Arquivo das Crianças Perdidas é um romance de ficção que estava em processo de estudo e produção desde o verão de 2014. Foi publicado apenas em 2019, momento em que veio a calhar em função dos sucessivos discursos anti-imigração proferidos mundialmente pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
O plano de fundo formado pela reflexão acerca da crise humanitária da imigração faz a romancista mexicana, Valeria Luiselli, produzir uma obra que dialoga com muitas fontes literárias, documentais e historiográficas. É de modo consciente que a autora transgride entre ficção e realidade colocando crianças no centro da narrativa.
O livro se inicia com a viagem de carro de uma família, que sai de Nova York para atravessar os EUA até o Arizona, estado que um dia esteve sob a soberania mexicana e agora é fronteira com o país latino. O núcleo familiar é composto por mãe, pai, filho e filha e eles, ao longo de todo percurso, ouvem notícias sobre a política de migração no rádio. Segredos familiares, relacionamentos pessoais, desavenças entre marido e mulher e a inquietude das crianças dentro do carro, juntamente com a procura do pai delas pelos últimos apaches – povo livre do continente americano e motivo da viagem – criam um abismo sem volta.
“Dezenas de crianças transitam de nações caóticas da América Central para os Estados Unidos”. “ […] esse continente entre sessenta mil à noventa mil crianças estrangeiras ilegais que afluíram em massa para os Estados Unidos.”
Já a mãe, jornalista, está cuidando do caso de Manuela, uma mulher que perdeu suas duas filhas – de 8 e 10 anos de idade – na travessia da família latina para o país norte-americano. Valeria enfatiza no livro que, como as duas meninas, as muitas que cruzam a fronteira não são brancas. Grande parte das migrantes são oriundas de cidades violentas e pobres de países como El Salvador, Guatemala e Honduras. Com isso, ela denuncia de forma autêntica o que acontece nas fronteiras dos países.
Denúncia, atualidade, realidade e ficção são peças-chaves para entender a escrita da autora, que compara a situação das meninas com a de dezenas de milhares que estão em centros de detenções norte-americanas. A obra traz essas questões em títulos e subtítulos, como se fossem caixas, imergindo o leitor na narrativa. “Texas, o estado com o maior número de centros de detenção de crianças imigrantes. Milhares delas, trancadas em Galveston, Brownsville, Los Fresnos, El Paso, Nixon, Canutillo, Conroe, Harlingen, Houston e Corpus Christi (…).” – descreve a autora em parte da obra.
O pai das crianças é historiador, e começa a viagem com o objetivo de gravar os sons de dialetos indígenas e pesquisar sobre os apaches, nativos exterminados pelo genocídio colonialista. A todo momento, existe a preocupação dos personagens em armazenar e documentar tudo o que é observado. Esse ponto é importante, visto que, parece que guardar é como se fosse colecionar memórias para que se entenda à construção e à desconstrução da própria história dos povos tradicionais. Valeria demonstra ao longo deste desenvolvimento querer saber como a geração futura vai lidar com todas essas questões.
Os momentos descritos ao longo da narrativa de Arquivo das Crianças Perdidas induzem à reflexão sobre por que a humanidade condenou e condena crianças e adultos ao infortúnio e à divisão em função de arbitrárias divisórias continentais, e a rememorar os últimos povos livre na parte norte da América. A obra de Valeria Luiselli requer uma leitura densa, profunda e cuidadosa, visto que os entrelaços de vida, história e notícias se mesclam do começo ao fim. O tamanho da obra é extensa, mas o conhecimento que ela traz é tão grande quanto. A autenticidade do romance coloca vozes diversas, sons e imagens confluindo com família e país.