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Crônica da Poesia Fofa

Por Davi Madorra (davimadorra@usp.br)

Doutor, tenho de admitir algo: como você bem sabe, de uns tempos para cá, tenho achado que meu cérebro está se deteriorando. Sinto meus miolinhos, aos poucos, sendo derretidos pelo trabalho excessivo, esfolados pelas longas horas que gasto na frente do computador preparando aulas e corrigindo trabalhos. Não quero soar melodramático, mas é isso que sinto. Que tenho me tornado um jumentinho automatizado, um estúpido de marca maior! Como nunca antes, doutor, tenho achado que sou isso e somente isso: um burro. Um ser acéfalo e indigno de todo e qualquer reconhecimento intelectual. E nessa última semana, tive o insight que precisava para cravar a resposta que não queria: comecei a achar poesia fofa! Ouça bem: era uma terça-feira. Eu estava folheando, despretensiosamente, um livro recém-publicado de um colega escritor que muito admiro. Já havia lido dele dois romances e uma novelinha boa à beça, dessas de causar inveja. Esse, entretanto, era seu primeiro trabalho como poeta e era um longo poema. Noventa e tantas páginas de pura verborragia, de versos que algum tempo atrás, doutor, meu Deus, me espetariam fundo na alma! Como escrevia bem aquele filho da mãe! Eu sabia disso, e mesmo sabendo, só deixei escapar, ao fim da leitura e quase que por acidente, duas palavrinhas que ressoam até hoje nos meus ouvidos: “que fofinho!”.

O senhor pode pensar que isso não significa muita coisa. Aposto que pensa isso, não pensa? Deve pensar sim… Mas, doutor, aquilo para mim foi o total veredito. Finalmente me tornei o palhaço que sempre temi ser, incapaz de levar qualquer coisa a sério. Chamar um poema daqueles de fofo era como ser finalmente apanhado pela polícia dos idiotas, condenado nos tribunais da estupidez, preso na prisão dos tapados. Minha atitude se trata de coisa muito séria, doutor, seríssima! E digo isso porque fiz o teste e não parece ter sido nenhum caso isolado. Não mesmo. Muito pelo contrário, neste mesmo dia, depenei com dedicação cada uma de minhas estantes, deixei-as carecas de tudo aquilo que era escrito em versos, debrucei-me sobre todas as poesias que pude me debruçar e, doutor, caramba! Como elas eram fofas! Todas elas, fofíssimas em demasia!

E antes fosse só esse dia, doutor. Antes fosse! Mas nessa mesma semana, se lhe servir  como exemplo, também fui a um colóquio na universidade em que leciono. Conversa vai, conversa vem, vejo alguns bons amigos — tão lindos e espertos amigos acadêmicos, daqueles que se tremem de prazer ao ouvirem as palavras “bibliografia” e “simpósio”  — e olhe só: eu ainda consegui, mesmo que com minhas recém-adquiridas capacidades cognitivas de um vegetal, acompanhar tudo aquilo com verdadeira atenção e disciplina durante um bom tempo. Mas bem no finalzinho, uma das professoras – aquela velha maldita! – decidiu encerrar sua fala sobre regionalismo recitando um trecho de Poema Sujo, do Ferreira Gullar. A desgraçada gritava com ímpeto versos que falavam a palavra “bocetinha”, que narravam agressivamente sobre guerras, sobre sargentos transando de janela aberta! E eu, sentado bem na primeira fileira frente ao palanque, como um pobrezinho, juro que tentei muito levar aquilo a sério, mas como, doutor, como?! Era só imaginar as palavrinhas do texto organizadas em versinhos tão bonitinhos que eu só conseguia pensar uma coisa: “Poesia é muito fofinha  mesmo, hahahaha”. Eu começava a rir em minha cabeça, doutor! Olha só que doentio! Um riso que antes eu só destinava aos péssimos poemas, hoje eu destino a todos, e nem mesmo é um riso de escárnio. Rio um riso de êxtase, porque acho aquilo tudo muito fofo! Porque acho a arte nobre, milenar e transcendental da poesia um negócio fofo! Meu Deus, doutor! Ele diz a palavra “bocetinha” no texto! Ele fala de cu, doutor, de cu! Em que mundo falar de cu vai ser fofo assim?! Por que eu não consigo sentir a sujeira do Poema Sujo, doutor? Por que eu, justo eu, um homem intelectual de formação erudita, não posso mais ver uma coisinha rimando que já penso que estou lidando com um filhotinho de cachorro ou peixinho dourado, e não com um texto sério? Que diabos há de errado comigo?! Eu devo ser maluco. Sim, é isso que sou. Não sou burro, não, doutor, eu sou é doido! Ou pior: sou os dois. Meu Deus do céu. Um burro maluco, só isso que me faltava. Me diga, doutor, isso é culpa da minha mãe? Aposto que sim… a voz poética de minha cabeça é uma vozinha de bebê. O que diria Paul Zumthor se soubesse que o que performa em minha mente enquanto leio poemas são os ursinhos carinhosos?! Hein, o que diria?!

Também tenho percebido, doutor, que a depender do tipo de poema, o tipo de fofura muda. Isso mesmo. Alguns, como os versos livres — mais modernos — têm uma fofura meio tensa, por vezes, ansiosa. Fico pensando que a qualquer segundo eles podem, como num estalo, se transformar em prosa! É como uma criancinha situada ali no período de latência, doutor, para usar os seus termos. Por volta de uns onze anos, sabe do que estou falando? Nessa idade você já pode ver nela um pequeno adulto, mas a criatura não deixa de ser fofa, pois querendo ou não, ainda se trata de uma criança, independentemente desse tumor de maturidade que cresce sobre ela. Já outros, como os Haicais, se encontram num outro espectro da coisa: esses sim são de uma fofura terna e singelíssima! Meus verdadeiros bebezões da poesia, doutor. Só falto explodir quando os leio! Pequenos, inofensivos, organizados… ah! Os filhos que toda mãe queria ter! Já quanto aos parnasianos, bem, esses sim me preocupam. Queria mesmo conversar com o senhor sobre os parnasianos e ainda bem que tocamos no assunto! A questão é que eles me provocam uma fofura que beira a agressividade, doutor! Isso é normal? Vi em um artigo que é normal, mas queria confirmar com o senhor, pois não sei se é saudável. Tem coisa que mesmo sendo normal, não é saudável, você não acha? Aposto que vossa doutoria acha isso. O fato é que quando leio um poema parnasiano, meu Deus do céu, penso somente em sufocá-lo com abraços – talvez socos? – sem fim! Cada um daqueles versinhos me olham pedindo para que eu os aperte em minhas mãos até que as estrofes se juntem todas em uma só bolinha roliça de fonte Arial, e eu fique dizendo a ela: “cuti, cuti, cuti, quem é minha bolinha linda de poesia parnasiana?! Quem é?!”. Loucura mesmo, doutor… loucura…

– E quanto à  prosa poética?

Doutor, não me faça nem começar! Dessa eu morro é de medo!

*Imagem de capa: Arquivo pessoal/ Davi Madorra

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