Abracadabra (Hocus Pocus, 1993), João e Maria (Hansel and Gretel, 1987), O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939), As Bruxas de Eastwick (The Witches of Eastwick, 1987) e Convenção das Bruxas (The Witches, 1990). São diversas as obras cinematográficas que contêm bruxas, figuras que causam medo ou fascínio, dependendo de quem as interpretam. Nesses filmes, elas nem precisam aparecer fisicamente para causar alguma emoção — como em A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999) —, pois a possibilidade de suas presenças já é a narrativa principal.
Bruna Mello, estudante de Ciências Biológicas, youtuber e praticante da religião Wicca, relata que desde criança assiste a filmes sobre bruxas e que nunca as viu de forma negativa, mas sim de forma fantasiosa e positiva. Victoria Avelar, graduada em Design de Games e outra fã desse tipo de película, começou a se interessar por bruxas na pré-adolescência e se identifica com o lado místico delas.
No imaginário popular, ao se pensar em bruxa, a imagem que geralmente vem à cabeça é a de uma mulher velha, feia, nariguda, malvada, que voa em vassouras, tem um gato preto e come crianças. E quando é jovem e bonita, tem o “poder maligno” da sedução, como a Elvira de Elvira a Rainha das Trevas (Elvira: The Mistress of the Dark, 1988). Filmes sobre bruxas são feitos há décadas, e os estereótipos se repetem tanto em filmes de terror quanto em filmes infantis, sendo que no segundo ainda se contrastam com a figura da princesa, que é bela, boa e indefesa.
Por outro lado, a representação do homem bruxo vai para um caminho diferente. Dumbledore, de Harry Potter, e Gandalf, de O Senhor dos Anéis, são exemplos de personagens que o cinema usa para ressignificar a imagem da feitiçaria, a partir de homens que aparentam ser sábios e confiáveis.
Em relação a isso, Bruna diz que, à medida em que foi crescendo e conhecendo de fato a bruxaria, começou a se incomodar com a forma em que ela era representada em algumas obras cinematográficas. Mesmo ainda gostando desses filmes, ela agora os assiste com uma visão mais crítica. Bruna também fala que percebe uma grande separação nas palavras usadas para designar mulheres e homens que praticam magia, pois as mulheres são tratadas como bruxas e os homens como magos, justamente pela palavra “bruxa” trazer a imagem negativa da idosa má. “O homem precisaria ser representado como alguém que o público masculino pudesse se ver e se inspirar, sem ser vinculado com essa carga que a palavra ‘bruxa’ tem”, opina.
Priscila Ferraz, jornalista, taróloga, youtuber e praticante da Bruxaria Natural, vê que a diferença na representação do bruxo e da bruxa tem origem, além do sistema machista e patriarcal da sociedade, na própria figura da bruxa e do mago. “A bruxaria da mulher passa a ser vista como a baixa magia, aquela magia simples, da terra. E o homem, quando está falando sobre ocultismo, tem um status social, aquilo é visto como algo excêntrico, poderoso”, diz.
Em ressalva, algumas obras invertem os papéis de bom e mau e ainda romantizam a bruxaria. Harry Potter, por exemplo, rompe com alguns moldes, constrói diferentes tipos de bruxos e fantasia a vivência deles de forma glamourosa. Isso resultou na curiosidade do público infanto-juvenil pela bruxaria na época do lançamento dos filmes e fez com que a saga se tornasse um marco adolescente até os dias atuais, com fãs por todo o mundo. Com semelhanças à representação da personagem Hermione (Emma Watson), outros longas, como Jovens Bruxas (The Craft, 1996) e Sabrina, Aprendiz de Feiticeira (Sabrina, The Teenage Witch, 1996), constituem a temática da bruxa jovem e atual, favorecendo a imagem dessa mulher boa, descolada e que atrai o fascínio do público, principalmente o feminino.
Contudo, as representações ditas anteriormente se repetem com frequência na indústria cinematográfica e fazem com que os estereótipos se consolidem na mente do espectador.
Mas de onde vêm os estereótipos das bruxas?
Um ponto importante a ser levado em consideração para compreender as origens dos clichês em torno da bruxaria é a relação dela com a sociedade. Em uma época em que os conhecimentos acerca do mundo eram limitados, como no fim da Idade Média e na Idade Moderna, os indivíduos tinham a automática necessidade de culpabilizar algo ou alguém pelos infortúnios do cotidiano. E se o culpado fosse palpável, como uma pessoa ou um objeto, era ainda mais fácil rechaçá-lo. Desse modo, principalmente as pessoas que, de alguma forma, se destacavam perante a multidão, eram mais vulneráveis a sofrerem essa apropriação de responsabilidade acerca das adversidades da vida. O filme Rua do Medo: 1666 – Parte 3 (Fear Street Part 3: 1666, 2021) explora essa concepção.
Em relação a indivíduos que se destacavam, as mulheres que na época saíam do papel pré-estabelecido de puritanismo e normalidade se tornavam alvos. O caldeirão, um dos objetos mais associados à bruxaria, era utilizado para elaborar comidas, chás e outros preparados pelas mulheres curandeiras. Elas eram, em grande parte, mais velhas e eram dotadas de conhecimento sobre ervas e remédios naturais. Porém tais mulheres, ao mesmo tempo em que eram procuradas em situações de emergência, quando as pessoas precisavam de ajuda médica, eram também rotuladas como perigosas e praticantes de rituais macabros. A sabedoria configurava um poder para elas, uma força perante a sociedade, e essa força incomodava em certo grau.
É daí que surge a imagem da idosa malvada que prepara poções no caldeirão usando “patas de aranha”, “asas de morcego”, “dentes de cavalo” ou qualquer outro ingrediente criativo que se possa imaginar. No cinema, bolhas e fumaças coloridas são recursos dos filmes para caracterizar ainda mais o caldeirão como um objeto maléfico.
Com a ajuda do manual inquisitorial Malleus Maleficarum, as invenções se acentuaram de tal forma durante os anos que, aos olhos da comunidade, as “bruxas” encarnavam figuras pitorescas, esfregavam seus corpos em vassouras cobertas por unguento que as possibilitavam levitar e saíam à noite para encontrar o Diabo, o qual tomava o corpo de um gato preto.
Alguns gatos pretos da ficção ainda receberam os nomes Lúcifer e Satanás, como os da madrasta da Cinderella e da Bruxa do 71 (Angelines Fernández) do seriado Chaves (El Chavo del Ocho, 1971-1980). De maneira mais profunda e ressaltando um racismo já antigo, o que era de cor escura era considerado ruim e maligno, assim como a magia maléfica foi denominada “magia negra”.
Bruxaria não é satanismo
Salém, Massachusetts, 1692: um exemplo de extremismo religioso e de histeria em massa tem data e local. O episódio do Julgamento das Bruxas de Salém foi responsável pela morte de várias pessoas, em sua maioria mulheres, acusadas injustamente de praticarem bruxaria e de estarem possuídas pelo Diabo. Nesse cenário, a ignorância da sociedade resultou em prisões, enforcamentos e mortes de pessoas inocentes na fogueira. O longa As Bruxas de Salém (The Crucible, 1996) adapta esse acontecimento para o cinema e evidencia a falha no sistema judiciário dos Estados Unidos na época.
Conforme as ideias de Jeffrey B. Russell no livro História da Bruxaria: Feiticeiras, hereges e pagãs, as crenças em torno da bruxaria são “fruto da ação do pensamento cristão sobre a sociedade e as religiões pagãs”, através dos séculos em que perdurou a transição do catolicismo como a religião oficial do Império Romano. André Miatello, professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), disse, em entrevista ao Cinéfilos, que a oposição entre o paganismo e o catolicismo não se deu necessariamente e apenas pelo lado religioso, mas também pelo lado cultural.
No campo do terror, é recorrente o uso do arquétipo da bruxa satânica para instigar o medo no espectador, como é possível observar nos filmes As Senhoras de Salém (The Lords of Salem, 2012), A Bruxa (The Witch, 2015), A Bruxa de Blair e Rua do Medo: 1978 – Parte 2 (Fear Street Part 2: 1978, 2021). Os elementos presentes nesse tipo de película são vários: desenhos de pentagramas invertidos, velas em posições específicas, oferendas de sacrifícios humanos ou animais, crucifixos, bodes pretos, dentre outros.
Victoria conta que sente medo ao assistir filmes que apresentam esses elementos que levam a trama para o lado diabólico e, em sua visão, mesmo sabendo abstrair o conteúdo de forma ficcional, tal construção reforça a ideia errada de que bruxas estão diretamente ligadas a práticas demoníacas. Bruna já não sente medo dessas abordagens, mas se irrita com algumas películas que na atualidade perpetuam a associação da bruxaria com o satanismo.
A Wicca, religião de Bruna, assim como outras vertentes da Bruxaria Moderna, não reconhece os elementos judaico-cristãos em suas práticas; sendo assim, o satanismo também não se insere nesse universo. Conforme a Ética Wiccana, o(a) bruxo(a) tem a liberdade de fazer o que quiser, desde que não faça mal ao outro. Na verdade, os rituais feitos pelos praticantes são, em maioria, para benefício próprio. Mas essas ligações são efeitos da demonização que os elementos pagãos sofreram ao longo do tempo, como a própria figura do bode, que, em detrimento dos deuses pagãos — como o Deus Cornífero — passou a ser associado ao Diabo.
Bruna acha que uma pessoa que não possui conhecimentos sobre a bruxaria tende a criar uma imagem negativa dela ao assistir filmes desse tipo. “E tudo bem, se não existissem praticantes de bruxaria que sofrem com essa ideia negativa. Mas tem pessoas, como eu, que se autointitulam publicamente como bruxas e que sofrem diretamente com toda essa carga negativa que os filmes estão dando”, expõe. A youtuber relatou que recebe, com frequência, ataques de ódio ao publicar vídeos falando sobre a sua religião. Alguns comentários citam passagens da Bíblia ou diminuem a Wicca.
Priscila já não acha que esses filmes criam um preconceito em pessoas que não conhecem a bruxaria, mas fortificam o preconceito de quem já tem. Ela percebe que os antigos filmes sobre bruxas carregavam críticas minuciosas sobre a Inquisição, mas que os filmes de terror de hoje tornam difícil para o espectador entender essa crítica, pois eles não necessariamente a deixam clara. Assim como Bruna, Priscila também já recebeu ataques de ódio na internet devido à publicação de conteúdos sobre bruxaria. “Queria que a Inquisição voltasse” e “você deveria ser queimada na fogueira” são exemplos de comentários recebidos por essas mulheres.
As bruxas de hoje
Apesar da comum descrença na existência das bruxas, elas existem e se distanciam totalmente dos estereótipos criados ao longo do tempo e que são reforçados pelo cinema. Porém é difícil definir a bruxaria completamente e sem ressalvas, já que ela possui intensas variações em cada parte do globo. Dessa forma, não é possível generalizar nem mesmo as práticas de uma mesma vertente, pois, dependendo de onde vive o praticante, elas podem se diferenciar em alguns aspectos. A bruxaria também dá a liberdade para o seguidor se identificar com as práticas com as quais ele se sente mais confortável em realizar, e, a partir disso, ela se torna única para cada um.
A Bruxaria Moderna possui diversas vertentes e é fragmentada em religiões e em filosofias de vida. Assim, a bruxaria em si não se classifica como uma religião, o que torna possível a indivíduos de outras religiões também a praticarem. Na atualidade, os termos “bruxa” e “bruxo” estão perdendo o tom negativo e estão sendo usados para a identificação dos praticantes. Nesse quesito, essas palavras são redefinidas e dão um sentido de pertencimento a eles.
No que tange a ressignificação dos objetos bruxos, a vassoura passa de um figurado e fantasioso meio de locomoção para um objeto capaz de limpar energeticamente um local. Já o caldeirão é agora utilizado para rituais que envolvam a queima de ervas, além de simbolizar o útero da Deusa na Wicca. Para além desses itens, outros símbolos presentes na bruxaria são o altar, local sagrado para a realização das práticas bruxas, o athame, usado para banir forças negativas, as runas, utilizadas em jogos de adivinhação do futuro, dentre muitos outros que possuem qualquer significado mágico para o praticante.
“De todos os filmes que eu vi, o que tem a melhor representação da bruxaria é Jovens Bruxas”, diz Bruna, em nota de que o filme também é fantasioso em algumas partes. “Tem coisas bem reais que mostram no filme, como a Lei Tríplice, que é um fundamento que muitos praticantes da bruxaria seguem. Os feitiços mostrados também poderiam muito bem ser reais”, afirma.
Um filme recente sobre bruxas que conquistou o gosto de Priscila chama-se Silenciadas (Coven of Sisters, 2020), por abordar a questão das mulheres acusadas de bruxaria durante a Inquisição com um olhar crítico. Para além dos filmes, uma série que, para ela, possui uma figura legal da bruxa é Desalma (2020-presente), representada pela atriz Cássia Kis: “eu achei essa bruxa mais real. Ela é aquela mulher que faz as suas magias para ajudar as pessoas ao redor. Uma bruxa de uma cidadezinha do interior, que existe um certo preconceito em relação à ela, mas que, ao mesmo tempo, ‘quando o bicho pega’, o pessoal vai atrás dela”.
“Ser mulher é uma luta constante de sobrevivência”
Essa é uma frase dita pelo professor e youtuber Pedro Rennó, que sucinta a discussão a respeito dos misticismos em torno da bruxaria e as consequências advindas deles para as mulheres através dos séculos.
Como escape a radicalismos, o cinema não se caracteriza como “o grande vilão”, mas tem o seu papel de influência na perpetuação de arquétipos e na percepção do público acerca do mundo. Sobre isso, é necessário, além da pesquisa, saber identificar os conceitos apresentados nos filmes e olhá-los criticamente.
Fantástica essa matéria 👏👏👏👏👏
Desmistifica a imagem negativa das bruxas, pois traz informações pertinentes sobre essas “ figuras” mágicas e intrigantes.
Excelente matéria com excelentes pessoas! Obrigado pelo link para o Santuário Lunar ao referenciar a Deusa 😀