por Daniel Drumond Ribeiro
rd.drumond@gmail.com
“Hoje não vamos comer cinza
Que a kombi mandou buscar”
É impossível caminhar nas ruas de São Paulo sem perceber os inúmeros graffitis pintados sobre as paredes, viadutos e construções. Os traços de spray tanto quebram quanto compõem a rotina dos homens e mulheres de olhos cansados que dividem as 24 horas do dia em casa, transporte, trabalho, transporte e casa.
O documentário Cidade Cinza, dirigido por Guilherme Valiengo e Marcelo Mesquita, retrata a política da prefeitura de São Paulo de censura ao graffiti, que apaga com tinta cinza as obras de grafiteiros como OsGemeos, Hebert, Vitche, Nina Pandolfo e Nunca. A produção independente, que estreou em novembro de 2013, demorou 6 anos para ser realizada e sua divulgação foi financiada por doações de crowdfunding.
Ao som da trilha original de Daniel Ganjaman e Criolo, o filme remonta um episódio ocorrido em 2008, em que um painel de 700 metros quadrados grafitado pelos cinco artistas cerca de sete anos antes na avenida 23 de Maio, centro de São Paulo, foi totalmente coberto de cinza. O longa-metragem acompanha, ainda, a repintura desse painel, feita com a autorização da prefeitura de Gilberto Kassab, mas sem nenhum tipo de financiamento dela.
“Doum”, composta por Criolo especialmente para a trilha de Cidade Cinza
Em uma cidade tão caótica, a parcela de tempo gasto em transporte na rotina do trabalhador paulistano muitas vezes se assemelha ao tempo dentro de casa ou no trabalho. Abaixo do céu cinza e em meio aos muros que cercam quem passa por São Paulo, as cores vivas se destacam e as reflexões provocadas pelos graffitis vistos das janelas dos ônibus dinamizam o tempo passado nas ruas. Como dito pelo grafiteiro Nunca, “o graffiti é uma das formas mais diretas de tratar cada pessoa que passa na rua como um ser humano”.
Tanto o graffiti quanto a pichação nascem da necessidade do ser humano se expressar, seja mostrando uma realidade, dando forma a um sentimento, ou simplesmente deixando uma marca na cidade. Trabalhados na surpresa e no contraste com o cinza do ambiente urbano, os dois tipos de arte dialogam com todo e qualquer transeunte que o vê, seja ele um pedinte da Rua Augusta ou o CEO da Edelman.
O graffiti é realmente uma arte de marginais. É uma corrente artística transgressora, feita por aqueles que estão à margem das leis do mercado, do sistema, e veem a intervenção urbana como uma alternativa para mudar um pouco do que é imposto, questionando as regras e a “ordem”. Mesmo assim, o governo insiste em colocar no mesmo saco – o de lixo – outdoors, propagandas, logotipos majestosos de grandes marcas capitalistas e o graffiti, tratando tudo como apenas poluição.
Em oposição ao tratamento dado às obras de arte de rua, o trabalho de OsGemeos é celebrado e reconhecido internacionalmente. No mesmo ano da censura do painel, Nunca e os irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo foram convidados a expor na fachada do Tate Modern, em Londres, um dos maiores e mais notáveis museus de arte moderna do mundo. Envergonhado, Kassab afirmou que o painel ter sido apagado foi “um engano”, e convidou os irmãos a repintarem o local juntos de outros artistas. A nova versão do “engano de 700 m²” foi inaugurada em dezembro do mesmo ano, com a presença do sucessor de Serra.
Além de Kassab, a inauguração, reproduzida no final do documentário, também contou com a presença do Secretário de Subprefeituras Andrea Matarazzo. Em alguns momentos, mais preocupados com as câmeras e a cobertura midiática, os dois e mais alguns de seus apoiadores simplesmente ignoravam a presença dos grafiteiros. Preparados para todo o falatório furado e, ao mesmo tempo, alinhados ideologicamente, a dupla parecia ter ensaiado o roteiro em casa, e mais se assemelhavam a personagens eleitoreiros saídos de um filme sobre o BOPE.
Ao acompanhar uma parcela das operações do “serviço de pintura/recuperação de superfícies pichadas” terceirizado pela prefeitura, o filme mostra o quão subjetivo é o padrão do que deve ser mantido e do que será apagado. Nesse processo é realizada uma rápida eleição das obras belas — distintas das “não-arte” dos muros — que lá permanecerão, mesmo que parcialmente apagadas. Mais do que isso, as cenas são um recorte do que se trata a guerra travada entre grafiteiros e a política pública. E, ao que tudo indica, esse tipo de censura está longe de ser uma história do passado, uma vez que há uma continuidade dessa política no mandato de Haddad.
Trecho do filme Cidade Cinza que acompanha funcionários terceirizados pela prefeitura para apagar graffitis explicando seus critérios.
Cidade Limpa? Cidade Cinza. Uma política pública higienista de uma prefeitura que a todo tempo entra em contradição. Que autoriza e inaugura painéis grafitados no centro de São Paulo, mas intimamente opta por ignorar toda uma cultura, sobrepondo-a com uma camada de tinta cinza em nome de um preconceito estético – exceto quando houver uma pressão midiática e o ônus político for negativo.
As paredes não somente ouvem: elas também falam. E é impossível calar a voz dos milhares que as usam como suporte para suas denúncias, retratos e mensagens apagando-as com três ou quatro mãos de tinta cinza. O graffiti e a pichação nasceram do caos, compõe-no e sobreviverão na Babilônia enquanto ela existir. Tapar os olhos para a raiz dos problemas da cidade e se preocupar em arrancar os frutos e as flores — ou pintá-las de cinza, assim como as cartas comandadas pela Rainha de Copas em Alice no País das Maravilhas — gastando tempo e dinheiro da população é uma burrice sem tamanho.