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Como o preconceito racial aparece nos esportes americanos

“Dustin Pedroia. Ele é, citadamente, muito parecido com David Eckestein (no estilo de jogo) e faz o melhor possível com o que tem. Sabe, David Eckestein, o cara que utiliza seu corpo ao máximo, ou, citadamente, era sempre o primeiro a correr para sua posição. Pense um pouco sobre esses depoimentos de jornalistas esportivos. Se …

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“Dustin Pedroia. Ele é, citadamente, muito parecido com David Eckestein (no estilo de jogo) e faz o melhor possível com o que tem. Sabe, David Eckestein, o cara que utiliza seu corpo ao máximo, ou, citadamente, era sempre o primeiro a correr para sua posição. Pense um pouco sobre esses depoimentos de jornalistas esportivos. Se você acompanha beisebol, você sabe o quão absurdo eles são. Eles estão comparando dois segunda base que não poderiam ser mais diferentes. Pedroia, um MVP, quase membro do Hall da Fama, e que, segundo estatísticas, é 27% melhor que Eckestein. Então por que eles eram sempre comparados? Bem, para citar o blog firejoemorgan.com, ambos são brancos”. Esse foi o depoimento proferido por Patrick Ferrucci, professor assistente de jornalismo e presidente associado de estudos de pós-graduação na University of Colorado Boulder, em seu TEDx Talk, uma série de palestras feitas por especialistas em diversas áreas, sobre como os jornalistas esportivos estereotipam os jogadores segundo sua etnia.

Pat Ferrucci em seu TEDx Talk [Imagem: TED.com]

A estereotipação é um grave problema, principalmente pelo fato de que estes estigmas e preconceitos não vêm apenas do jornalistas. A mídia apenas perpetua estereótipos já existentes na sociedade americana, que ainda herda muito de seu período colonial. Os esportes são um mero espelho da sociedade, então, basquete e futebol americano foram historicamente demarcados por tensões étnicas que moldaram, e ainda moldam, grande parte dos esportes americanos mais famosos.                                                                                    

O exemplo mais claro: as posições da NFL

Como bem cita Ferrucci, o exemplo mais claro de como etnias podem influenciar diretamente na vida de um atleta vem da NFL. Duas das posições mais importantes são o quarterback, que é quem arremessa a bola, e os wide receivers, que são os que correm pelas pontas tentando receber o passe. Historicamente, atletas brancos viram quarterbacks, enquanto os atletas negros tornam-se wide receivers. Por quê? Bom, porque os atletas brancos são estereotipados como pouco atléticos, mas inteligentes, característica fundamental para a posição, enquanto os negros são vistos como portadores de grande velocidade e força, o que é necessário na posição que os designam. 

Em vermelho, indicadas as posições de quarterback e wide receiver [Imagem: Kainaw-Wikipedia]

O efeito mais palpável disso é que quando há exceções, como quarterbacks negros, as expectativas não mudam. Mesmo que a função primária da função seja passar, ainda se espera que este perfil de jogador corra mais do que o normal. Mas, além das expectativas, como bem afirma Pat, esse tipo de estereotipação também afeta a saúde e a situação monetária dos jogadores, já que quarterbacks têm, em média, uma carreira 18% mais longa que a de um wide receiver e têm, em média, o dobro de salário, ou seja, a tendência é que brancos joguem por mais tempo e sejam mais ricos. Fora isso, entre os fãs do esporte, a posição de quarterback costuma ser vista como a mais importante do time, o que costuma dar mais prestígio ao arremessadores do time.

 

O lado biológico

“E mesmo que alguns estereótipos sejam bons, o problema é que quando começamos a rotular as pessoas por raça, sem evidências científicas, nós começamos a perceber a raça, que é inteiramente uma construção social como algo que importa”, diz Ferrucci em sua palestra. 

Segundo o doutorando em estudos socioculturais do esporte da Escola de Educação Física e Esporte da USP (EEFE-USP) Neilton Ferreira Júnior, a citação apresenta um grande teor de verdade. A ciência, em muitos períodos da história, foi direcionada a separar cada vez mais as “raças” humanas, como eram chamadas na época as etnias. Hoje, sabemos que o conceito de diferentes raças humanas não existe, e também sabemos que não há provas biológicas de que os estereótipos citados acima possuem qualquer correspondência com a realidade.

Porém, como muito bem pontua Neilton, não existe “não-ideologia”. Ou seja, a ciência, como qualquer outra prática humana, é guiada por ideologias, e uma prova disso foi a invenção do Darwinismo Social, teoria sociológica que acreditava na evolução das sociedades, pondo a branca e europeia no topo da cadeia, e as periféricas, como as negras e asiáticas, como as mais inferiores.

Caso dos latinos e asiáticos

Ao se falar de etnias e preconceito, principalmente nos Estados Unidos, é muito fácil se pensar na dicotomia branco e negro. Porém, a verdade é que há sim outras etnias presentes na sociedade americana, e, consequemente, no esporte. É verdade também, que etnias como a latina e a asiática apresentam uma incidência muito menor nas principais ligas.

Porém, isso não impede que Ferrucci enxergue preconceitos relacionados a ambas as populações. Segundo ele, asiáticos geralmente são vistos como bons jogadores de equipe, mas nunca como grandes destaques individuais. Eles compõem elenco, numa linguagem mais futebolística. Enquanto isso, os latinos geralmente são vistos como showmans, algo como os jogadores de futebol que driblam muito mas pouco fazem gols.

A baixa participação no geral de ambas as etnias pode ser perceptível pelos poucos nomes que podem ser citados. Porém, vale citar dois bastante interessantes: Yao Ming, chinês, foi destaque por muitos anos como pivô do Houston Rockets, sendo muito mais do que “mais um” no time. Enquanto isso, Manu Ginóbili, argentino, era sim muito mais imprevisível que o jogador médio. Muitas de suas jogadas eram de dar arrepios. Porém, ele mostrou como a desorganização pode ser muito efetiva, mesmo num time conhecido por sua ultra organização, o San Antonio Spurs.

Yao (de vermelho à esquerda) tenta bloquear Manu (de branco e preto ao centro) [Imagem: AP Photo/Eric Gay]

Eles provam, novamente, que a estereotipação é um processo falho e ilegítimo, muitas vezes mentiroso, que busca limitar as oportunidades de alguém com base em fatores arbitrários, e que efetivamente não apresentam diferença fisiológica prática.

Além dos jogadores

“O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente”. É com essa citação de Mário Quintana que Neilton explica como a história dos Estados Unidos influencia na situação atual do esporte. Segundo ele, historicamente, os EUA, foram dominados por brancos, e por isso foram eles que moldaram a sociedade moralmente. Portanto, dar ao atleta branco o estereótipo de inteligente serviria para demonstrar superioridade “racial” desta etnia, já que, desde aquela época, a racionalidade é mais valorizada que o atletismo, relegando essa função àqueles que eram vistos como inferiores. 

Além disso, pode-se concluir também que há certa relação de hierarquia nesse pensamento. O branco cria, comanda e executa somente o preciso para o sucesso do time, enquanto o negro precisa correr, saltar, sentir dor, usar a força e diversos outros feitos físicos para realizar seu papel, o que traz semelhanças ao modelo escravista de produção, onde ambos colhem o fruto do trabalho físico de somente uma parte.

Estudar os estereótipos é, segundo Marcel Diego Tonini, doutor em história social, buscar esses significados que vão além daquilo que é aparente, do que é superficial. É perceber que quando Christian McCaffrey, que joga de running back, uma posição que exige muito atletismo, afirma que não é respeitado e não recebe o crédito que merece, não é porque o multi condecorado atleta não tem talento ou porque é muito arrogante, mas sim porque ele é branco e joga numa posição dominada por negros. É perceber que Lamar Jackson, quando estava entrando na liga profissional, foi perguntado se jogaria de wide receiver, mesmo só tendo jogado como quarterback a vida toda, pelo simples fato de ser ter dificuldades com o arremesso, algo que já havia ocorrido com outros prospectos, mas que por serem brancos não foram ofertados com essa mudança de posição.

Lamar Jackson, o quarterback negro que tem que lutar para jogar na sua posição [Imagem: Russel Street Report]

Mais ainda, seguindo também o pensamento de Ferrucci, é notar que “quando jornalistas esportivos dizem que Josh Allen, um quarterback que produziu, sim, números medíocres sua temporada de calouro, “parece um quarterback da NFL”, sem citar um de seus méritos em campo, existem muito mais problemas do que simples falta de argumentos. É sim um preconceito baseado em uma imagem já feita e lapidada na ideologia da mídia”. 

É muito interessante notar como um conceito como “parecer um quarterback” vai muito além da falta de argumentos. É um preconceito muitas vezes implícito que nem mesmo a própria mídia percebe que tem. Preconceito inclusive tão forte que leva, por exemplo, ao astro negro Isiah Thomas dizer que se Larry Bird fosse negro, ele seria apenas mais um jogador bom, e não seria visto como um dos melhores da liga.

Reprodução da página do New York Times em que Thomas causa polêmica com seu depoimento [Imagem: New York Times Archive]

A análise histórica permite também traçar a origem de vários problemas, além de permitir que se expanda a discussão, já que, infelizmente, no mundo do esporte não são somente os atletas que sofrem. É importante também analisar como os fãs, as diretorias e os times como instituição também sofrem com isso. Ademais, também é possível perceber como a política e as classes sociais influenciaram a criação e o desenvolvimento dos esportes entre os séculos 19 e 20, gerando consequências presentes até hoje.

Introdução histórica 

É importante saber, primeiramente, que a segregação racial no esporte nem sempre se deu no campo das ideias. Durante a história americana, a questão racial já foi institucionalizada, sendo só recentemente transformada em um fator mais puramente ideológico.

Para entender a influência do Estado, é preciso lembrar das leis de Jim Crow. Estas, promulgadas entre 1874 e 75, institucionalizaram o racismo no país. A separação tornava-se, segundo Marcel, não somente geográfica, como civil. Os direitos e deveres eram diferentes, sendo o exemplo mais conhecido o de que os negros eram obrigados a dar lugar a brancos nos ônibus, o que futuramente levou ao famoso caso de Rosa Parks, que se recusou a dar o lugar a um branco, desrespeitando a lei da época mas se respeitando em troca.

Porém, mais importante ao tópico abordado, as leis também limitavam a entrada de não-brancos nos esportes. Prova disso foi o hipismo, que era dominado por atletas negros, mas que apresentou a falta da renovação deles, já que as novas gerações foram impedidas de praticar o esporte. Uma grande exceção, porém, foi Jack Johnson, primeiro negro campeão mundial de boxe em 1908. Como muitos atletas de sua cor, Johnson teve que lutar contra muitos preconceitos e representar um país que segregava seu povo e que não permitia que seus semelhantes fossem livres dentro das arenas.

Casos como o de Johnson, segundo Neilton, são comuns na conjuntura social dos Estados Unidos. Negros nunca foram amados, a não ser que fosse conveniente. Um exemplo famoso disso foi Jesse Owens, corredor negro e americano que ganhou quatro medalhas de ouro nas olimpíadas de 1936, em Berlim. No auge da eugenia nazista, um negro americano superar os melhores atletas arianos alemães foi muito significativo. E, como num passe de mágica, parecia que a América esquecera da cor da pele de seu corredor. 

O auge desse movimento de amor seletivo foi O.J. Simpson, astro do futebol americano, e que, devido a esse sucesso, acabou se tornando um “queridinho da América”. Esse sentimento foi muito sintetizado numa frase que, apesar de famosa, foi erroneamente atribuída ao jogador: “Eu não sou negro, eu sou O.J.”. O jogador só foi efetivamente percebido como negro pela opinião pública após as acusações de ter assassinado sua ex-mulher, que o ligavam ao típico estereótipo da criminalidade.

O.J. SImpson durante o julgamento [Imagem: CORDON PRESS]

Porém, evidentemente, a segregação também ocorria fora do campo legal. Segundo Marcel, “a concretização dos esportes na história recente sempre esteve muito atrelada às universidades. Eram lá que as regras eram feitas e os primeiros jogos eram jogados”. E, com esportes nascendo na transição do século 19 para o 20, os não-brancos não tinham tanto acesso a prática de esportes, já que eles também não tinham acesso às universidades.

Para Neilton, processo parecido se dá até hoje com alguns esportes como natação e tênis. Ambos esportes costumam ser muito praticados em clubes, que são “ambientes bastante aristocráticos, onde muitos negros só têm acesso através de empregos de baixa renda, sendo novamente afastados do esporte”. Por isso que até hoje é difícil se achar astros não brancos nestes esportes, o que aumenta, por exemplo, a representatividade e a importância das irmãs Williams no tênis, que são negras e multicampeãs num ambiente desfavorável.

O caso acima também permite entender a percepção que a grande mídia tem de basquete e futebol americano. O primeiro é considerado “coisa de negro”, enquanto o segundo é visto como esporte de branco. E, segundo Neilton, isso se dá devido a acessibilidade do basquete, já que basta uma tabela em uma parede para que o esporte possa ser praticado, o que facilita o surgimento de atletas nos bairros mais pobres, que são raramente habitados por brancos. Enquanto isso, o futebol necessita de grandes espaços e de muitos componentes, e, por isso, é mais praticados em escolas, clubes e universidades, o que dificulta a entrada da camada mais pobre e predominantemente negra.

A questão dos fãs

O racismo é, evidentemente, implacável. Por isso, não é surpresa dizer que os espectadores também sofrem com esse problema quando o assunto é esporte. Ambos os entrevistados concordam que com o passar dos tempos o esporte foi deixando de ser meramente uma prática e foi tornando-se um espetáculo.  

Esse fato é, em primeira análise, não muito maléfico, já que permite que aqueles que não apresentam treinamento o suficiente para praticar o esporte ainda assim possam aproveitar o ambiente e a experiência, da mesma forma que permite que os melhores na área possam viver de sua verdadeira paixão. Porém, como bem cita Marcel, “concomitantemente a isso, também houve o processo de arenização, ou seja, do confinamento da prática esportiva dentro de espaços privados, e portanto, pagos.” Por isso, percebe-se que a camada mais pobre, geralmente composta por não-brancos, acaba por ser excluída.

A exclusão ocorre devido ao financiamento dos esportes. Como diz Neilton, “quem dá dinheiro ao esporte é uma certa aristocracia, geralmente branca, que procura manter seu status”. Portanto, delimitar o acesso a um certo nicho satisfaz suas aspirações de permanência social. 

A segregação, hoje em dia, é gradualmente resolvido com a expansão dos meios de comunicação, à medida que, mesmo sem o acesso ao espaço físico, o espectador pode estar completamente inteirado no jogo, até mesmo vendo ele na íntegra. Porém, cabe pontuar que estes meios também são pagos, e, portanto, ainda não 100% populares, o que faz com que ainda se persista, em partes, o problema da segregação de fãs.

A questão da diretoria

O racismo também entra em jogo nos times como instituição, e inclusive nas ligas. É notório que o grande número de jogadores negros hoje em dia não se traduz nas diretorias. Os cargos de chefia dos times, e mesmo os cargos de técnico, ainda são muito associados com homens brancos. 

Prova disso é a Rooney rule, ou regra Rooney, da NFL, que dita que os times de futebol americano devem entrevistar pelo menos uma pessoa pertencente a uma minoria étnica para cargos de técnico principal. A regra, ainda muito discutida pela mídia, mostra que há certa preocupação em tentar diminuir a diferença racial entre os técnicos da liga. Se a regra funciona ou não é questão interpretativa, mas mostra certa iniciativa por parte da liga no combate ao problema.

Comparação entre as porcentagens de jogadores brancos e negros e de chefes brancos e negros tanto na NBA quanto na NFL [Imagem: Luana Franzão / Comunicação Visual – Jornalismo Júnior]

Além disso, um grande problema histórico foi o de patrocínios. Durante os anos 70, que foram comercialmente os piores anos da NBA, a NFL conseguiu diversos patrocinadores. O porquê disso? A NFL era vista como uma liga “branca”, enquanto o basquete já era visto como esporte de negro. E, como bem pontua Marcel, “a propaganda sempre carregou um viés ideológico de exclusão.” E, reiterando o que disse Neilton, isso se dá devido a aristocracia financiadora que busca se manter no poder. Além disso, diz o especialista da EEFE-USP, há também um fator moral nessa questão, já que a raça negra foi, historicamente, ligada à características consideradas imorais, como quando estereotipam bandidos e infratores como negros, fato que em teoria prejudicaria a imagem de uma marca.

Segundo Marcel, as propagandas só começaram a utilizar negros a partir dos anos 90, o que mostra o quão recente é esse fenômeno. Por isso, percebe-se que, apesar das melhorias, ainda há um longo caminho para que o campo da publicidade torne-se verdadeiramente igual do ponto de vista étnico.

Apito final

Marcel afirma que o panorama das relações raciais nos Estados Unidos segue complexa. Se por um lado ela melhorou, com o movimento dos direitos civis que aboliu as leis segregacionistas e garantiu a isonomia de todos, por outro, piorou, pois agora tornou-se mais internalizada ou privatizada.

Por mais que brilhantes estudos como o de Pat Ferrucci sejam realizados, a realidade é que o preconceito ainda existe e, pior, persiste. É necessário sempre reconhecer e comemorar os avanços, mas ainda é preciso pensar que todos os dias meninos e meninas são colocados em posições que não querem pela cor de sua pele. É preciso lembrar que, até hoje, atletas profissionais de alto nível não recebem o respeito que devem pois “não estão na posição apropriada”. Para referenciar o grande Martin Luther King Jr., “eu tenho um sonho de que, um dia,” meninos e meninas poderão jogar esportes por amor, sem que nunca escutem que não são apropriados para uma função. Esse sonho, quem sabe, um dia será realidade.

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