girls (2000-07) do que com o de um terror psicológico.
Além da Morte estreia dia 19 de outubro. Assista ao trailer oficial:
por Anny Oliveira
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