Por Lígia de Castro (ligiaadecastro@gmail.com)
Tudo começa em uma terra solitária que só conhece os seus próprios habitantes. Eles são poucos: o pai Silvestre Vitalício, o filho mais novo Mwanito, seu irmão Ntunzi, o militar Zacaria Kalash, e por vezes o tio Aproximado – que aparece para entregar subsistências. O pai Vitalício chamara o lugar de Jerusalém e sempre dizia que Deus apareceria ali, em algum momento próximo, para pedir perdão à humanidade por ter matado o mundo.
Estavam todos sozinhos no meio de uma savana em Moçambique e, segundo Silvestre, aquilo acontecera porque o resto do mundo havia morrido: nada mais existia além daquela terra, nada além daquelas pessoas. O filho mais novo e narrador da história, Mwanito, acreditava de início em suas palavras porque o pai lhe era gentil, e também porque lembrava-se muito pouco de sua outra existência – de quando nascera e vivera na cidade cheia de gente. Ntunzi, o mais velho e mais rebelde, tentava sempre fugir dali e dizer a Mwanito que tudo aquilo não passava de loucura e teimosia – nada mais do que uma incapacidade do pai de aceitar o seu passado doído vivido na cidade.
Com uma linguagem extremamente poética, é por vezes difícil entender o que é realidade e o que é fantasia no livro Antes de Nascer o Mundo (Companhia das Letras, 2016), de Mia Couto. As metáforas são tantas, que o leitor se confunde junto com o próprio narrador Mwanito, que também não sabe no que acreditar. Publicado em 2009 por um dos maiores escritores africanos, o livro é uma viagem pelos pensamentos de um menino doce sempre confundido pelos autoritarismos do pai.
Cheio de reflexões sobre medos, sobre existir e não existir no mundo, sobre sofrer em silêncio e, principalmente, sobre a incapacidade de deixar para trás, Antes de Nascer o Mundo faz nascer no leitor visões inesperadas sobre aquilo que o cerca. É daqueles livros que provocam, que mudam, que ficam. Tudo isso entremeado e alimentado por poemas de grandes autoras como Sophia de Mello Breyner Andersen, Hilda Hilst, Adélia Prado e Alejandra Pizarnik, que se fazem presentes em cada início de capítulo.
É assim que, instigante pela linguagem, pelo mistério dos acontecimentos, e pelas reflexões que leva consigo, Antes de Nascer o Mundo é uma prosa que é poesia por si só. E que, por causa disso, vale toda a pena ser lido.