O policial Daoud (Roshdy Zem) dirige o comissariado de Roubaix, na França. Delega a investigação de um incêndio possivelmente criminoso ao jovem Louis (Antoine Reinartz). Louis requisita a cooperação de Claude (Léa Seydoux) e Marie (Sara Forestier), vizinhas do imóvel queimado. Investigações posteriores engolem os personagens de Crime em Roubaix (Roubaix, une Lumière, 2019), de Arnaud Desplechin, em uma trama policial que se preocupa mais em dar sugestões do que resoluções.
Alguns dos principais ditames do gênero são deixados de lado. Sim, é bem verdade que temos policiais em tela; sim, há um mistério a ser desvendado; sim, a câmera treme em estilo documental, como se isso adicionasse algo à verossimilhança. Mas Desplechin toma o elemento policialesco a seu modo: tempo de tela considerável é dedicado a personagens e tramas sem conexão direta com o crime principal; a segunda metade do longa se desenvolve lentamente em direção a um fim sem grandes surpresas ou revelações.
As longas cenas de procedimentos policiais servem mais como janelas aos personagens do que passos necessários em uma trama investigativa. O tempo passado ao lado de policiais, testemunhas e suspeitos pouco nos dizem sobre qualquer investigação — o mais importante nessa verborragia quase desconexa é o que não se diz.
O não-dito (ou dito em voz baixa cá e lá) é o que nos leva a crer que Roubaix é espelho de algo maior; e que o filme, então, é um comentário mais profundo do que uma “história policial”. O que pode parecer um estratagema batido funciona em boa parte das vezes graças à personagem de Daoud.
Daoud tem origem no norte da África. Na França, é tido simplesmente como árabe. Tem um sobrinho na prisão que o odeia. Pergunta a um carcereiro se o parente foi “radicalizado”. Em conversa com Louis, aponta uma escola ao longe: é lá (e só lá) que aprendeu o francês.
Nesse terreno espinhoso dos conflitos étnicos, em que é tão fácil cair em alguma insensatez insensível quanto num proselitismo beabá, o filme se mantém sóbrio. Não oferece nenhum desenlace explícito, nenhuma solução fácil; a bem da verdade, não oferece muito, e se furta das imbricações mais profundas do tema. Mas o que seria um problema na sociologia não o é necessariamente na arte: Desplechin gosta de sugerir questões que ressoam, mesmo que só na superfície.
Crime em Roubaix é um título enganoso. Soa como um conto pulp, um suspense giallo, um romance barato — o que não seria demérito por si só. O título original (que pode ser traduzido como “Roubaix, uma luz”) dá uma ideia melhor de seu conteúdo. É um drama que se enamora de seus próprios procedimentos e ritmos; que se deixa carregar (ou se quer carregado) pelas personagens; que, feito vela, queima devagar e desaparece. A luz que produz pode não ser Roubaix tal e qual, mas, ao menos, quer nos fazer vê-la.
Talvez esteja aí a grande falha do filme. Sua trama cambaleia demais entre dramas pessoais e operações policiais para vermos Roubaix de fato. A cidade — ou algo de muito importante, que não está só nos personagens que acompanhamos — parece quase nos escapar quando chegamos aos créditos. Pode-se sair do filme com a impressão de que ele é feito de retalhos de algo maior que nunca foi finalizado. O quanto isso corrói a arte depende muito de quem assiste.
Crime em Roubaix não é um ótimo filme policial. Não é um ótimo filme etnográfico. Não é um ótimo filme dramático. Mas pode ser um bom filme para quem queira costurar todos esses retalhos.
O filme, que estreou na França em 2019, chega ao Brasil pelo Belas Artes À La Carte. Confira o trailer:
*Imagem da capa: Divulgação/Le Pacte